A professora Flávia Twardowski não costuma dizer “não pesquise isso” ou “não vai dar”. Orientadora de centenas de estudantes no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), campus Osório, no Litoral Norte, ela se acostumou a ouvir ideias das mais variadas: desde invenções que já existem, e portanto representariam pouco avanço científico, até projetos mirabolantes ou inadequados para serem desenvolvidos em um curto período. A todos, em um primeiro contato, dá atenção. Busca compreender. Pergunta o porquê da vontade de estudar aquilo, o que pode de fato ser feito no Ensino Médio em cima daquela ideia, qual o real interesse do proponente.
Assim, aplica uma série de filtros invisíveis para perceber o quanto os estudantes que a procuram com vontade de levar adiante suas pesquisas querem investir de tempo e de dedicação ao projeto. E ainda motiva os jovens a irem atrás de mais informações, a investigar, descobrir, saber o que já foi e o que ainda pode ser feito na área em questão.
Em novo contato, posteriormente, já fica claro quem está interessado de verdade. Aqueles que não desistem costumam retornar com argumentos mais robustos para motivar seu projeto – ou voltam com ideias totalmente novas. De um jeito ou de outro, criam bases para solidificar as propostas e fazê-las acontecer. E encontram, na professora, o apoio para torná-las realidade.
– A aplicação prática do que se aprende em sala de aula é muito significativa porque ajuda os alunos a enxergarem algum problema. E tentar resolvê-lo baseado no que conhecem. O jovem pega aquele conhecimento teórico, se apropria e tenta transformar em uma solução. Ele se envolve completamente. Quando consegue fazer isso, além de protagonizar a solução que ele mesmo identificou, aprende de forma muito mais interessante. E aquilo ele não vai esquecer – destaca Flávia, doutora em Engenharia de Produção.
Foi assim com Juliana Davoglio Estradioto, que estava ávida por engatar mais um projeto de pesquisa durante seu curso técnico em Administração integrado ao Ensino Médio no IFRS. As propostas anteriores apresentadas por ela, feitas ao longo dos três primeiros anos de estudos – no Ensino Médio integrado do IFRS, a formação dura quatro anos –, sempre sob orientação de Flávia, tinham sido muito bem-sucedidas, rendendo premiações regionais, nacionais e até internacionais para ela. Mas a jovem queria mais.
No início de 2018, então com 17 anos, Juliana foi, animada, à sala da professora para apresentar a nova ideia. Queria criar um casaco ecológico, feito de couro vegetal.
– Eu estava pesquisando sobre jaquetas alternativas ao uso de couro animal, e descobri uma que tinha sido produzida por microrganismos. Fiquei muito curiosa: como um serzinho que não conseguimos nem ver consegue produzir algo tão grande, que podemos até vestir?
Ela chegou com a ideia pronta, tendo já levantado algumas dificuldades e definido hipóteses, metodologia, objetivos. Estava, mais uma vez, cheia de vontade de partir para a prática. Foram surgindo, porém, outras oportunidades no caminho, em meio às orientações no instituto e interações com pesquisadores que ambas conheciam de apresentações em feiras de ciência. Logo Juliana e a professora viram a oportunidade de lapidar aquele projeto e transformá-lo em algo diferente.
A ideia do casaco deu lugar à intenção de criar uma biomembrana – plástico biodegradável produzido com microrganismos – feita a partir da casca da noz de macadâmia, capaz, entre outras possíveis funções, de substituir embalagens de plástico.
Se deu certo, você logo ficará sabendo. Antes, cabe destacar que a jovem, hoje com 19 anos e curso técnico concluído, despertou para a ciência com a orientação de Flávia. Juliana se interessou por participar de um dos chamados regulares que a professora faz em busca de bolsistas – e resolveu se inscrever, no início, ainda no 1º ano do Ensino Médio, de forma voluntária. Era, na época, uma extensão rural, em nada, aparentemente, ligada aos estudos da jovem, voltados para a administração de empresas. Mas seu interesse em pesquisar era maior.
– No meu último projeto, usei a casca da noz macadâmia como se fosse um alimento para microrganismos: ao mesmo tempo em que eles vão se reproduzindo e crescendo, produzem uma membrana. Ela pode ser usada para várias coisas, desde como alternativa para o plástico até aplicações na saúde. Desenvolvi uma embalagem para recolhimento de fezes animais e estamos investigando agora usar a membrana também como um curativo para cicatrizes – orgulha-se Juliana.
E vejamos, então, se deu certo: a jovem foi a ganhadora nacional do prêmio Jovem Cientista, promovido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na categoria Ensino Médio. Depois, ficou em primeiro lugar em Ciências Materiais na International Science and Engineering Fair (Isef), considerada a maior feira de ciências do mundo. Foi selecionada para acompanhar a cerimônia do Prêmio Nobel neste ano. E, ainda, escolhida para dar nome a um asteroide.
Ah, e não foi só.
– Participei três vezes da Mostratec (Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia); da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), duas vezes; da Isef, três vezes, todas com projetos diferentes. Nas feiras nacionais, ganhei quatro primeiros lugares e, na Isef, um quarto lugar em 2017, uma bolsa em 2018 e um primeiro lugar em 2019 – lista Juliana, que desde o início foi orientada por Flávia.
São muitas as histórias de sucesso envolvendo a professora. O caso de Juliana talvez tenha sido o de maior repercussão, mas há dezenas e dezenas de outros alunos inspirados por ela. Na sala que ocupa no campus do IFRS em Osório, Flávia enfileira troféus, medalhas, crachás, certificados. Em cima de uma mesa, figuram ainda lembranças de viagens que seus orientandos fizeram a feiras internacionais sem a sua companhia (nem sempre é possível conseguir recursos para bancar a participação em todos os eventos).
Ela própria recebeu, neste ano, o prêmio Professor Destaque nacional na Febrace, honraria em que já havia sido escolhida como finalista em 2014.
– A ciência é algo que motiva o tempo inteiro. Quanto mais os alunos estudam, mais eles descobrem as respostas. E isso acaba sendo uma motivação de vida. Eles encontram, muitas vezes na ciência, um motivo para continuar vindo para a escola, que muitas vezes não é o ambiente mais interessante de se estar – define a professora.
Sua área de concentração na pesquisa envolve, principalmente, o reaproveitamento de resíduos. Produtos que seriam jogados fora – como as cascas do abacaxi, da laranja, do maracujá, entre muitas outras – recebem nova destinação a partir de estudos que engajam os jovens estudantes. Muitos deles se veem, ao longo dessa iniciação científica e também depois, buscando respostas para dúvidas que eles tinham havia muito tempo, mas não sabiam que eram capazes de solucionar.
– Isso permite que a gente transforme inquietações em dúvidas científicas. E, com isso, consiga encontrar soluções. A pesquisa faz a gente filtrar e qualificar nossas inquietações. É um caminho para garantir a resposta a diversos problemas. Foi algo muito revolucionário para mim – celebra Maria Eduarda Santos de Almeida, 20 anos, outra ex-aluna de Flávia.
Conforme as pesquisas vão avançando, o tempo dedicado ao seu desenvolvimento aumenta – o que acaba envolvendo alunos e professora ainda mais. São frequentes as mensagens fora do horário de aula, nos fins de semana, à noite e também durante as férias. É uma dedicação e tanto, mas que os envolvidos veem como recompensada. E isso leva, também, a uma maior proximidade entre estudantes e orientadora.
– A Flávia é um dos meus exemplos de vida. De fazer o “a mais”, exatamente como fazem os alunos que, além do ensino, se interessam pela pesquisa. A gente não tem essa obrigação. E ela também não. Mas vai atrás, busca recursos, ajuda a levar adiante as ideias que a gente tem. Além de ser uma pessoa maravilhosa, ela é um exemplo de vida – garante Mariane Alves Palacios, 23 anos, uma das primeiras orientandas da professora.
Flávia, que intercala momentos de descontração com absoluta seriedade – e um tanto de timidez – nas salas de aula e laboratórios, não esconde o sorriso ao falar da importância do papel que ela escolheu desempenhar na vida dos alunos. E dela própria:
– É muito gratificante. Não só a pesquisa ser reconhecida, mas você também ser reconhecida por eles. É inacreditável fazer parte da vida de uma pessoa, e aquela pessoa realmente te ter como exemplo. Nunca pensei que isso fosse acontecer comigo. Sempre tive pessoas que acreditaram em mim. E hoje me vejo como a pessoa que acredita neles.
O projeto
- O quê? Incentivo à iniciação científica de estudantes do Ensino Médio. Em disciplinas de cursos técnicos ligadas ao Ensino Médio e em atividades não vinculadas diretamente aos cursos, estudantes são orientados a desenvolverem projetos de pesquisa inovadores e apresentá-los em feiras e mostras científicas no Brasil e até no Exterior.
- Quem? Flávia Twardowski, professora do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), campus Osório.
- Desde quando? O fomento à pesquisa entre estudantes começou no início de 2011, com as primeiras participações em eventos científicos sob a orientação da professora acontecendo logo depois. E, desde então, elas não mais pararam.
- Apoio – Ministério da Educação (MEC), Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS).
- Objetivo – Despertar o conhecimento científico de jovens estudantes para que possam, por meio de projetos de elaboração prática, contribuir para transformar o mundo ao seu redor, sendo os protagonistas dessas mudanças.
- Conquistas – Flávia calcula que, desde 2011, seus alunos tenham conquistado mais de 70 premiações, muitas delas com repercussão internacional.