Criado em 2005, o Programa Universidade para Todos (Prouni) sempre foi voltado exclusivamente para estudantes egressos de escolas públicas. Depois de 17 anos, porém, as regras vão mudar – estudantes que pagaram colégios particulares também poderão participar do processo seletivo a partir do segundo semestre de 2022, desde que comprovem renda familiar de até um salário mínimo e meio, para bolsas integrais, e três salários-mínimos, para bolsas parciais. Esta foi uma das alterações determinadas por meio de Medida Provisória (MP) pelo presidente Jair Bolsonaro, que causaram surpresa entre especialistas na área da Educação.
Entre os ouvidos pela reportagem, há especialistas contrários e favoráveis à medida.
Além da inclusão de estudantes egressos da rede privada, a MP prevê que o Ministério da Educação (MEC) poderá dispensar a apresentação de documentos que comprovem a renda familiar do candidato ou sua situação de pessoa com deficiência, caso essas informações estejam presentes em bancos de dados do governo federal. A medida também determina que o número de vagas destinadas a pessoas pretas, pardas, indígenas e com deficiência represente, isoladamente, o mesmo percentual de cidadãos de cada uma dessas categorias verificado no Censo Demográfico mais recente realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A MP tem validade imediata, mas precisa ser apreciada pelos deputados e senadores para virar lei.
Diretora-geral do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, Cláudia Costin diz que a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi o uso de uma medida provisória para fazer as mudanças, em vez da proposição de um projeto de lei. Ela afirma que o instrumento da MP é usado quando há algo muito urgente a ser resolvido ou quando se quer fugir de discussões sobre algum tema.
— Nesse caso específico do Prouni não há nenhuma urgência. O que há de concreto é que há vagas ociosas e as instituições privadas de Ensino Superior gostariam que elas não ficassem ociosas, especialmente num contexto em que houve um número tão baixo de inscrições no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio, cuja nota é usada para selecionar os bolsistas do Prouni). Mas isso é uma crise que justificaria uma MP? Acho que não — analisa Cláudia.
A realização das mudanças por meio de uma medida provisória também surpreendeu a professora Marilis Lemos de Almeida, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel):
— Estamos falando de uma política muito complexa, que tem várias dimensões. Colocá-la por meio de uma MP cerceia o debate público e a participação de especialistas, ainda mais às vésperas do recesso parlamentar. Tem muita produção sobre o Prouni apontando os problemas existentes, mas também os grandes avanços que se alcançou com a política — defende.
Menos vagas para a escola pública
Cerca de 80% dos estudantes do Ensino Médio frequentam a rede pública, contra 20% a privada. Cláudia Costin salienta que esse percentual, somado a um contexto de dois anos de pandemia, com as escolas públicas fechadas na maior parte do tempo e lidando com problemas de conectividade, deveria fazer com que o olhar do governo se voltasse naturalmente aos alunos dessa rede. A especialista questiona, ainda, a flexibilização dos critérios de comprovação de renda.
— Como entender que a renda estará comprovada se houver cadastro em qualquer banco de dados do governo, quando ainda não conseguimos esquecer que muitos funcionários públicos receberam o auxílio emergencial de forma irregular, por conta de cadastros em órgãos de recursos humanos e ministérios militares? Ficamos preocupados com essa situação — pontua a diretora da FGV.
Especializado em financiamento do Ensino Superior, o professor aposentado Nelson Cardoso Amaral, da Universidade Federal de Goiás (UFG), adverte que o Prouni é uma renúncia tributária – as instituições de ensino deixam de pagar determinados impostos e contribuições e, em troca, oferecem essas bolsas. A ideia era dar acesso à graduação a pessoas que, em outras circunstâncias, não teriam esse acesso, focando, assim, em egressos de escolas públicas, de baixa renda, com o recorte também por raça/etnia e deficiência. Para Amaral, não haveria problema em mudar esse perfil e oferecer bolsas também para quem estudou em instituições privadas se houvesse vagas para todos.
— Como não tem (vaga para todos), o que vai acontecer é que quem pagava escola privada ficará com a bolsa de quem não pagava. A demanda do Prouni é enorme. Teria que aumentar muito a quantidade de bolsas para atender a todos — avalia o docente.
Diante de uma possível ociosidade nas vagas, sinalizada pelo MEC, uma alternativa vislumbrada por Cláudia Costin para ampliar o número de bolsistas seria baixar a nota de corte, que hoje é de pelo menos 450 na média das provas do Enem.
O Sindicato do Ensino Privado do RS (Sinepe/RS), por sua vez, comemorou a inclusão de egressos de escolas privadas entre as pessoas com direito às bolsas do Prouni. No entendimento da entidade, a mudança atende aquelas famílias que, mesmo com baixa renda, se esforçam para pagar uma escola privada.
— É preciso garantir o acesso ao Prouni a todos os estudantes, independente da escola onde o aluno estude, pois o critério do programa é a renda familiar — defende o presidente do sindicato patronal, Bruno Eizerik, salientando, ainda, que a mudança permite que os mais de 26 mil estudantes matriculados na Educação de Jovens e Adultos em escolas privadas também acessem o programa.
Permanência nos cursos de graduação
As críticas às mudanças, contudo, não são consenso entre os especialistas. Egeslaine de Nez, professora da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), considera que a MP tem pontos positivos, como uma maior oferta de bolsas.
— Ter uma maior possibilidade de os alunos de instituições privadas cursarem uma graduação, por meio de bolsa, não deixa de ser positivo, ainda que tenhamos que pensar nas condições de permanência deles dentro da universidade. Há cursos elitizados, como Medicina, cuja mensalidade é muito cara, que mesmo uma família que com seus poucos recursos consegue pagar uma escola particular não tem condições de arcar — cita a docente.
A professora ressalta que mais importante do que ampliar as bolsas é criar políticas de manutenção do aluno dentro das instituições de ensino. Entre os pontos a serem pensados dentro dessa política estão, segundo Egeslaine, mudanças de horários das disciplinas e carga horária dos cursos, bem como oferta de refeições e bolsas estudantis.
Marilis Almeida, da UFPel, relaciona a ociosidade das vagas à incapacidade de manter os alunos nas graduações.
— O Prouni é uma ação afirmativa com foco na rede privada. Tem alguns limites, um deles é a política de baixa renda, que acontece em um ambiente que não está montado para que os alunos se mantenham na universidade. Essa ociosidade expressa uma crise econômica, sanitária, política, que tem por consequência o aumento do desemprego, consequentemente gerando inadimplência no sistema do Ensino Superior privado, especialmente entre os bolsistas parciais — relata Marilis.
Sob a ótica da docente da UFRGS, há uma desfiguração da política implementada pelo Prouni a partir da abertura para outros perfis de estudantes que estejam em situação de menos desvantagem social. Em seu entendimento, no formato em que está, o Prouni acaba sendo mais uma “transferência de recursos do que uma política de inclusão”.