A notícia foi divulgada em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): pela primeira vez na história, há mais negros do que brancos em universidades públicas do país. Um olhar para o Rio Grande do Sul revela que o acesso de pessoas pretas e pardas (ou seja, os negros conforme são considerados pelo governo federal) ao Ensino Superior também está mais proporcional a sua representatividade na população em geral: negros representam 20,5% dos gaúchos, enquanto compõem 19,4% dos estudantes nas nove universidades federais e estaduais no Estado, de acordo com levantamento da IDados Consultoria realizado a pedido de GaúchaZH como complemento à estatística recém-lançada pelo órgão do governo nacional.
O motivo desse avanço da raça historicamente desfavorecida no país é unânime entre os especialistas: a Lei das Cotas, que foi aplicada em 2012 e é responsável por reservar 50% das vagas em universidades públicas e institutos federais para alunos de escola pública no Ensino Médio (não basta apenas a raça negra para ser cotista, é exigido ter estudado em escola pública). Dessas vagas, uma parte vai para alunos negros e indígenas – 25% no caso da UFRGS. O Programa Universidade para Todos (ProUni), que dá bolsas em instituições particulares, também é citado como um avanço nesse sentido, visto que aproximou os mais pobres da possibilidade de cursar o Ensino Superior.
– Do ponto de vista formal, houve avanço para os negros, pela criação das cotas, mas também pela expansão de vagas (em universidades públicas). No mercado de trabalho, ainda há o que avançar, porque o preconceito é forte. Os próximos passos são ter mais negros em “cursos de prestígio” e melhorar a entrada nas instituições particulares: o grosso de pretos e pardos vem de escola pública, onde a média é bem pior do que na escola privada – avalia João Batista Oliveira, ex-secretário executivo do Ministério da Educação (MEC) e presidente do Instituto Alfa e Beto, ONG dedicada à educação.
De fato, pretos e pardos estão menos presentes nesses “cursos de prestígio” – aqueles com média mais alta, concorrência forte e maiores salários no mercado de trabalho. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que, no Brasil, as áreas de estudos mais ocupadas por negros são a de educação (o que inclui Pedagogia e licenciaturas) e a de serviços (cursos de Hotelaria, Turismo, Cosmética, Segurança no Trabalho etc.). No Rio Grande do Sul, são serviços e ciências sociais, jornalismo e informação.
Quando o recorte são as carreiras de maior salário, como Medicina, Engenharias e Odontologia, o percentual de negros matriculados é menor em todo o país. Embora representem 55,8% da população nacional, na Medicina, por exemplo, eles são 40% dos alunos de instituições públicas e federais.
A chance de ser doutor
No Rio Grande do Sul, há um maior equilíbrio nessa estatística: a população negra soma 20,5% do total do Estado, enquanto 22,2% dos estudantes das faculdades federais de Medicina são pretos ou pardos. Com altos rendimentos vislumbrados após a formatura, a ocupação de todas as vagas reservadas para cotistas fica assegurada.
– A desigualdade racial no Brasil está ligada à renda das pessoas. Menos negros do que brancos se formam no Ensino Médio e, mesmo assim, ocupam, em nível nacional, metade das vagas em universidades públicas. Estamos conseguindo superar a desigualdade verificada na Educação Básica – diz Gregório Grisa, pós-doutor em Sociologia, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) e pesquisador do Ensino Superior brasileiro.
Gustavo Soares Santana, 21 anos, aprendeu no pré-vestibular gratuito a sonhar com a Medicina. Antes, nem cogitava a possibilidade de se formar médico. Após três anos de estudos, divididos com o trabalho pela manhã e à tarde, entrou na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Como as aulas são em turno integral, ele depende da família para viver – quando consegue, trabalha como fiscal de concursos nos fins de semana.
Ao recordar o início da faculdade, o universitário relata duas situações incômodas que frustraram o esperado dia em que assistiria a uma cirurgia, algo excitante para calouros. Na entrada do hospital, foi o único parado pela recepcionista para identificar-se – era, também, o único negro em meio aos colegas. Após cruzar a entrada e vestir o uniforme cirúrgico, aproximou-se do anestesista responsável pelo procedimento. O médico, ao mirar para o cabelo black power do jovem, sentenciou:
– Vai ter que cortar esse cabelo, hein.
Intimidado pela hierarquia, Gustavo não falou nada. Voltou para casa com um incômodo na garganta e a sensação de que não era bem-vindo – justamente em um espaço que lutou tanto para ocupar.
– Isso me faz pensar na Medicina que quero exercer no futuro. Quero trabalhar no SUS. Para devolver ao meu povo – afirma, solene.
A menor ocupação de negros em cursos mais concorridos é explicada pela desigualdade social. Viver como preto ou pardo no Brasil é, em geral, ter menos qualidade de vida, como mostram indicadores de saúde, segurança, emprego e saneamento básico.
No Estado, onde a população negra é menor, essa desigualdade é ainda mais forte, aponta o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), indicador que mede a qualidade de vida das pessoas e varia de 0 a 1 – quanto mais próximo de 1, melhor. Em 2017, para negros gaúchos, o IDHM é de 0,725. O de brancos, 0,810.
– Cursos mais elitizados são escolhas de estudantes com uma família que ensinou a possibilidade de poder acessar uma carreira como Medicina, que garante uma melhor colocação na estrutura de trabalho da sociedade. É uma herança familiar: o aluno teve toda a trajetória escolar constituída para fazer um curso assim – avalia Neusa Chaves Batista, professora de Sociologia da Educação na UFRGS e pesquisadora de ações afirmativas.
A realidade maquiada
Entre os cursos mais concorridos, Direito desponta como opção com grande número de matrículas de negros no Rio Grande do Sul: 24,3% de todos os estudantes do Estado. Claricia Domingues, 25 anos, é um exemplo: entrou na UFRGS após três anos de cursinho popular gratuito. Assim como Gustavo, a decisão não partiu dela própria: veio após um questionamento enquanto trabalhava como jovem aprendiz em um órgão do Judiciário.
– Me questionaram se eu faria vestibular e eu nem sabia que existia faculdade gratuita, quanto mais qual curso faria. Como estudei em escola pública, quando fui para o cursinho tive de reaprender tudo. Trabalhava oito horas por dia como recepcionista e ia ter aulas à noite. No terceiro ano, saí do trabalho e vivi seis meses de seguro-desemprego. Foi aí que consegui me dedicar e passar no vestibular.
Na faculdade, vista por ela como um ambiente pouco acolhedor para negros, uma das formas de se sentir menos só foi unir-se a outros cotistas – para as fotos feitas por Zero Hora, ela vestiu uma camiseta com a estampa “UFRGS Negrada Direito”, uma forma de ressignificar a palavra pejorativa. Questionada sobre a área em que pretende atuar quando formada, ela destaca a de direito penal.
– Enquanto moradora da periferia, direito tributário, por exemplo, é algo muito distante para mim. Direito penal, não: a maior parte dos presos em cadeia são negros e, em geral, são os que mais sofrem violações de direitos humanos. Se eu tiver que defender alguém, serão os meus: as pessoas negras – diz a universitária.
Movimento negro e alunos cotistas ainda defendem que a ocupação de negros é menor do que dizem as estatísticas. A razão: apenas a partir do ano passado é que universidades criaram mecanismos para checar a raça de cotistas. Antes, casos de fraude eram comuns porque bastava apenas marcar ser negro na inscrição para a prova. Além disso, pesquisadores lembram que apenas 15% de todos os universitários estão em instituições públicas – os outros 85% estão em locais privados.