De segunda a sexta-feira, das 18h30min às 22h, a sala 205 do Anexo I da Saúde, prédio que pertence à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), transforma-se em uma usina de realizar sonhos. É lá que ocorrem as aulas do cursinho pré-vestibular Resgate Popular, voltado para estudantes de baixa renda. A iniciativa existe desde 2002 e, a cada ano, recebe aproximadamente 50 alunos, que pagam R$ 10 por mês. O valor é revertido para as passagens de quem não pode pagar e para comprar camisetas, que os estudantes usam nos dias das provas.
Além dos conteúdos tradicionais para o vestibular da UFRGS e para o Enem – as duas provas mais visadas –, os estudantes também têm aulas de teatro, assistência jurídica, psicológica e, a partir desde ano, a equipe conta, também, com assistentes sociais. Todos os professores e outros profissionais envolvidos (em torno de 30 pessoas) são voluntários.
Para garantir uma vaga no Resgate, os alunos precisam provar que não podem pagar pela preparação para o vestibular. Mas isso não é suficiente. Devido à alta procura (em 2019, foram 140 inscritos, ou seja, quase três candidatos por vaga), todos passam por uma entrevista com os voluntários, além de análise socioeconômica.
Tanto trabalho tem dado resultado. Segundo a vice-coordenadora e professora de Teatro do Resgate, Flávia Reckziegel, 31 anos, nos últimos anos, em média, 20 alunos das turmas entram no Ensino Superior, entre os que passam em universidades públicas e os que conseguem bolsas em universidades particulares.
A partir deste sábado (23), GauchaZH vai mostrar, em uma série de reportagens que serão publicadas ao longo do ano, como será a trajetória da turma 2019 do Resgate Popular. O leitor poderá acompanhar cada passo dos alunos, um pouco de suas histórias, rotinas e a preparação para as provas, ou seja, o caminho deles até o sonho de ingressar no Ensino Superior. Como os voluntários do projeto gostam de destacar, a intenção é fazê-los ocupar todos os espaços a que têm direito.
História de sucesso
O Resgate Popular existe desde 2002, sempre com voluntários. Inicialmente, as aulas ocorriam no Colégio Rosário, área central de Porto Alegre. Alguns anos depois, a necessidade de autonomia fez os responsáveis buscarem um novo local. As aulas passaram a ser na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS, que fica no Jardim Botânico, onde funcionou até 2007. Mas a localização não era a ideal, já que a maioria dos alunos vive em áreas periféricas ou em cidades da Região Metropolitana e depende de transporte público.
A gente entende que o Resgate não é só uma sala de aula. É um espaço de acolhimento.
FLÁVIA RECKZIEGEL
Daí surgiu a parceria com a Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da UFRGS, que cede uma sala no Anexo I, no bairro Santana, para as aulas do cursinho desde 2008. Os alunos contam com projetor, ar-condicionado e toda a estrutura necessária. O prédio fica em uma zona central, com fácil acesso ao transporte público. Além disso, eles têm oportunidade de estar no ambiente da UFRGS e de conhecer a realidade na qual quase todos eles almejam se inserir no futuro.
Combate à evasão
As turmas geralmente iniciam lotadas, mas, ao longo do ano, é comum que diminuam de tamanho. Para combater a evasão, o Resgate possui um núcleo de psicologia, com três profissionais, que dão suporte psicológico e desenvolvem trabalhos com o grupo ao longo do ano.
– Geralmente, os alunos trabalham e estudam. A rotina é puxada, muitos têm filhos, são responsáveis pelas suas famílias. Para que eles não desistam, além do auxílio profissional, também trabalhamos com um sistema de apadrinhamento. Cada voluntário acolhe alguns alunos e os acompanha ao longo do processo, serve como uma referência – conta Flávia.
O trabalho dos voluntários também inclui seminários sobre assuntos diversos. Entre os temas trabalhados, estão direitos básicos, cidadania e o sistema de cotas.
– A gente entende que o Resgate não é só uma sala de aula. É um espaço de acolhimento. O objetivo não é apenas que estes alunos entrem na universidade, eles precisam entrar e ocupar aquele espaço, transformá-lo – analisa Flávia.
Exemplo para os irmãos
Maik Henrique Silveira, 20 anos, atendente de lanchonete e morador da Restinga, só conhecia a UFRGS pois passava sempre em frente a um dos prédios da universidade quando se deslocava até o trabalho, no Centro. Achava que estudar lá era "só para quem tem muito dinheiro", e as ações afirmativas, como cotas para negros e para alunos de escolas públicas de baixa renda, nem passavam pela sua cabeça.
– Eu sempre gostei de estudar. Fui o primeiro da minha família a terminar o Ensino Médio, no ano passado. Mas fazer faculdade era uma coisa muito distante. Na escola, quase não se falava em continuar os estudos. Nunca soube que eu me encaixaria nas cotas – conta ele.
Quem abriu os olhos de Maik foi uma colega de trabalho, que o incentivou a seguir os estudos e explicou que todas as pessoas têm direito de estudar em universidades públicas. Foi ela também que enviou para o rapaz um link sobre o Resgate Popular.
– Fiquei muito empolgado, soube quase no final das inscrições e corri para entregar os documentos. Sou o segundo em uma família de oito filhos, e acredito que, se eu conseguir entrar na faculdade, posso ser exemplo para os meus irmãos – diz Maik.
Rotina
O que ele quer cursar na faculdade já está escolhido: Serviço Social. E mais: apesar de poder concorrer a oportunidades de bolsa em outras universidades, seu foco é a UFRGS, justamente para mostrar aos irmãos menores que o ensino público está, também, ao alcance deles.
Qcredito que, se eu conseguir entrar na faculdade, posso ser exemplo para os meus irmãos.
MAIK HENRIQUE SILVEIRA
– Desde criança, já passei algumas vezes por assistentes sociais, e admiro muito o trabalho destes profissionais. Quero, no futuro, ser para outras pessoas como eles foram para mim – conta o estudante.
A rotina tem sido puxada. Maik sai de casa por volta das 8h e não retorna antes da meia-noite. Mesmo assim, após apenas duas semanas de cursinho, ele não poderia estar mais feliz.
– Aqui, além das matérias, a gente se sente acolhido. Os professores nos incentivam. Só tenho a agradecer a todos os voluntários – finaliza.
Em família
Karen Daniele dos Santos, 40 anos, moradora do bairro Porto Verde, em Alvorada, frequenta o Resgate com o filho, Márcio Monteiro Rigo, 20 anos. Para ela, que busca uma vaga em Direito e pretende ser defensora pública, a oportunidade de voltar a estudar nesta fase da vida é "incrível":
– Estou tão feliz! Costumo dizer que não sou a Malala, mas, para mim, essa oportunidade está sendo como se fosse ela, podendo estudar em seu país – diz Karen, referindo-se à Malala Yousafzai, ativista paquistanesa de 21 anos que luta pelo direito de educação das meninas e ganhou um prêmio Nobel em 2014.
Na infância, Karen não chegou a terminar o Ensino Fundamental. Viveu com as avós, mudou diversas vezes de casa, casou-se e engravidou cedo. Em resumo, a educação ficou em último plano em sua vida. Agora, separada e com os filhos (além de Márcio, ela tem Eduarda, 12 anos) mais crescidos, decidiu retomar os estudos. Mesmo com o cursinho quase de graça, ela precisa se virar para sustentar a casa e manter as aulas. Karen passa as noites trabalhando como cuidadora em hospitais.
– Quando chego em casa, faço lanches para vender à noite, na aula. Ainda tenho que cuidar da casa, dos filhos, dormir e estudar. É puxado, mas não vou desistir. Vou ser advogada. E não quero trabalhar em um escritório, todo bonitinho. Quero trabalhar na Defensoria Pública para dar ouvidos a quem precisa, pois todos têm voz – projeta.
Nas aulas, mãe e filho se apoiam. Márcio quer fazer Medicina Veterinária e pretende se especializar em animais silvestres, principalmente aves. Esta é a primeira experiência de mãe e filho juntos em sala de aula.
Vou ser advogada. E não quero trabalhar em um escritório, todo bonitinho. Quero trabalhar na Defensoria Pública para dar ouvidos a quem precisa, pois todos têm voz
KAREN DANIELE DOS SANTOS
– Nunca tínhamos feito nada juntos por tanto tempo, tem sido muito legal. Somos bem diferentes, ela é bem falante, eu sou mais quieto, mas é bom conviver. Fora o Resgate, que é ótimo, estou gostando muito das aulas – conta ele.