Pesquisas de universidades brasileiras, incluindo sobre covid-19, estão sendo prejudicadas pelo fim do subsídio oferecido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) a cientistas para baratear a importação de insumos e equipamentos. Seis das sete universidades federais gaúchas foram afetadas pela falta do incentivo.
O governo federal aplica impostos na importação de produtos estrangeiros para proteger o mercado nacional. Mas, com base na premissa de que há materiais e equipamentos produzidos apenas no Exterior e de que a ciência beneficia a sociedade, há uma cota de isenção oferecida para pesquisadores importarem produtos que permitam a realização de estudos de ponta.
O valor é oferecido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), uma das principais agências de fomento de pesquisa do país, ligada ao MCTI. Em 2020, o subsídio fora de US$ 300 milhões, mas, neste ano, caiu para US$ 93,2 milhões, valor que terminou em maio.
Com a reclamação de pesquisadores, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, anunciou no fim de julho (30) que o governo liberará em agosto mais US$ 100 milhões, ampliando a cota de isenção de 2021 para US$ 193,2 milhões. Quantia que ainda não está disponível, segundo cientistas.
O valor final para o ano ficaria 35,6% abaixo do disponibilizado em 2020 e duraria no máximo até outubro, conforme estimativa otimista de universidades. Pontes diz que tentará junto ao Ministério da Economia outros US$ 107 milhões para completar US$ 300 milhões em 2021, mas não há garantias.
As pesquisas mais afetadas são em saúde e ciências biológicas, incluindo estudos para mapear variantes e encontrar remédios para a covid-19. Na falta de verba, universidades recorrem ao caixa próprio, mas o corte no orçamento e a alta do dólar inviabilizam grandes soluções.
Sem o subsídio do CNPq, produtos ficam até 60% mais caros, um resultado “dramático” na visão de Elizandra Braganhol, pró-reitora-adjunta de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
— A gente tenta contornar buscando recurso de outros lugares, mas os editais estão cada vez mais reduzidos. Outra forma seria usar recurso de custeio para pagar pesquisa e comprar insumos. Mas o orçamento da universidade é cada ano menor — diz Braganhol.
Uma das pesquisadoras afetadas na UFCSPA é a imunologista Cristina Bonorino, que conduz dois estudos para aplicar imunoterapia em pacientes hospitalizados por covid-19 e com diferentes tipos de câncer. Esse tipo de tratamento de ponta, altamente usado na Europa e nos Estados Unidos, é caríssimo no Brasil. Bonorino quer desenvolver uma alternativa nacional para oferecê-la pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Com a redução do subsídio do CNPq para importar insumos e equipamentos, Cristina afirma que não poderá continuar com a pesquisa sobre o uso da imunoterapia contra o coronavírus ano que vem e sequer dar a largada na pesquisa para desenvolver a versão nacional contra o câncer. Isso porque é preciso comprar já os reagentes para 2022, dada a burocracia de até seis meses para a chegada de produtos importados.
— Não existem insumos e máquinas na área da saúde para comprar no Brasil. Basicamente, tudo é importado. Ter essa subvenção para importar é o que garante que exista alguma pesquisa no país. Se o corte da cota de importação não reverter neste ano, meu projeto inviabiliza. Não tem ninguém fazendo isso para o SUS. A gente já precisa esperar seis meses para importar um reagente — diz a cientista.
A menor cota de importação se dá em meio às combalidas finanças do CNPq. Neste ano, o orçamento da agência foi de R$ 1,2 bilhão, o menor em 21 anos, segundo cálculo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. O valor, corrigido pela inflação, é metade do destinado à agência no ano 2000.
UFRGS
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o pró-reitor de Inovação e Relações Institucionais, Geraldo Jotz, nega que haja pesquisas prejudicadas, mas cita que a universidade usou R$ 167 mil do orçamento próprio para algumas compras.
— Não teve problema nenhum com essa questão de importação na UFRGS. Essa liberação de US$ 100 milhões da semana passada deverá dar um gás até setembro ou outubro. E depois tem a promessa de mais US$ 110 milhões (US$ 107 milhões) até o fim do ano para chegar até US$ 300 milhões. Eu sou otimista — afirma Jotz.
Cientistas trazem outros relatos. No Instituto de Ciências Básicas de Saúde (ICBS) da UFRGS, a queda no subsídio do CNPq exigiu uma escolha difícil: ou usar o caixa da faculdade para ampliar um laboratório com o objetivo de torná-lo apto a fabricar ingrediente farmacêutico ativo (IFA) para a CoronaVac e a AstraZeneca, ou investir em equipamentos para acelerar o sequenciamento genético de covid-19, algo essencial para rastrear a presença de novas variantes no Rio Grande do Sul, incluindo a Delta.
A última opção, cuja necessidade é mais imediata, foi escolhida.
— Compramos em junho, com verba própria, um sequenciador de nova geração e um robô que prepara a biblioteca genômica. Os dois custaram R$ 1 milhão. Não dava para ficar esperando. Se fosse importado com a cota, o preço seria R$ 450 mil. Priorizamos o monitoramento genômico e deixamos de comprar estufas e outros equipamentos necessários para o projeto futuro de produzir IFA, algo que a Fiocruz já está interessada — diz a bióloga e diretora do ICBS, Ilma Brum.
UFCSPA
Estudos para rastreamento de variantes da covid-19 também estão prejudicados em outras universidades gaúchas. Quanto mais amostras estudadas, maior o mapeamento. Mas, com menos verba, menos análises serão feitas. Na UFCSPA, a bióloga molecular Ana Gorini da Veiga realizou, desde o ano passado, cerca de 90 amostras. Se houvesse mais verba, o ideal seriam 200 para cada onda epidêmica vivida no Estado, diz a professora.
UFPEL
Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o fim da cota do CNPq exigiu pagar R$ 60 mil em um equipamento para análise genômica, valor 60% mais caro do que se houvesse o subsídio. De 200 sequenciamentos previstos, a meta foi ajustada para 120.
— Se eu analisasse 200 amostras, teria representatividade mais alta para tirar conclusões mais robustas. Deveríamos estar fazendo monitoramento mais ativo das variantes. Provavelmente, a Delta já está aqui, mas só saberemos mesmo daqui a algumas semanas ou mês. Sempre estamos um passo atrás — afirma Odir Dellagostin, professor da UFPel e diretor-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs).
UFSM
O reitor da UFSM, Paulo Burmann, afirma que os cortes são “uma leitura distorcida sobre a ciência no país”. Ele avalia que reduzir a verba para educação e ciência deixa a economia do Brasil mais dependente de outros países.
— Passamos por três situações no campo da pesquisa. Primeiro teve a redução nos recursos para as universidades. Depois, a redução na cota de importação. Por fim, ainda tem variação cambial. Ciência e tecnologia são elementos de soberania nacional, e também há um elemento econômico: cada R$ 1 investido em ciência, tecnologia e educação reverte em R$ 4 para o país. Nenhum investimento no mercado financeiro dá esse retorno — diz Burmann.
Na UFSM, o projeto de sequenciamento genômico precisou ficar menos ambicioso. O planejamento era analisar amostras de mais de 30 cidades da região. Sem a cota de importação, o foco ficará apenas em Santa Maria.
— A gente até tem menos prejuízo porque trabalha com covid. Outras áreas, mesmo importantes, são mais afetadas ainda — diz a microbiologista Priscila Trindade, professora da UFSM.
Furg
É o caso do estudo de Leandro Bugoni, professor da Universidade Federal de Rio Grande (Furg), que monitora os impactos do rompimento da barragem da Samarco em Mariana (Minas Gerais). Ele pretendia comprar um novo equipamento de cerca de R$ 36 mil para acompanhar a migração de pássaros que passam pela foz do Rio Doce, afetado pelo desastre ambiental.
Como o dinheiro da cota de importação do CNPq acabou em maio, ele não conseguiu renovar o equipamento. A temporada de migração das aves acabou e Bugoni perdeu a movimentação deste ano.
— Já passou o período em que as aves estavam disponíveis para serem estudadas. É um ano de atraso na minha pesquisa. Tive um prejuízo inestimável, não dá para recuperar no mês que vem. Não conseguimos dar a resposta que órgãos ambientais, Ministério Público e a sociedade nos demandam — afirma o pesquisador.
Unipampa
Na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), o fim da cota de isenção de importação em maio atravancou um projeto de ampliação de um biotério, local onde animais são abrigados para a testagem de remédios. O pró-reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação, Fabio Leivas, diz que a instituição não tem dinheiro para arcar sozinha com os custos de R$ 2 milhões com as compras.
— Não conseguimos comprar com caixa próprio porque a restrição que vem do MEC (Ministério da Educação) é muito alta nos últimos dois anos. O orçamento para a ciência está sendo reduzido muito drasticamente. O impacto será no longo prazo — diz Leivas.
UFFS
A Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não foi afetada afetada pelo fim da cota de importação.
Contraponto
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, o Ministério da Economia e o CNPq não responderam aos questionamentos da reportagem feitos na segunda-feira passada (2) sobre os valores da cota de isenção de importação dos últimos anos nem perspectivas de liberação de maior verba para os próximos meses.
Entenda a cota de importação do CNPq
- A cota de isenção de importação permite a pesquisadores solicitarem ao CNPq um valor que ajude a comprar produtos do Exterior para realizar pesquisa de ponta.
- O subsídio é essencial para universidades produzirem ciência, uma vez que a maioria dos insumos na área da saúde, química e biológicas é importado.
- O CNPq avalia a proposta e autoriza.
- Em maio, os US$ 92,3 milhões para subsídio do CNPq acabaram. Nenhum pesquisador pôde solicitar o auxílio.
- Junho e julho: universidades ficaram sem o benefício.
- Agosto: CNPq deverá oferecer mais US$ 100 milhões
- Até o fim de 2021: expectativa de o CNPq oferecer outros US$ 107 milhões, para atingir US$ 300 milhões no ano, o que depende de aval do ministro Paulo Guedes.