Um terreno que não era terreno: a área doada pela prefeitura de Porto Alegre para a construção do Beira-Rio apontava para o Guaíba. Antes de erguer um estádio, a missão era cobrir de terra cerca de sete hectares esparramados pelas águas. Palco de jogos da Copa do Mundo de 1950 e de atuações memoráveis do Rolo Compressor de Tesourinha e Carlitos, o Eucaliptos havia ficado pequeno para a torcida colorada. Em 1959, as primeiras estacas começaram a dar forma ao Gigante.
Com o esforço dos torcedores, as obras avançavam. A campanha para arrecadar tijolos moldou o espírito democrático do estádio. Quando a base e boa parte da estrutura estavam adiantadas, mas ainda distante de sua forma definitiva, uma torcedora que até então só acompanhava o Inter pelo rádio, chegou à Capital em 1967. Na época com 33 anos, Noêmia Martins Fontoura logo engajou-se na construção do novo estádio.
— Assisti àquela romaria de gente levando tijolos nos carros de mão. Muitas vezes, eu pegava uma sacolinha e levava um tijolo para ajudar. Cada um fazia o que podia, por isso o Beira-Rio é de todos, é do povo. Nós erguemos aquele estádio — orgulha-se.
A participação ativa nas obras fez aumentar a expectativa pela inauguração. Quando tudo ficou pronto, cerca de 100 mil colorados garantiram ingressos para a semana de festividades de abertura do estádio. Noêmia comprou de uma vez o pacote para todos: a estreia, uma vitória de 2 a 1 em cima do Benfica de Eusébio, a derrota para a seleção húngara e o Gre-Nal, que terminou empatado e em pancadaria, além da partida em que Seleção Brasileira venceu o Peru por 2 a 1.
Em fotos, ela recorda com carinho de uma das relíquias da época, um boné daquela semana comemorativa. A peça é tão rara que o Museu do Inter pediu para seu acervo. A abertura do Beira-Rio deu início a um período recheado de títulos que projetaram o Inter no país. O famoso gol de Figueroa iluminado por um feixe de luz de sol na vitória por 1 a 0 sobre o Cruzeiro, que garantiu o título brasileiro de 1975, é o momento que Noêmia guardará para sempre.
— Jamais vou esquecer daquele gol. Naquele dia, tive a maior alegria da minha vida com o Inter. Foi uma emoção muito grande porque era o começo das nossas vitórias — recorda.
No ano seguinte, Manga, Figueroa, Falcão, Dario e Valdomiro conduziram o time de Rubens Minelli ao octacampeonato gaúcho — a maior série de títulos consecutivos no Estadual até hoje — e ao bicampeonato brasileiro. Um Beira-Rio com mais de 80 mil pessoas viu Dario e Valdomiro liquidarem o Corinthians poucos meses depois da quebra de recorde na hegemonia local.
Vó Noêmia, como é conhecida hoje, viu tudo isso de perto — e bota perto nisso. Das cinco décadas anos que o Beira-Rio completa no sábado, quatro foram abençoadas diariamente pela colorada de 85 anos que até hoje está firme nas arquibancadas do estádio. Moradora de prédio em frente à casa colorada, ela tem um ritual matinal que não falha. De braços abertos em direção à Padre Cacique, a torcedora dá bom dia e faz uma oração:
— O Beira-Rio é a minha casa, eu amo esse clube e admiro este estádio, eu sou apaixonada. Tudo é simples e bonito. É o que eu tenho de mais sagrado, além dos meus filhos e meus netos. Eu não meço sacrifício quando é pelo Inter. É a minha vida, eu tenho 85 anos: não tenho muito mais o que fazer, além de amar esse estádio.
Aos familiares, fez só um pedido:
— Já disse para os meus netos: quando alguém morre, todo mundo fica triste, chorando uma barbaridade. Comigo não vai ser assim e já avisei: não enterrem o Inter junto comigo. Eu já tenho a roupa para morrer guardada, está até com etiqueta ainda. Não é para me vestirem com a camisa do Inter. Nada de botar coisa do Inter debaixo da terra.
O manto do time, naquele tempo, vivia mesmo por cima. Na primeira década de sua história, o Beira-Rio abrigou esquadrões que conquistaram nove títulos gaúchos e dois brasileiros. Mas viriam tempos difíceis depois ...