Qual a relação entre os cuidados maternos e a capacidade de memorização do filhote? E entre essa capacidade e a prática de exercícios físicos durante a gravidez, será que há relação? É sempre a partir de perguntas como estas que se iniciam os trabalhos da professora Pâmela Carpes, 38 anos, que há 12 desenvolve pesquisas sobre neurobiologia da aprendizagem e da memória na ponta oeste gaúcha, em Uruguaiana, na Universidade Federal do Pampa (Unipampa).
Pupila de Iván Izquierdo, Pâmela foi orientada no mestrado e no doutorado pelo neurocientista na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Antes mesmo de concluir a tese, foi morar na cidade da Fronteira Oeste, onde seu marido havia sido aprovado para uma vaga como professor na Unipampa. A instituição, que estava em fase de implementação, logo abriu vagas temporárias para a sua área de atuação: a fisiologia. A pesquisadora passou na seleção e seis meses depois também foi aprovada como professora permanente, aos 26 anos. Era o começo da trilha para colocar Uruguaiana no mapa das pesquisas em neurociência.
O trabalho acontece principalmente por meio de pesquisas com modelos animais — no caso, os “ratinhos de laboratório”. Um dos procedimentos é a tarefa de reconhecimento de objetos, em que os bichos são colocados em uma caixa grande, chamada de “arena” pelos pesquisadores, na qual são colocados objetos que eles não conhecem. A reação dos ratos é explorar cada objeto por um período de tempo semelhante. Nesse caso, o teste de memória consiste em colocar um objeto novo e outro já explorado pelo animal na arena depois de algumas horas ou alguns dias. Se ele se lembrar do objeto familiar, gastará mais tempo explorando o outro.
A partir de procedimentos como esse é possível compreender o nível de memorização dos ratos e fazer testes tanto comportamentais, proporcionando experiências diferentes para cada animal e verificando como elas afetaram a sua memória, quanto químicos, a partir do uso de substâncias ou fármacos para avaliar o impacto deles na capacidade de aprendizagem.
— Se eu só quisesse saber se uma intervenção melhora ou piora a memória, eu poderia fazer isso com seres humanos, dependendo da intervenção. No exercício físico, por exemplo, eu poderia fazer um protocolo com seres humanos, mas eu não conseguiria estudar o mecanismo por trás dos efeitos do exercício. Eu não consigo saber o que o exercício faz no cérebro, que permite que eu aprenda, e, com o rato, a gente consegue — explica Pâmela.
Como o cérebro aprende?
Professora da área de Fisiologia, a pesquisadora tem como um dos pontos principais responder uma pergunta fundamental: como o cérebro aprende?
— Queremos entender as cascatas fisiológicas envolvidas na aprendizagem. O que está acontecendo lá no cérebro do animal quando ele é capaz de aprender? Sabendo isso, a gente consegue comparar com situações em que ele não é capaz de aprender — pontua a docente.
Um dos orientandos de Pâmela pesquisa, por exemplo, sobre a relação da memória com a privação de cuidados no início da vida. Nos testes, os filhotes das ratas são mantidos durante três horas ao dia longe de suas mães nos seus 10 primeiros dias de vida — esse tempo é definido para que os ratinhos não tenham déficit nutricional ou outros prejuízos que não a falta de cuidados, propriamente, naquele período. Os pesquisadores concluíram que a ausência materna causou um déficit de memória para a vida toda no animal, que, quando adulto, não se mostrou capaz de aprender.
— Esse modelo é estudado como um modelo de trauma na infância. É sempre importante dizer que quando a gente vai transladar isso para seres humanos, a gente não está falando unicamente da mãe: é falta de cuidados, o que eventualmente podem não ser dados pela mãe, mas por alguém que assume os cuidados da criança — ressalta Pâmela.
O grupo está, agora, estudando o que acontece no cérebro desses animais. Uma das descobertas, até agora, é que algumas proteínas relacionadas à plasticidade, ou seja, à capacidade do cérebro de mudar a partir das experiências, ficam alteradas nos ratos que sofreram esse trauma no início da vida.
Mas, se traumas na infância podem prejudicar o cérebro, há vivências que o protegem. Outro aluno da pesquisadora está trabalhando com intervenções durante a gestação, por exemplo. Os cientistas identificaram que se a rata mãe pratica exercícios físicos durante a gravidez, os filhotes ficam protegidos desse déficit de memória, mesmo quando são expostos à ausência de cuidados maternos por três horas nos primeiros 10 dias de vida. A prática de exercícios físicos pelos filhotes em si, mais tarde na vida, também ajudam a reverter o déficit, assim como estímulos de enriquecimento ambiental, como a colocação de túneis e objetos coloridos para eles brincarem.
Neurociência como aliada da escola
Para além dos benefícios na aprendizagem, o grupo trabalhou durante muitos anos com modelos de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. Uma das conclusões foi que o exercício físico tem um papel importante tanto para proteger o cérebro do desenvolvimento da doença quanto para diminuir o ritmo de progressão dos sintomas.
Depois de tantas pesquisas sobre os benefícios do exercício físico a longo prazo, os cientistas também perceberam um ganho em um período muito curto: identificaram, através de testes, que a capacidade de fixação de um conhecimento novo logo após fazer exercícios físicos é muito maior.
— A gente testou isso no laboratório e viu que um animal que aprende o reconhecimento de objetos, não faz exercício e a gente testa depois, ele lembra do objeto no dia seguinte, mas, se eu testar 14 dias depois, ele não lembra mais. Agora, se eu pegar o animal, ensinar para ele a tarefa e ele fizer uma sessão de exercícios, eu testo no dia seguinte, ele lembra. Testo 14 dias depois, ele ainda lembra. Testo 21 dias depois, lembra também — conta Pâmela, explicando que 21 dias foi o tempo máximo até agora.
Ao analisar o cérebro desses ratos, o grupo descobriu que o exercício aumenta os níveis de dois neurotransmissores no hipocampo, que é a estrutura envolvida na aprendizagem e na memória. Tendo essa constatação em mãos, a hora agora é de fazer o teste de fogo: os estudantes da 8ª série de uma escola estadual de Uruguaiana. A turma terá uma aula difícil de Biologia e, depois, uma parte dos alunos fará uma sessão de exercícios moderados. Ao final, será coletada a saliva dos alunos, para medir se aqueles neurotransmissores também aumentaram neles. Também serão feitos testes de aprendizagem no dia seguinte, sete, 14 e 21 dias depois, para verificar se o grupo que fez exercício logo depois da aula aprendeu melhor do que o outro.
— Aí tu imagina se realmente isso acontecer? A Educação Física está presente na escola, mas, hoje, o horário dela é organizado sem pensar nesse aspecto. Podemos pensar em uma política educacional que considere a neurociência e que favoreça a aprendizagem dos estudantes, por exemplo, colocando a Educação Física logo depois de disciplinas com alta repetência — sugere Pâmela.
A professora que não queria ser professora
Se hoje Pâmela se mostra uma pesquisadora empolgada e uma professora querida pelos alunos, que deixam bilhetes e fotos afetuosas em sua mesa, a sua vontade de dar aula não existia na época de escolher uma carreira para seguir. Filha de professores, a jovem via sua mãe lecionar em escola de manhã e à tarde e, à noite, na universidade.
— Eu via aquela correria, aquele trabalho enlouquecedor, e disse que gostava de Biologia, mas não ia fazer, porque, se não, seria professora. Então, eu não sabia o que queria fazer, e fiz vestibular para vários cursos diferentes, desde Engenharia de Alimentos até Farmácia e Fisioterapia — lembra a cientista.
A estudante acabou sendo aprovada em dois cursos na Universidade de Cruz Alta (Unicruz), onde morava. Em um deles, Fisioterapia, as aulas começaram no primeiro semestre do ano, e para Farmácia, ela só teria aulas na metade do ano. Sob orientação do pai, mesmo preferindo Farmácia, se matriculou em Fisioterapia, para não perder seis meses de estudo. Nesse período, passou por disciplinas iniciais de cursos de Ciências da Saúde, como fisiologia, genética histologia, e ingressou em projetos de iniciação científica.
— Participando desses projetos, descobri o que eu queria ser. Comecei a conversar com os professores e entendi que eu poderia fazer diferentes cursos da área da saúde e depois, no mestrado e no doutorado, me voltar para uma área específica. Foi aí que comecei a trabalhar com fisiologia do exercício — cita Pâmela.
Com o tempo, a jovem constatou que, por fazer ciência no Brasil, onde a maior parte dos pesquisadores também leciona, provavelmente teria que dar aula. E foi o que aconteceu: em 2009, um ano depois de concluir o mestrado e um ano antes de terminar o doutorado, já atuava como professora. Tudo isso com o filho, Vitor, ainda pequeno.
Sobre a presença do filho em seu início de vida acadêmica, Pâmela guarda lembranças carinhosas de Iván Izquierdo:
— Eu engravidei no último ano de graduação e, quando a gente finaliza a graduação e quer fazer mestrado, precisa fazer contato com as pessoas para encontrar um orientador ou orientadora. Quando eu entrava em contato, eu dizia que tinha interesse em morar em Porto Alegre, mas tinha um filho pequeno. Vários professores diziam: “Não, agora não dá, eu não vou ter vaga”, e o professor Izquierdo me acolheu. Ele só disse: “Olha, você chegou no momento certo, porque eu estou a fim de estudar o impacto do exercício sobre a memória e você fez iniciação científica em fisiologia do exercício” — relembra a professora.
Na metade do doutorado, o marido de Pâmela passou em um concurso para ser professor na Unipampa em Uruguaiana. Percebendo a dificuldade da família em uma distância de mais de 600 quilômetros, Izquierdo propôs que a jovem, que já havia concluído a parte prática dos experimentos, escrevesse a tese e artigos da Fronteira Oeste. E foi o que ela fez:
— Pra mim, ele foi uma pessoa muito humana. Não tem nem palavras, né? Foi a pessoa que me acolheu quando vários outros não me acolheram — observa, emocionada.
Depois de ver a área de fisiologia ser implementada praticamente do zero no campus de Uruguaiana, com direito a pintar as paredes de salas e laboratórios junto com os alunos, atualmente Pâmela lidera 28 pessoas no Grupo de Pesquisa em Fisiologia da Unipampa e coordena o programa PopNeuro, que envolve ações para divulgação e popularização da neurociência. Também é pesquisadora associada da Rede Ciência para a Educação (CpE) e é consultora do Escritório da Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para assuntos relacionados à neurociência aplicada à educação.