Nascido em Pelotas e criado em Jaguarão, no sul do Estado, o jovem Rafael Duquia, 26 anos, confirmou na última segunda-feira (18) que vai assumir a preparação física da seleção de futsal da Malásia. Não será o primeiro desafio encarado por ele em terras asiáticas: já trabalhou no Al-Nassr e na seleção dos Emirados Árabes Unidos.
Aliás, a pouca idade, somada à humildade ao falar, pode até esconder a larga experiência do gaúcho formado na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). O trabalho de Duquia e a vontade de ir além e viver do futsal o levaram a morar em três continentes distintos, com atuação em equipes do Rio Grande do Sul e Paraná, no Brasil, da Espanha, dos Emirados Árabes Unidos e da Malásia. Nem mesmo a língua é um obstáculo para Duquia, que mergulhou no inglês ao estudar sozinho, em casa, e, hoje, consegue abrir portas de emprego por meio de contatos estabelecidos em todo o mundo.
Em entrevista a GZH, o filho de Anelize Duquia, ainda moradora de Jaguarão, e Renato Silva, residente em Panambi, fala sobre como saiu das equipes da UFPel e do Paulista, em Pelotas, para, atualmente, ganhar a vida a cerca de 16 mil quilômetros da cidade onde cresceu. As conquistas, a adaptação a diferentes culturas, os variados níveis técnicos do futsal pelo planeta e o sonho de chegar à seleção brasileira. Com a palavra, Rafael Duquia, o gaúcho que desbrava o futsal no outro lado da Terra.
De que forma você ingressa no meio do futsal?
Sempre gostei de assistir futsal. Eu já tinha contato com o futsal desde a infância, como todo o brasileiro. Jaguarão sempre teve uma seleção de futsal muito forte. Na prática, em comecei em 2018, quando estava no segundo ano da faculdade. Conversei com o preparador físico da equipe da UFPel, na época, que era meu veterano, e ele me convidou para acompanhar os treinos. Passei a auxiliar ele. Depois, ele optou por sair e eu assumi o lugar dele. A UFPel foi vice-campeã dos Jogos Universitários Gaúchos em 2018. Em 2019, o Paulista se fundiu com a UFPel, e a gente fez uma temporada incrível na Série Ouro. Chegamos a ganhar da Assoeva. Ninguém era assalariado na nossa equipe. Ficamos em terceiro lugar.
E como você chegou ao Paraná?
Antes de ir, tive uma passagem pelo Pelotas, que tinha equipe de futsal. Fui para lá em 2020. Foi início da pandemia, e a gente quase não treinou. Foi um ano difícil para o futsal em geral. Eu começo a pensar "será que vou seguir no futsal"?. Em 2021, eu não sabia se, de repente, ia trabalhar como personal trainer. Aí me liga o Marcio Coelho, treinador que estava na Itália trabalhando com futsal feminino. Ele me falou que o Stein Cascavel, do Paraná, estava com um projeto de futsal feminino. Ele queria me levar como preparador físico para lá. Ele é um dos melhores treinadores com quem já trabalhei até hoje. Montamos uma rotina profissional no Stein, com uma ótima estrutura. Fiquei quatro meses. Jogamos oito jogos e tivemos oito vitórias. Eu estava superbem, adaptado e feliz. Foi quando o treinador do Al-Nassr me ligou. Era um time bacana e recebi uma oferta muito boa financeiramente. Além disso, Dubai é uma cidade incrível. O Al-Nassr ganha tudo o que disputa. Eu saí do Stein na metade do ano de 2021 e eles (o Stein) ganharam todos os títulos possíveis.
Atletas e treinadores brasileiros costumam dizer que o futsal do Paraná é o melhor do Brasil. Você concorda?
Com certeza. Além de jogadores, tem muitas equipes nas competições nacionais, grandes times como Cascavel, Pato Futsal, Marreco, muitos outros. A estrutura dos times é muito boa. O Paraná tem muitas empresas, fábricas, o que facilita o trabalho de patrocínios para as equipes.
Como foi a adaptação a Dubai?
Foi um divisor de águas na minha carreira. Quando eu recebi a oferta, tinha 23 anos. Um moleque começando no esporte de alto rendimento. Eu nunca tive problema por ser jovem. Isso sempre valorizou meu trabalho. Sempre busquei me qualificar muito. Primeiro de tudo, tu precisas demonstrar domínio e conhecimento. Isso faz com que o trabalho seja bem-feito e tu sejas respeitado pelos colegas. E tem também a questão do inglês. Todas as manhãs eu estudava inglês em casa, por conta própria. Montei um vocabulário de palavras que ia utilizar. Eu era preparador físico do time principal, do sub-23 e do sub-21. Foram cinco medalhas, três títulos e dois vices. Entre os títulos, conquistamos a President Cup e a Emirates Cup.
Todas as manhãs eu estudava inglês em casa, por conta própria. Montei um vocabulário de palavras que ia utilizar.
RAFAEL DUQUIA
Preparador físico
Todas essas mudanças de times se deram por meio de contatos pessoais estabelecidos por ti?
Quando eu estava no Paulista, ainda em 2021, lancei meu primeiro curso como preparador físico, junto com o preparador físico da seleção brasileira, Mauro Sandri, que é preparador do Magnus Futsal, um amigão e conselheiro meu. Isso vai te colocando no mercado. O mundo do futsal é um meio de muitos contatos, de muita comunicação. Sempre fui um cara que publicava muito meu trabalho nas redes, vendia cursos, fazia lives. Aquele momento da pandemia foi um momento de muita interação. Isso abriu portas.
Depois do Al-Nassr veio a Espanha?
Eu acabo a temporada no Al-Nassr e sou convocado para a seleção dos Emirados Árabes. O Al-Nassr fechou o futsal. Quando acabou a temporada, já começou um boato de que o clube iria investir toda a grana dos esportes secundários no futebol. Eu acabei a temporada na seleção. Esses países menores geralmente contratam quem está morando no país, para facilitar. Fiquei um curto período. Aí um preparador físico espanhol me liga e disse que queria me deixar no lugar dele. Quando eu estava na seleção dos Emirados Árabes, conheci toda a seleção do Japão, e uma pessoa da equipe deles falou bem de mim para o time do Córdoba, da Espanha. Fui para lá em 2022. Ganhamos um título contra a Inter Movistar. Fiquei na Espanha ao longo de 2022 e fui para o Brasil em dezembro.
Você é pós-graduado em futsal e é coautor de um livro sobre o esporte, o Ciência do Futsal. Quais são as especificidades da preparação física para o futsal? O que tem de diferente do futebol, por exemplo?
O futsal exige capacidades físicas importantes, como mudar de direção, capacidade de repetir os "sprints". Um time ataca, perde a posse de bola, recupera a bola, ataca de novo. O sprint é uma corrida de alta intensidade, acima de 24 quilometros por hora. Estudos relatam que as ações que antecedem os gols são sprints de alta intensidade, com muita troca de direção, aceleração, desaceleração, se movimentando o mais rápido possível. Eu trabalho com controle de cargas, com GPS, faço o controle do número de sprints por jogo do atleta. Quanto tempo ele fez em trote, quanto em alta intensidade. Tenho o controle de várias métricas físicas. É muito bacana que as pessoas possam saber sobre o trabalho da comissão técnica.
Chegamos a 2023. Como surgiu a oportunidade de ir para a Malásia?
Mais uma vez recebo uma ligação. Era do Stein, me convidando para a voltar. Falei que ia dar uma pensada e, no mesmo dia, me ligou outro time dos Emiradores Árabes. E aí também me liga o clube que estou hoje, o Johor, com um projeto muito grande, para ganhar tudo. O salário é muito bom, não que seja o mais importante, o projeto como um todo era bacana. Vim em janeiro. A temporada acabou de terminar. Foi um ano muito bom, com um hegemonia muito grande. O time joga a Champions League da Ásia, tem o Bergson, que jogou no Grêmio e no Athletico-PR.
Tecnicamente, qual é o melhor futsal que voce viu nos países em que passou?
Nenhum país se compara ao Brasil tecnicamente. A Espanha tem um futsal muito mais polivalente e tático, mas, tecnicamente, o Brasil está muito acima. A organização da liga da Espanha, o poder financeiro dos clubes, influencia muito. Tem muito brasileiro. Tive a oportunidade de enfrentar o Barcelona. A estrutura deles é um absurdo. O Brasil tem uma técnica apurada porque, na infância, a criança geralmente pratica o futebol na rua ou em quadras reduzidas, no asfalto ou em chão batido. A criança já nasce com o drible. Na Malásia, é um esporte muito físico, são muito rápidos, atletas leves. A própria arbitragem é diferente. Tem muito puxão de camisa, muita trombada, e os árbitros deixam correr mais.
Nenhum país se compara ao Brasil tecnicamente. A Espanha tem um futsal muito mais polivalente e tático, mas, tecnicamente, o Brasil está muito acima.
RAFAEL DUQUIA
Preparador físico
Foi difícil se adaptar a tantas culturas diferentes?
Dubai é um país muçulmano, por exemplo. Tem que respeitar o Ramadã. Os atletas só podem comer enquanto não tem a luz do sol. Os atletas passam todo o dia em jejum. A gente deixa eles fazerem a primeira refeição e, depois, faz o treino no período da noite. Na Malásia, a mão de dirigir é a esquerda, mas o pessoal fala um inglês muito bom. Com a língua, não tem problema. A comida é diferente, bem apimentada mesmo. Eu assumi o papel de pensar a suplementação alimentar. Faço o controle percentual de gordura, faço testes com os atletas, e monto os menus para os dias de jogos e viagens.
Qual é o teu planejamento de carreira?
Meu maior objetivo sempre foi chegar à seleção brasileira, sem tirar o espaço de ninguém. O preparador físico atual é um gênio. Acredito que isso só seria possível se eu voltar ao Brasil. Eu saí muito novo do Brasil e vivenciei coisas muito boas. Isso te amadurece muito rápido. É complicado falar se vou continuar muito tempo no Exterior. Financeiramente, a situação no Brasil é mais complicada. O futebol de elite é um caso à parte. Nos outros esportes, a luta é muito grande. É preciso lutar por direitos de transmissão na televisão, futsal nas olimpíadas, que a gente não entende ainda o porquê não faz parte. Estou tentando consolidar uma base financeira. É um sonho voltar e trabalhar na Liga Nacional de Futsal.