A Operação Rebote do Ministério Público (MP-RS), que investiga supostas irregularidades na gestão de Vitorio Piffero no Inter entre 2015 e 2016, identificou gastos de R$ 13 milhões com obras e serviços que não teriam sido realizados. O dinheiro teria sido destinado a oito empreiteiras – uma inativa e outras existentes só no papel ou sem porte para atender ao clube –, vinculadas a um escritório de contabilidade e a empresas do ex-vice-presidente de finanças Pedro Affatato e do ex-vice-presidente de patrimônio Emídio Marques Ferreira.
O relatório do MP cita trecho da auditoria Ernst & Young, contratada pelo clube em 2017, segundo o qual em "80% das amostras (de documentos analisados), não foi possível identificar a obra referente à nota fiscal, assim como o contrato para obras com terceiros e, para 100% das amostras, não foi possível identificar o controle de gastos da obra". Foram identificadas notas fiscais seriadas, como se o Inter fosse o único cliente, e também com ordem numérica fora da sequência cronológica.
A investigação apontou que uma forma de drenar recursos do Inter teria sido a retirada de dinheiro vivo da tesouraria por parte de Affatato, a título de adiantamentos, classificada pelo MP como "esquema delituoso montado" e "destinado ao desvio de verbas do clube, utilizando, para tanto, a fachada, o subterfúgio da prestação de serviços relacionados à construção civil".
Em alguns casos, conforme investigação do MP, a pedido do ex-vice de finanças, o tesoureiro do Inter tinha de "transportar tais valores em espécie até restaurantes ou outros locais onde (Affatato) se encontrava". Segundo o MP, o ex-dirigente sacou R$ 9,5 milhões do caixa do Inter. Quebras de sigilo bancário identificaram que, de maio a outubro de 2015, Affatato depositou R$ 701 mil diretamente na conta da sua empresa, a Sinarodo Sinalizadora Rodoviária, em Eldorado do Sul.
A investigação apontou que, além da Sinarodo, a Rodoseg – de propriedade de um familiar de Affatato e situada no mesmo terreno –, teria se beneficiado com o superfaturamento na instalação de guard-rails no entorno do Beira-Rio. Justificados tempos depois, os saques de Affatato foram avalizados por Emídio Marques Ferreira em notas fiscais de empreiteiras, como Keoma, Estela Regina Rocha da Silva e Rejane Rosa de Bitencourt Eireli (posteriormente, a empresa adotou o nome de Osvaldo Florentino da Silva Eireli). As três teriam recebido R$ 8,2 milhões. Entretanto, conforme extratos bancários obtidos pelo MP, nenhum centavo entrou nas contas dessas empresas: "As operações do clube com as empresas de construção civil, tidas como suspeitas, eram praticamente clandestinas; não havia a contratação adequada, nem comprovação de execução dos serviços, nem demonstrativos tradicionais de pagamento como ordens de pagamento, cheque e transferências bancárias".
Empresa inativa desde 2011
A Keoma seria responsável pela cobrança de R$ 5,3 milhões por serviços de limpeza no CT de Guaíba e no Parque Gigante e obras no CT de Alvorada que jamais teria executado. O dono da Keoma, Edson Rodrigues, admitiu em entrevista a GaúchaZH que nunca trabalhou para o Inter e que a empresa estava inativa desde 2011, o que foi confirmado por informações oficiais de organismos de controle fiscal. A Keoma teve como sócio informal o engenheiro civil Ricardo Bohrer Simões. Há suspeita de que ele teria ficado com talonário das notas fiscais emitidas para o Inter.
Simões é dono da Pier Serviços. A empresa foi criada em maio de 2014, com endereço apenas para correspondência, mas que teria executado obras de R$ 1,5 milhão, parte depositada pelo Inter na conta da Pier, parte sacada como adiantamento por Affatato.
Simões foi responsável técnico pelas empresas Pavway e Pavitec, do ex-dirigente do Inter Emídio Marques Ferreira. O engenheiro também foi procurador da Empresa Gaúcha de Estradas (Egel), para a qual o Inter pagou R$ 1 milhão por serviços que não teriam sido realizados. Registro na Receita Federal indica que a Egel está sediada em Balneário Gaivota (SC), mas no local existe uma casa modesta, onde vive uma família que diz desconhecer a empresa. Conforme a movimentação de contas bancárias analisada pelo MP, a Egel repassou R$ 20 mil para a Sinarodo, de Affatato, R$ 41 mil para a Pavitec, de Emídio, e R$ 8,4 mil para a conta pessoal do ex-vice de patrimônio.
Keoma, Estela, Rejane e Pier eram clientes da Análise Assessoria Contábil, do contador Adão Silmar Fraga Feijó, em Porto Alegre. A Egel e outras três empresas –, Giraudo e Ribeiro, Incorporadora Parthenon Eireli e Engenan Empreendimentos Eireli – também estavam conectadas ao escritório de contabilidade. Juntas, receberam R$ 1,3 milhão do Inter.
MP aponta empresa de cabeleireira como laranja
O rastreamento do MP identificou o repasse de R$ 282 mil para a Incorporadora Parthenon Eireli, da cabeleireira Raimunda Soares Ponte. A empresa teria locado caminhões e guindaste, “serviços esses que, segundo a prova produzida, não ocorreram”. A Parthenon foi aberta em abril de 2013 pelo contador Adão Silmar Fraga Feijó no mesmo endereço da Análise Assessoria Contábil, da qual Feijó é dono e que é ligada a outras sete empresas investigadas no caso.
Em julho de 2015, Feijó transferiu a incorporadora para Raimunda, que mora na mesma rua do escritório. A cabeleireira é dona de um salão de beleza que funciona na moradia dela. A partir de agosto de 2016, a Parthenon passou a cobrar do Inter por aluguéis de equipamentos, emitindo sete notas fiscais até dezembro. "Não tinha, portanto, qualquer vínculo com o ramo de prestação de serviços voltados à construção civil. Nem perto disso. Nesse contexto, nítida a condição de laranja de Raimunda Soares Ponte", descreve o MP.
Após o início das investigações e de reportagens na imprensa, Raimunda encaminhou o encerramento das atividades da Parthenon. Outra empresa que fechou foi a Giraudo, que pertenceu a familiares de Feijó e que recebeu R$ 616,7 mil do Inter. Seu último endereço foi um apartamento no piso superior de uma oficina de motos, em Canoas. Morou como inquilino no imóvel, até metade de 2018, um pintor de paredes que não foi localizado por ZH.
Indícios de superfaturamento em guard-rails
A instalação de guard-rails no entorno do Beira-Rio, obra realizada em 2015, teria gerado duas irregularidades. Uma é a suspeita do Ministério Público de superfaturamento pela Rodoseg, empresa de familiar do ex-vice-presidente de finanças do Inter Pedro Affatato.
O serviço contratado seria de 1.370 metros de extensão. Questionada pelo MP, a Rodoseg se disse responsável por confeccionar e instalar 1.200 metros, mas vistoria realizada por técnicos do MP identificou 724 metros. Conforme a investigação, o Inter pagou à Rodoseg R$ 981,5 mil por 1.370 metros de guard-rails, o equivalente a R$ 716,49 por metro. O preço à época, de acordo com tabela do Dnit, seria de R$ 336,17 por metro.
O MP suspeita que o Inter desembolsou cerca de R$ 738 mil acima do valor médio de mercado. A Rodoseg recebeu do Inter R$ 1,2 milhão, incluindo os guard-rails e outros serviços supostamente não executados. Desse total, R$ 186,1 mil foram transferidos da conta da Rodoseg para a Sinarodo, empresa de Affatato.
A segunda irregularidade seria o fato de que é proibido aos clubes contratarem empresas das quais façam parte os seus gestores ou familiares. A vedação é expressa no Profut, programa do governo federal de refinanciamento de dívidas dos clubes de futebol, do qual o Inter participa.
Os contrapontos
O que diz Emídio Marques Ferreira
Dono da Pavitec e da Pavway, o ex-vice de patrimônio do Inter não foi localizado por ZH.
O que diz Andrei Zenkner Schmidt, advogado de Pedro Affatato
A defesa do ex-vice de finanças e dono da Sinarodo nega as acusações e diz que irá se manifestar apenas no processo.
O que diz a Rodoseg
A reportagem não localizou os diretores. Uma empregada da empresa prometeu transmitir recado.
O que diz Edson Rodrigues, dono da Keoma
O empresário não foi localizado. Em entrevista a ZH em maio de 2018, afirmou que jamais trabalhou para o Inter e não recebeu dinheiro do clube.
O que diz Osvaldo Florentino da Silva, dono da empresa que usava nome de Rejane Rosa Bitencourt e administrador da empresa Estela Regina Rocha da Silva
Osvaldo disse que não poderia falar, pois está hospitalizado. Disse não lembrar o nome de seu advogado.
O que diz Ricardo Bohrer Simões, dono da Pier
A reportagem não conseguiu contato com Bohrer.
O que diz Renan Carvalho, dono da Engenan
"Não tenho informações detalhadas sobre eventual contratação com o Inter, pois tais contratos eram de responsabilidade do Ricardo Boher Simões. Ele foi meu chefe enquanto trabalhei na empresa Pier. Atualmente, a empresa possui outra assessoria contábil."
O que diz Cesar Peres, advogado de Adão Silmar Fraga Feijó, dono da Análise Assessoria Contábil e ex-procurador da Egel
"Todas as questões serão enfrentadas nos autos, adequadamente e no tempo devido."
O que diz Adriano de Fraga Giraudo, sócio da Giraudo e Ribeiro
Procurado na quinta-feira, disse que não tinha conhecimento sobre recebimento de dinheiro do Inter. Afirmou que consultaria uma advogada e depois telefonaria para falar sobre o assunto, o que não ocorreu até o fechamento desta edição.
O que diz Raimunda Soares Ponte, dona da Parthenon Eireli
ZH foi à casa de Raimunda, mas ela disse que não poderia falar porque estava atendendo uma cliente. Prometeu passar o telefone da reportagem para seu advogado.