Adormecida durante anos, a inflação voltou a assombrar os brasileiros na pandemia, impondo cortes, postergando planos e alterando hábitos. Cada vez mais visíveis em itens básicos, como alimentação, gás de cozinha, gasolina e energia elétrica, os efeitos da escalada dos preços são sentidos em todas as faixas de renda, mas vêm afetando, principalmente, as famílias mais pobres, seguidas de perto pela classe média.
De 2020 para cá, a perda de poder aquisitivo se acentuou aos poucos, aliada à queda vertiginosa na renda, com o desemprego crescendo e atingindo 14,8 milhões de pessoas — o equivalente a 14,6% da força de trabalho.
Em 2021, a elevação dos preços é percebida em quase todos os setores, e a taxa acumulada em junho, considerando os últimos 12 meses, foi a maior desde setembro de 2016. Nada menos do que oito dos nove grupos de produtos e serviços pesquisados pelo IBGE tiveram aumento no país — da habitação, impactada pelas contas de luz, ao setor dos transportes, atingido pelo avanço nos combustíveis.
À mesa, itens essenciais como o óleo de soja somam 83,79% de aumento. O feijão fradinho subiu 48,19%, o arroz, 46,21%, e as carnes, 38,17%. A avalanche acertou em cheio o extrato mais vulnerável da população.
— O cenário que temos hoje prejudica mais os mais pobres. O que tem aumentado com mais força é justamente o que eles consomem em maior peso. Para piorar, muitos perderam os rendimentos. O auxílio emergencial de R$ 600 deu uma boa ajuda em 2020, mas agora o valor é menor, e a inflação continua subindo — resume a economista Maria Andreia Lameiras, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A saída tem sido cortar itens do cardápio, recorrer a redes de apoio e atrasar contas. Gente que havia vencido a fome nos anos 2000 agora vê a ameaça à espreita outra vez.
É o que sente a líder comunitária Claudia Maria da Cruz, 50 anos. Ela vive com o marido, que busca emprego há meses, e dois filhos, ambos estudantes, no bairro Restinga, em Porto Alegre. Os quatro dependem de Bolsa Família e auxílio emergencial, somando R$ 375 mensais, além de doações de cestas básicas.
Até 2019, Claudia conta que, com R$ 30, abastecia o freezer com carne para 15 dias. Hoje, mal consegue comprar um frango. Costumava adquirir uma caixa com 30 ovos por R$ 10. Agora, o valor chega a ser o dobro. O dinheiro não dá conta.
— Aos poucos, a coisa foi piorando. Começamos a diminuir o que ia para dentro do carrinho, por falta de condições. Hoje, meu freezer é virado em gelo — ressalta.
A situação ficou ainda pior quando Claudia teve coronavírus, em fevereiro. Permaneceu entubada por 20 dias e quase morreu. Voltou para casa em março e, desde então, não tem condições de trabalhar devido às sequelas da doença. Após anos de luta pelos direitos da comunidade, hoje é ela quem recebe a ajuda de amigos e da ONG Themis, da qual faz parte.
— Tínhamos uma reserva financeira, mas a covid desorganizou a nossa vida. O que mais preocupa, agora, é ter de vender as coisas que conseguimos comprar com tanto esforço: TV, geladeira, fogão. Não quero chegar a esse ponto, mas vivemos um retrocesso no Brasil. Tínhamos deixado a miséria para trás — lamenta Claudia.
Educação dos filhos em primeiro lugar
Ainda que o impacto da inflação seja maior na periferia, quem tem melhores condições financeiras também sente os efeitos. Com poder de compra corroído, a classe média adota estratégias para contornar o problema.
À frente de um negócio de montagem de grelhas e parrillas na Capital, o casal de empresários Bibiana Quevedo Pereira, 36 anos, e Diogo Padilha de Teixeira, 39, pôs em prática uma série de mudanças de dezembro para cá, para priorizar o que considera mais valioso: a educação dos filhos, Ícaro, seis anos, e Ísis, dois, que frequentam escola particular.
Na virada do ano, dispostos a reduzir custos, eles fecharam a loja física que mantinham no bairro Teresópolis e passaram a trabalhar por encomenda. Tem dado certo.
— Só o ferro, que é a nossa matéria-prima, subiu 50% na pandemia, fora o resto. Não tinha como repassar tudo isso aos clientes, então a gente foi apertando onde dava — explica o empreendedor.
Para ganhar fôlego, o casal também abriu mão do plano de saúde, uma decisão difícil, e se mudou. As modificações incluíram ainda a decisão de postergar a troca do carro e um controle maior sobre as despesas no supermercado, deixando de lado os supérfluos.
— A inflação realmente está pesando mais. A gente percebe isso no supermercado. Eu até parei de fazer aqueles ranchos grandes. Agora, compro só o essencial. A única coisa da qual não abro mão é a educação das crianças. É a nossa prioridade número um e continuará sendo — ressalta Bibiana.
Apesar de tudo, fé e esperança no futuro
O estrago causado pela escalada nos preços é ainda maior, na prática, porque não vem sozinho. Além de sofrer a pressão inflacionária, muitas famílias curam as feridas deixadas pelo coronavírus — doença que levou à perda de entes queridos, com impactos emocionais e também financeiros.
Tanto a pandemia quanto a volta da inflação viraram do avesso a vida de pessoas como a técnica em saúde bucal Adriana Maranghelli, 47 anos. Concursada do Hospital Conceição, ela trabalha em uma Unidade Básica de Saúde da Capital e enfrenta um dos momentos mais difíceis da vida, sem perder a fé em dias melhores.
Em 2020, Adriana realizou um sonho: conseguiu comprar um apartamento à prestação, onde vive com a filha, Luísa, 18 anos, e com o companheiro, Felipe Gonçalves Rodrigues, 30 anos. As coisas iam relativamente bem até que as atividades econômicas pararam devido à crise da covid-19 e Rodrigues perdeu o emprego.
O trio teve de cortar gastos e alterar hábitos para contornar as dificuldades, que se ampliaram com a morte precoce do pai de Adriana. Fernando Maranghelli morreu aos 69 anos, em abril de 2021, devido ao coronavírus. Foi um baque.
— Todos nós tivemos covid. Meu pai, infelizmente, não resistiu. Perdeu a guerra. Ele era a minha segurança — recorda Adriana.
Dali em diante, tudo mudou. A partida de Maranghelli foi sentida inclusive financeiramente e, com os aumentos em quase tudo, a família teve de se adequar.
— Passei a procurar promoções, porque o supermercado ficou muito caro. Tenho colegas que moram em Canoas e, quando aparecem boas ofertas por lá, faço um Pix e elas me trazem os produtos, mas cortamos muita coisa. Carne, que comíamos bastante, trocamos por frango e por salsicha. Frios, como presunto, peito de peru e cheddar, nós substituímos por patê. Reduzimos as despesas ao máximo possível. A conta de luz não dá para atrasar, mas o condomínio, às vezes, a gente negocia. Vamos levando — conta Adriana.
Temos de ter fé e esperança. Do contrário, como vamos sair dessa situação?
ADRIANA MARANGHELLI
Técnica em saúde bucal
Do conforto do carro, a técnica não abre mão, embora o preço da gasolina venha pesando no orçamento. A educação de Luísa também não foi afetada, porque o pai dela, ex-marido de Adriana, segue pagando o Colégio Bom Conselho, onde a menina estuda. Mas os hábitos de lazer, por exemplo, mudaram: ficaram restritos ao chimarrão com pipoca na orla do Guaíba.
A família tem uma casa em Pinhal, no Litoral Norte, e um sítio na zona sul da Capital, do irmão de Adriana. Apesar disso, as viagens se tornaram raras.
— Temos ido, no máximo, ao Gasômetro e só durante a semana, para evitar aglomerações. Íamos bastante ao sítio, mas, além de gastar com combustível, sempre vem aquela vontade de fazer uma churrascada, o que, pelo menos por enquanto, ficou no passado — relata.
Nada disso impede a técnica de seguir sonhando. Agora, ela quer cursar Enfermagem na UFRGS e está estudando para o Enem com Luísa. Outra boa notícia para a família é que Rodrigues conseguiu um novo emprego nesta semana, após meses de procura. Adriana projeta o futuro com otimismo, como seu pai gostaria que fizesse.
— Apesar de ficar mal em alguns momentos, acho que temos de ter fé e esperança. Do contrário, como vamos sair dessa situação? Temos de acordar e agradecer. A gente é brasileiro, não desiste nunca. E é gaúcho, né? Resistimos a tudo — brinca Adriana.