Professor de literatura das escolas Rainha do Brasil, La Salle Dores e Santo Antônio, Marcelo Frizon fez uma análise da prova de literatura e de duas questões que exigem interpretação. As perguntas que apresentam um texto para ser analisado, não importando a leitura prévia da obra, se aproximam do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de acordo com o professor. Leia a análise:
"A prova de literatura do vestibular da UFRGS tem mais ou menos metade de suas questões dedicadas às leituras obrigatórias. A outra metade cobre obras e autores da história da literatura de língua portuguesa, desde o Humanismo, no século 15, até os nossos dias. Entre as questões sobre obras e autores que não são leitura obrigatória, a universidade apresenta basicamente duas formas para avaliá-los. A mais difícil é justamente aquela que pressupõe uma leitura prévia. Só porque Os Lusíadas, de Luís de Camões, não está entre as leituras obrigatórias, não significa que não pode aparecer uma questão sobre algo específico desse poema épico, que já foi leitura obrigatória. No entanto, o vestibular tem apresentado questões de forma mais acessível, que envolvem a leitura de um texto apresentado na própria questão, não importando a leitura prévia da obra."
Compare as provas
Abaixo, confira uma breve comparação, feita pelo professor Marcelo Frizon, sobre as duas últimas provas de literatura da UFRGS:
A prova de 2012
> Das 25 questões do último vestibular da UFRGS (2012), 16 questões eram sobre leituras obrigatórias, oito apresentavam, na própria questão, os textos que deviam ser interpretados, e apenas uma questão exigia a leitura prévia de algumas obras.
A prova de 2011
> Em 2011, 14 questões eram sobre leituras obrigatórias, oito apresentavam, na própria questão, os textos que deviam ser interpretados, e três questões exigiam a leitura prévia de algumas obras.
Perguntas comentadas
Questão 35 - Leia, abaixo, a letra da canção Feitiço da Vila, de Noel Rosa.
Quem nasce lá na Vila
nem sequer vacila
ao abraçar o samba
Que faz dançar
os galhos do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo.
O sol da Vila é triste,
Samba não assiste
porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus,
Não venha agora
que as morenas
vão logo embora.
A Vila tem
um feitiço sem farofa,
sem vela e sem vintém,
que nos faz bem;
tendo nome de princesa
transformou o samba
num feitiço decente,
que prende a gente.
Lá em Vila Isabel
quem é bacharel
não tem medo de bamba:
São Paulo dá café,
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.
Eu sei tudo que faço,
sei por onde passo,
paixão não me aniquila.
Mas tenho que dizer,
modéstia à parte,
meus senhores, eu sou da Vila!
Considere as seguintes afirmações sobre a letra dessa canção.
I - O sol da Vila Isabel testemunha o cotidiano de homens e mulheres que lutam para sobreviver; a lua, por sua vez, atraída pelo gingado das mulheres, surge antes do tempo para assistir o espetáculo do samba.
II - As tradições, os versos, as crenças, os conhecimentos e os costumes dos moradores de Vila Isabel são reforçados através da referência à princesa que assinou a Abolição.
III - Depois de mencionar que, na Vila, bacharel pode enfrentar um bamba, Noel Rosa exalta a Vila Isabel, ao compará-la a importantes estados da Federação.
Quais estão corretas?
(A) Apenas I.
(B) Apenas III.
(C) Apenas I e II.
(D) Apenas II e III.
(E) I, II, III.
Comentário:
A questão 35 exemplifica uma tendência da UFRGS de ter questões que envolvem a leitura de um texto apresentado, não importando a leitura prévia da obra. Neste caso, o candidato devia ler a letra da canção Feitiço da Vila, de Noel Rosa, e identificar as afirmações corretas. A primeira afirmação não faz sentido, porque o eu-lírico da canção não aborda o cotidiano de homens e mulheres que lutam para sobreviver. A segunda afirmação também está errada porque a referência à princesa Isabel não serve para reforçar as tradições, os versos, as crenças, os conhecimentos e os costumes dos moradores da Vila Isabel. Ela só serve para lembrar que essa vila tem nome de princesa. Já a terceira afirmação está correta e demonstra a ousadia de Noel Rosa ao comparar um bairro a importantes Estados da nação, destacando a importância do samba da Vila Isabel e comparando-o ao café de São Paulo e ao leite de Minas Gerais.
Questão 50 - Leia o seguinte fragmento, do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, publicado em 1997 e considerado um dos precursores na abordagem da violência das favelas cariocas a partir de dentro, isto é, por um autor que foi morador da periferia.
É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. Dito por bocas sem dentes e olhares cariados, nos conchavos de becos, nas decisões de morte. A areia move-se nos fundos dos mares. A ausência de sol escurece mesmo as matas. O líquido-morango do sorvete mela as mãos. A palavra nasce no pensamento, desprende-se dos lábios adquirindo alma nos ouvidos, e às vezes essa magia sonora não salta à boca porque é engolida a seco. Massacrada no estômago com arroz e feijão a quase palavra é defecada ao invés de falada. Falha a fala. Fala a bala.
Sobre esse fragmento, considere as afirmações que seguem.
I - A palavra sai de forma agressiva, "defecada ao invés de falada", porque o narrador acaba concordando com a ideia de que não vale a pena escrever literatura sobre a realidade urbana periférica.
II - O narrador usa linguagem figurada (como as balas atravessando os fonemas ou os olhares cariados) para explicar que, mesmo vivendo em um lugar permeado de crimes e miséria, se arrisca a fazer literatura.
III - Ao mencionar que "Fala a bala", o narrador dá a entender que a violência é a linguagem que a maioria dos moradores das favelas conhece.
Quais estão corretas?
(A) Apenas I.
(B) Apenas II.
(C) Apenas I e III.
(D) Apenas II e III.
(E) I, II e III.
Comentário:
A questão 50 do último vestibular também traz a mesma tendência: a UFRGS apresentou um trecho do romance Cidade de Deus, do escritor carioca Paulo Lins. Obra e autor ficaram famosos graças à adaptação da narrativa para o cinema, dirigida por Fernando Meirelles. As afirmações que deviam ser analisadas a respeito do excerto reproduzido na questão eram fáceis de serem identificadas como corretas ou incorretas. A primeira afirmação está errada, porque se o narrador realmente achasse que não vale a pena escrever literatura sobre a realidade urbana, ele não estaria narrando como é vida numa favela. As outras afirmações estão corretas e fazem o candidato perceber a estratégia usada por Paulo Lins para descrever como é essa vida e como é fazer literatura no meio da violência.