O sonho de ingressar em uma faculdade passava pelas salas de aula lotadas dos cursinhos pré-vestibular. Locais que se transformavam em um verdadeiro teatro para prender a atenção dos estudantes e ajudar a "fixar" o conteúdo. GZH convidou leitores e ouvintes a recordarem professores marcantes, lembranças de aulas e momentos inesquecíveis. Através desse resgate, encontramos histórias que explicam o porquê de os cursinhos terem marcado a vida e a trajetória profissional de tantos gaúchos.
Na década de 1970, cursinhos como Big Ben e PVA (Pré-Vestibular Andradas) começavam a conquistar alunos, porém a rivalidade entre Mauá e IPV (Instituto Pré-Vestibular) marcou época. Em meio a esse cenário de polaridade, surgiram Unificado e Universitário, ambos com trajetórias que ultrapassam quatro décadas.
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Mauá: linha com destino ao Beira-Rio
O sucesso do formato e o carisma dos professores fez com que o Mauá lotasse as salas de aula que mantinha em vários pontos do Centro Histórico da Capital. Em 1975, diante dessa explosão, para não deixar de matricular alunos, o professor Túlio Ordovás Santos, um dos fundadores da marca, encontrou a solução: alugou espaços dentro do Estádio Beira-Rio.
– Eram quatro salas imensas, sendo duas para mais de 400 lugares e outras duas com capacidade para acomodar cerca de 540 alunos. Ficava em um setor embaixo das arquibancadas. Nesta época, o Mauá totalizava mais de 10 mil alunos – recorda o professor Alberto Menegotto, sobrinho do professor e também fundador Milton Menegotto.
A iniciativa contava também com um convênio com a Carris, que disponibilizou transporte exclusivo até o Beira-Rio. No total, pelo menos quatro linhas, com 12 horários cada, manhã e tarde, atendiam os estudantes.
– O ônibus passava com o letreiro piscando o nome "Mauá" e chamava a atenção. Eu o pegava na Avenida Getúlio Vargas, perto de onde eu morava. Era uma festa, que começava já no próprio ônibus. As aulas eram muito interessantes e divertidas. Havia um real aprendizado, tanto que passei na UFRGS na primeira tentativa. A aula mais esperada era a do professor Édison de Oliveira, de Língua Portuguesa – relembra a ex-aluna do Mauá Cristina Abbott, que foi aprovada em Educação Física, em 1977.
A forma como o Mauá estabeleceu tal parceria serviu de base para transformar o transporte coletivo na Capital nos anos de 1970.
– Foram as primeiras linhas transversais. Até então, os itinerários eram apenas Centro-Bairro. Esse convênio mostrou que era possível o surgimento das linhas T – explica o professor e pesquisador João Timotheo Esmerio Machado, um dos autores do livro “Memória Carris: Crônicas de uma História Compartilhada com Porto Alegre.
Entre os primeiros sócios, além de Túlio, Milton e Édison, o Mauá reunia os professores Antônio Francisco Gatto, Acílio Chemello, Werner Kiel, Darcy Luzzatto e Ludwig Buckup. Ao longo dos anos, outros nomes importantes surgiram e ficaram identificados com a marca, como o professor Constantino Beleza, que permaneceu no curso até o fechamento, em 2002.
– O nome Mauá vem exatamente da Escola de Comércio Mauá, entidade que já ocupava parte do prédio na Rua Dr. Flores, 220, onde foi a primeira sede, em 1958. O pré-vestibular pegou carona no nome – conta Menegotto.
Unificado: as primeiras aulas em uma padaria
Um grupo de professores oriundos do Mauá se reuniu para fundar outra alternativa de pré-vestibular na Capital. Nos últimos meses de 1977, o segundo andar da Padaria e Confeitaria Haiti, na Avenida Otávio Rocha, no Centro, virou sala de aula para receber os primeiros alunos do Unificado.
– Para o ano letivo seguinte, que começaria em março, rapidamente já não havia mais vagas, pois não paravam de chegar matrículas. Já éramos bastante conhecidos. Foi então que começamos a procurar lugares em Porto Alegre e encontramos a antiga sede do Colégio Farroupilha, na Avenida Alberto Bins. Ali foi nossa primeira unidade e onde permanecemos por mais de 40 anos até migrar para o local atual, na Avenida Independência, número 1199
– lembra Ênio Kaufmann.
Além de Kaufmann, que ainda leciona, o Unificado também tem entre os fundadores Régis Gonzaga – morto em dezembro de 2021 –, Sergius Gonzaga, Carlos Fontoura, Cláudio Moreno, Jorge Ernesto Nery, Filipe Oliveira, Milton Vieira e Marco Bueno.
– Sempre tivemos aulas alegres e descontraídas, mas de muito conteúdo. Fomos pioneiros em muitas coisas. Chegamos a ter entre 7 a 8 mil alunos no ano. Nunca esqueço de quando matriculamos 512 alunos num único dia, ainda no fim dos anos 80 – diz, orgulhoso.
Entre as funções que recorda com carinho daquela época está o programa Jornal do Vestibular, que apresentou na Rádio Gaúcha entre 1984 e 1985. Com pique de guri, Kaufmann, aos 74 anos, não pensa em parar. Ao mostrar a nova sede do curso para a reportagem, enquanto interage com os alunos, encontra a professora Roberta Spessatto, de Espanhol, e nos revela o orgulho que sente quando ex-alunos se tornam colegas.
– Temos esses professores, que mais parecem meus netos –brinca.
O sorriso fácil só sai de cena ao citar a recente perda do amigo e colega Régis Gonzaga, que partiu em 22 de dezembro do ano passado. O “tio”, como era chamado, foi um dos professores mais citados entre os leitores de GZH. Palavras como “carinhoso”, “diferente” e “carismático” indicam que Gonzaga marcou a trajetória de alunos, não apenas em função do ensino de Matemática, como também pelo lado humano.
– Comecei a gostar de Matemática graças ao Régis. Ele fazia parecer fácil uma matéria que sempre tive dificuldade no colégio. Sentia nele alguém que torcia por mim e em quem eu podia contar. Mais do que professor, ele nos fazia sentir acolhidos – escreve a ex-aluna Pâmela Oliveira.
Irmão mais novo, Sergius lembra com carinho de Régis, com quem dividiu o trabalho até 2004.
– O Régis era dono de um encanto pessoal diferente. Fazia questão de permanecer próximo nos intervalos das aulas e, com isso, eliminava qualquer abismo entre aluno e professor. Dominava a Matemática, conseguia deixar a disciplina mais ‘palpável’ e irresistivelmente divertida. Tinha um senso de humor rápido, sem jamais parecer grosseiro.
IPV: uma equipe de astros
Os alunos que se matriculavam no IPV tinham aulas em um prédio na Avenida Salgado Filho, número 230. Entre os professores, havia nomes que dominavam não apenas o conteúdo, mas também a comunicação. O jornalista Clóvis Duarte, por exemplo, era professor de Biologia e também foi um dos fundadores. José Fogaça, naquele momento, recém-formado em Direito, lecionava Língua Portuguesa. Ambos davam dicas no Jornal do Almoço, da RBS TV.
Vanessa Duarte, filha de Clóvis, ainda era bem jovem, mas acompanhou de perto os passos do pai, morto em 2011.
– Graças a esse quadro na televisão que ele decidiu se tornar comunicador. E dizia que só era bom porque também era professor. Sentia orgulho quando recebia convidados renomados na bancada dos programas e o entrevistado dizia que tinha sido aluno dele no IPV – lembra.
À reportagem, Fogaça explicou o que considera decisivo no sucesso dos cursinhos:
– Era um momento difícil, de um Brasil calado, autoritário, fechado. As escolas públicas e privadas funcionavam, mas o espaço de manifestação e liberdade, não só política, mas comportamental dos alunos, era muito restrito. No ambiente do cursinho, havia mais liberdade. Os alunos se sentiam muito à vontade naquele ambiente. Dentro daquele espírito de maior liberdade, os alunos aprendiam mais, participavam mais, perguntavam mais, tinham prazer em aprender – argumenta o ex-prefeito de Porto Alegre.
Também passaram pelo IPV professores como Alfredo Oyarzabal de Castro, Carlos Jorge Appel, Jorge Tadeu, Eufrásio, Igor Moreira, Geraldo Fulgêncio, Sanábria, César Mantelli, Beny Pontremoli.
Universitário dá um jeito
Um time de professores que se conheceu no IPV lançou o Universitário, em 1979. Por cerca de 40 anos, Gilberto Kaplan foi professor e passou duas décadas também como diretor de um dos cursinhos mais populares da Capital.
– Devido ao período, tínhamos alunos amedrontados com a Ditadura, que proibia que certos assuntos fossem tocados. Os cursinhos tinham mais liberdade e puderam cumprir um papel importante naquele processo de abertura e de luta. Organizamos jornais, projetos culturais e ciclos de palestras com o professor Voltaire Schilling para debater temas tabus – relembra.
“Difícil mesmo é a vida, vestibular a gente dá um jeito.”... Não só atingiu o objetivo de reposicionar a marca do curso no Estado, como ganhamos prêmio em tudo que é lugar: na Alemanha, no México, foi rodada até no Festival de Publicidade de Cannes, na França.
GILBERTO KAPLAN
Ex-diretor do Universitário
Leitores e ouvintes recordaram a campanha publicitária de 1995, em que adolescentes surgiram em situações típicas da idade do cotidiano e a mensagem dizia: “difícil mesmo é a vida, vestibular a gente dá um jeito”.
– O Universitário estava numa crise muito grande naquela época e pensamos em fazer algo diferente. Falei para o pessoal da agência que queria um comercial ousado e com um pouco de humor. Aprovamos, e foi um sucesso absoluto. Não só atingiu o objetivo de reposicionar a marca do curso no Estado, como ganhamos prêmio em tudo que é lugar: na Alemanha, no México, foi rodada até no Festival de Publicidade de Cannes, na França – conta Kaplan.
Com devoção ao Universitário e gratidão ao ex-diretor Alfredo Castro, a professora Simone Ribeiro é quem dirige o curso atualmente e também detém os direitos da marca. Ela se diz ciente dos desafios que os novos tempos exigem.
– O pré-vestibular de antigamente, com aquele mundaréu de alunos e salas gigantescas, mudou. Nunca mais vai ser assim. Surgiram faculdades com valores irrisórios e com a possibilidade do aluno cursar a distância. Então, a procura maior passou a ser por quem pretende passar na UFRGS, especialmente nos cursos mais concorridos, como Medicina, Direito, Psicologia etc. Ou seja, a procura pelo pré-vestibular continua, sim, mas não de forma tão intensa como naquelas épocas –completou.
Além do professor Alfredo Castro, ex-alunos também recordaram nomes com Floriano, Alcides, Maria Tereza, Maia, Branca, Lídia, Pastor, Bondan, Marcelão, Paulo Silva, João Luiz, Maurinto, Paulo Vargas etc.
Outros tempos e tecnologias
Se atualmente os candidatos conferem o listão de aprovados em questão de segundos no site da respectiva universidade, a expectativa era maior quando o resultado era divulgado pelo rádio. Sim, nome a nome.
Outra alternativa era se dirigir à sede da Zero Hora para conseguir um exemplar da edição especial. Na época, o jornal era impresso no mesmo prédio da Redação, na Avenida Ipiranga. Assim que saía a tiragem extra, os estudantes conferiam o resultado e a festa começava no próprio entorno do prédio do Grupo RBS. Anos mais tarde, as festas das tintas tomavam conta da cidade com os “bixos” festejando com todas as cores da aprovação.
No início dos anos 2000, a TVCOM passou a apresentar um programa em que professores realizavam os prognósticos. O estudante telefonava, dizia quantos acertos tinha feito e uma ferramenta baseada em médias de anos anteriores, previa o resultado.
Em 1994, o professor Paulo Mottola, do Grupo de Professores Mottola, foi pioneiro ao oferecer pré-vestibular por disciplina. Era o início da tendência de turmas reduzidas para proporcionar um aprendizado mais dirigido e individual.
– Lembro de quando fui professor do Mauá, com turmas com cerca de 250 alunos, e eles pouco conseguiam ter contato com o professor. Dependendo, tu tinhas que enxergar o professor de binóculo. Hoje em dia, além de plantões, os alunos têm meu WhatsApp. Isso faz diferença, pois o emocional faz a diferença nas provas.
A pandemia de coronavírus obrigou, novamente, os cursinhos a se reinventarem. As aulas online passaram a ditar regras, seja por plataformas internas ou pelo YouTube.
– Tenho todas as aulas gravadas e à disposição dos alunos. Podem ver e rever quantas vezes quiserem. Tenho a resolução e correção, em vídeo, de todas as questões da UFRGS e Enem do milênio. Só escolher. A aula da semana, por exemplo, eu já disponibilizo no domingo. Quem, por acaso, não quiser ou não vir, pode assistir por lá. Ou então vir e assistir de novo. São recursos que surgiram – explica.
Curiosidades
Você sabia que tem humorista, músico e até político que começou a trajetória profissional dando aula em cursinho pré-vestibular?
O humorista André Damasceno, que dá vida ao personagem Magro do Bonfa, foi professor de Matemática do Universitário entre 1984 a 1990.
– Eu não tinha didática nenhuma, pois tinha me formado em Engenharia. Nas primeiras semanas, tive dificuldade para deixar todo mundo em silêncio. Então, comecei a fazer imitações e contar piadas no final. Então, eles ficavam atentos e ansiosos para descobrir qual imitação eu faria quando acabasse a aula – revela.
Aos poucos, os alunos incentivaram para que lançasse um show de humor no Bar Opinião, em Porto Alegre, que havia recém inaugurado.
– Foram mais de 200 alunos. Isso repercutiu, e todo mundo começou a me chamar para show. Em 1985, surge o Magro do Bonfa. Era um aluno meu que, em sala de aula, fazia as perguntas mais absurdas e falava daquele jeitão. Foi quando decidi imitá-lo nos meus shows e foi um mega sucesso, que me levou para a televisão – explica.
Os ex-governadores Germano Rigotto e José Ivo Sartori foram sócios do Cursão, em Caxias do Sul. O escritor Luiz Coronel lecionou em cursinho por 12 anos, especialmente no Arquimedes e Big Ben, o mesmo em que também Ruy Carlos Ostermann foi professor, além de Mendes Ribeiro e Celso Pedro Luft.
Duda Calvin, vocalista da banda Tequila Baby, é professor de História, Atualidades e Geografia Política, há 20 anos.
– Já dei aula em colégio público, no Universitário e Unificado. Os alunos curtem demais quando descobrem que eu também sou músico, tentam imitar a voz. Eu costumo dizer a eles que juntos fazemos história – conta.
Nas salas de aula, bem menos lotadas, na videoaula, que outrora não se imaginava, os cursinhos permanecem. Para muitos, é o empurrão que falta para acertar o maior número de questões do gabarito e mergulhar de cabeça na faculdade. Para outros tantos, é a mistura de saudade e gratidão de quem transformou milhares de vidas usando talento, criatividade e muito giz.