Como parte de um projeto de resgate da memória da instituição de ensino, um grupo de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) encaminhou um pedido para que o Conselho Universitário (Consun) revogue os títulos de Doutor Honoris Causa concedidos aos ex-presidentes militares Arthur da Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici. Os professores formam o Coletivo Memória e Luta. O assunto deve ser debatido pelo órgão ao longo de fevereiro.
A solicitação ocorre após a conclusão de um dossiê, elaborado por historiadores da universidade, que apresenta uma série de medidas das quais os ex-presidentes participaram durante a ditadura civil-militar. Para além de relatos de mortes, torturas e desaparecimentos de presos políticos, o documento aponta os expurgos realizados ao longo do período dentro da própria UFRGS – na época, docentes críticos ao regime foram expulsos ou aposentados de forma compulsória.
— Foi um período especialmente nefasto, não só para a sociedade brasileira, mas para a UFRGS em específico, porque nesses governos houve a maior interferência na gestão interna das universidades, através de órgãos de investigação interna, que perseguiam e pressionavam os professores — destaca a professora da UFRGS e historiadora Regina Xavier.
Regina relembra que os primeiros movimentos de expurgos foram ainda em 1964, com a promulgação do Ato Institucional Nº 1 (AI-1). Porém, com o AI-5, publicado em 1968 – durante o governo Costa e Silva – a intervenção passou a ser mais direta, o que gerava “processos sumários” de expulsão dos docentes.
— Isso significou o expurgo dos maiores intelectuais e expoentes da ciência no Rio Grande do Sul. O fato de a UFRGS ter homenageado personagens tão difíceis, hoje, para nós, é motivo de reflexão. Enquanto universidade, temos a obrigação de restabelecer a verdade sobre o que aconteceu naquele período, especialmente neste momento, em que a universidade é muito visada e há um discurso anticiência muito forte — avalia a professora.
A docente pontua que não se trata de uma questão ideológica, mas sim de rever algo que foi um crime contra a humanidade.
Na prática, o que o Consun analisará será a revogação de decisões do próprio conselho de outorgar as honrarias aos ex-presidentes. Os títulos foram concedidos em 1967, para Costa e Silva, e em 1970, para Médici. Trata-se de um reconhecimento oferecido a “personalidades que se tenham distinguido na vida pública ou na atuação em prol do desenvolvimento da universidade, do progresso das ciências, das letras e das artes”, conforme consta no Estatuto e Regimento Geral da UFRGS.
Cabe ao conselho decidir sobre a mudança, uma vez que é ele próprio que toma as decisões sobre esse tipo de honraria – a reitoria não tem ingerência a respeito. Procurada, a reitoria informou que esta é uma pauta tratada pelo Consun e que ainda não tem posição sobre o assunto.
Como o pedido foi encaminhado ao conselho somente na semana passada, ele não deve estar presente na pauta desta sexta-feira (21), mas provavelmente será debatido na sessão seguinte, em fevereiro. A previsão é de que seja formada uma comissão especial, que analise a questão e emita seu parecer para, então, apresentá-lo ao órgão, para, por fim, a proposta ser votada. A estimativa é de que a votação aconteça entre o final de fevereiro e o início de março.
Regina afirma que o coletivo está otimista, pois tem recebido “apoio amplo” da comunidade universitária. Quase 3 mil pessoas já tinham assinado um abaixo-assinado realizado na internet, defendendo a revogação, até o fechamento desta reportagem.
Segundo o professor Pedro Costa, que integra o Consun e o Coletivo Memória e Luta, não há precedentes para a revogação de títulos de Doutor Honoris Causa na UFRGS, mas outras instituições de Ensino Superior já tomaram decisões semelhantes a essa. É o caso da Universidade de Campinas (Unicamp), que, no ano passado, voltou atrás na honraria concedida em 1973 ao então ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Também em 2021, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) decidiu por unanimidade revogar o título oferecido a Médici em 1972.
— Essas revogações também motivam nosso trabalho. Nas outras universidades, foram comissões da verdade que fizeram o levantamento. Na UFRGS, foi o nosso coletivo, que, aos poucos, vai construindo algumas ações — relata o docente.
Além do pedido de revogação dos títulos, o Coletivo Memória e Luta executou, em 2019, o projeto de extensão “Memória: 50 anos dos expurgos na UFRGS”, que envolveu a instalação de um memorial em homenagem aos professores expurgados, uma exposição de aquarelas produzidas pelo docente José Carlos Freitas Lemos, a organização de rodas de conversas com professores expurgados e representantes estudantis de hoje, a apresentação de um documentário com depoimentos desses docentes expurgados e a organização do livro “Os expurgos da UFRGS: memória e história”, publicado em 2021.