Se negros do Rio Grande do Sul estão prestes a ocupar o número de vagas em universidades públicas compatível com sua proporção na população (representam 20,5% dos gaúchos e são 19,5% dos universitários, conforme levantamento da IDados Consultoria realizado a pedido de GaúchaZH), há outro desafio: incluir os mais jovens.
Dados do Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que, na faixa etária dos 18 aos 24 anos, quase 35% dos universitários brasileiros são brancos, contra menos de 19% de negros. No Rio Grande do Sul, a diferença é ainda maior: a taxa de matrícula de alunos negros dessa faixa etária nas instituições gaúchas de Ensino Superior é de pouco mais de 13%, contra mais de 30% de brancos.
As condições desfavoráveis para jovens negros podem ser explicadas pela desigualdade social: a exigência de conseguir um emprego já na adolescência resulta em maior abandono do Ensino Médio, atraso na formatura da escola e, em alguns casos, na própria decisão de prestar vestibular. Uma vez feita a escolha, é preciso conciliar trabalho com cursinho pré-vestibular, o que impede a dedicação total à prova.
Para Neusa Chaves Batista, professora de Sociologia da Educação na UFRGS e pesquisadora de ações afirmativas, o cenário mais desfavorável para jovens negros no Rio Grande do Sul sugere que, no Estado, negros são mais vulneráveis.
– Famílias de pessoas negras, no Brasil, têm mais baixa renda. Ao analisar indicadores do IBGE, é possível ver que negros acessam algum tipo de trabalho muito jovens, a maioria antes de concluir o Ensino Médio. Muitos não conseguem concluir a formação escolar e, então, não ficam aptos a entrar na educação superior. Já os jovens de famílias com poder aquisitivo maior, normalmente brancos, concluem o Ensino Médio na idade regular, com 17 anos, e acessam normalmente a universidade – analisa a professora.
A UFRGS é a instituição de Ensino Superior “mais negra” do Estado, aponta a análise da IDados Consultoria: 22% de todos os alunos são pretos ou pardos. Em seguida, estão a Universidade Federal de Rio Grande (Furg) e a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA):
Em específico, a UFRGS começou a adotar cotas em 2008, quatro anos antes da lei nacional que obrigou todas as universidades federais a fazê-lo. Para o futuro, o desafio é garantir a continuidade e a expansão de moradias estudantis e auxílios-financeiros para a permanência dos negros, defende o sociólogo Edilson Nabarro, diretor do Departamento dos Programas de Acesso e Permanência e vice-coordenador da área de Acompanhamento de Ações Afirmativas da instituição.
– A inclusão de mais negros no Ensino Superior público se deu graças à criação de mais universidades e institutos federais no governo Lula (2003-2011), além da expansão de cursos noturnos, o que ajuda o trabalhador-aluno. Agora, precisamos garantir a estrutura de incentivo à permanência e pensar a saída: encontrar condições de esses negros entrarem no mercado de trabalho – destaca.
O desafio da permanência
Alunos negros e alunos de acesso universal (que não entram na universidade por cotas) abandonam o curso em proporção próxima, mostra levantamento feito pela UFRGS a pedido de GaúchaZH. De 2008 a 2019, 36,2% dos negros cotistas evadiram, contra 34,1% de evasão de alunos de acesso universal (via de regra, brancos).
Alguns cursos, no entanto, têm realidades particulares que se distinguem desse dado genérico. Na Engenharia Civil da UFRGS, por exemplo, a evasão de pretos e pardos é mais do que o dobro do que a dos universitários que entram via acesso universal. Na Pedagogia, o cenário é o inverso disso: a evasão é maior entre estudantes de acesso universal do que entre os cotistas negros. Na Medicina, quase ninguém larga os estudos. Há explicações para cada uma dessas realidades distintas, atentam especialistas.
– Na Engenharia Civil, a evasão dos negros se dá pela dificuldade em acompanhar o curso. Na Pedagogia, é preciso levar em conta que a maioria dos estudantes é formada por mulheres, negras e pobres. O diploma, então, é a única chance de fazer Ensino Superior sem pagar. É a possibilidade de ascensão social. Então a estudante não irá abandonar o curso – analisa o sociólogo e professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC Paulista (UFABC), Wilson Mesquita.
Alunos cotistas reclamam de obstáculos que, para os mais vulneráveis, são fatores que motivam a saída da faculdade: turno integral que impossibilita trabalhar, textos em inglês; professores na área de saúde que pedem para alunos comprarem materiais e equipamentos caros; funcionários despreparados para lidar com negros.
– Evasão tem a ver com baixa renda, morar na periferia, precisar trabalhar para pagar xerox e até mesmo não ter computador em casa. São as dificuldades materiais. As bolsas de permanência são muito baixas, não pagam todo um aluguel, por exemplo – diz Mesquita. – E tem a dificuldade simbólica: a escola pública, após a ditadura militar, decaiu de qualidade, e aí hoje o aluno não tem a base da matemática, da física e da química trazida do Ensino Médio. Grande parte desses cotistas, se a universidade não tiver políticas de permanência, como fazer cursos de revisão de matemática, não conseguirá acompanhar o curso.
Menos negros saem do Ensino Médio e, mesmo assim, ocupam metade das vagas em universidades públicas. Estamos conseguindo superar a desigualdade verificada na educação básica.
GREGÓRIO GRISA
Professor do IFRS, pesquisador do Ensino Superior brasileiro
Em sua pesquisa de doutorado na Educação, o professor Gregório Grisa acompanhou cotistas de escola pública da UFRGS e descobriu uma constante: maior demora para se formar pela escolha de matricular-se em menos disciplinas. O motivo não era dificuldade para acompanhar os estudos, mas a necessidade de ter tempo livre para trabalhar paralelamente aos estudos.
– A partir do terceiro ou quarto semestres, os cotistas, como trabalham mais, se matriculavam em menos créditos. Eles não rodavam em disciplinas, apenas faziam menos. Há uma correlação aí, porque os cotistas trabalhavam mais do que alunos de acesso universal – explica.
O ritmo dos cotistas
Em relatório publicado no ano passado sobre alunos cotistas, a Comissão de Acompanhamento de Ações Afirmativas da UFRGS afirma que “uma maior ou menor familiaridade com o Ensino Superior nas suas famílias de origem e o perfil de baixa renda podem imprimir um ritmo diferenciado ao percurso acadêmico, bem como a necessidade de negociar sua permanência na universidade perante situações laborais próprias”.
Agora, precisamos garantir a estrutura de incentivo à permanência e pensar a saída: encontrar condições de esses negros entrarem no mercado de trabalho.
EDILSON NABARRO
Diretor dos Programas de Acesso e Permanência da UFRGS
A estudante de Enfermagem Juliana Prates, 27 anos, até ganha isenção no restaurante universitário da UFRGS, auxílio de R$ 107 mensais para pagar o ônibus e uma bolsa de R$ 400 como monitora. Mas essas quantias, somadas, não bastam. Impedida de conseguir um trabalho com maior salário por conta das aulas que ocupam o dia inteiro, só resta a ela uma saída: trabalhar nos fins de semana como garçonete, recepcionista ou distribuindo panfletos na rua. Por vezes, precisa faltar a aula porque, ao fim do mês, o dinheiro não é suficiente. Para estudar, sobra o turno da madrugada.
– Tenho que matar um leão por dia. A UFRGS não acompanha o horário de quem é pobre e precisa trabalhar. Minha mãe é empregada doméstica, somos uma família humilde. Na volta das férias, tive colega que foi para Bariloche e para o Rio de Janeiro. Eu fiquei trabalhando para juntar grana e ir até o fim do ano. A gente sente raiva, mas tem que seguir adiante: estudar na UFRGS era um sonho da minha mãe que eu nem achei que pudesse conseguir. A gente que é negro não pode desistir – afirma.
A política de ações afirmativas, que inclui as cotas, se tornou lei, em 2012. Ela seguirá até 2022, quando o governo Jair Bolsonaro terá de decidir se a estratégia vai ou não continuar no Brasil.