Concluídas as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2018, é hora de encarar o que pode mudar no Enem de 2019, o primeiro com Jair Bolsonaro instalado no Palácio do Planalto. Foi o próprio presidente eleito quem lançou o mote. Na semana passada, falando ao vivo pela internet, ele desancou o conteúdo do teste de Ciências Humanas, atacou duramente o Ministério da Educação e prometeu mudanças para a próxima edição do exame.
Foi uma questão a respeito de dialetos, que tinha como apoio um texto sobre o linguajar usado por homossexuais e travestis, que enfureceu Bolsonaro. O tópico atingiu em cheio a grande preocupação educacional manifestada pelo futuro presidente ao longo dos anos e durante a campanha eleitoral: a presença de temas sexuais e de uma suposta "ideologia de gênero" no ensino.
— Essa prova do Enem, vão falar que eu estou implicando. Agora, pelo amor de Deus, esse tema, a linguagem particular daquelas pessoas, o que que nós temos a ver com isso, meu Deus do céu? Para o Enem do ano que vem, pode ter certeza, fique tranquilo, não vai ter questão dessa forma. Nós vamos tomar conhecimento da prova antes. Vão ter perguntas sobre Geografia, dissertação sobre História, questões voltadas ao que interessa ao futuro da nossa geração, do nosso Brasil. Ideologia de gênero! Que importância tem isso? Quem ensina sexo para a criança é papai e mamãe e ponto final — disse no vídeo.
A afirmação de que o governo vai olhar a prova com antecedência e intervir no conteúdo gerou grande repercussão, porque um dos pilares da credibilidade do Enem — o que inclusive levou a sua aceitação como canal de ingresso em universidades de outros países — é o sigilo e o forte esquema de segurança montado para garanti-lo.
Nem o presidente da República, nem o Ministro da Educação, nem o presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep) têm acesso ao conteúdo antes da aplicação. Em 2009, quando Fernando Haddad era ministro, um vazamento da prova chegou a causar escândalo nacional, obrigando ao adiamento do exame por dois meses. Em entrevista ao El País, a presidente do Inep, Maria Inês Fini, respondeu a Bolsonaro dizendo que "não é o governo que manda na prova", e que o Inep "tem uma diretoria específica de técnicos consagrados que, com a ajuda de uma série de educadores e professores universitários de todas as regiões do país, elaboram a prova.
Ao apresentar o balanço do Enem na noite deste domingo, em coletiva à imprensa, o ministro da Educação, Rossieli Soares da Silva, evitou polêmicas:
— Cabe ao presidente eleito fazer a gestão do Brasil a partir de primeiro de janeiro. Nós estamos aqui trabalhando para cumprir o calendário, estamos muito felizes com a realização do exame este ano, que é um sucesso — disse o ministro, que a partir de janeiro vai assumir como secretário da Educação de São Paulo, na gestão de João Doria (PSDB).
Rossieli ainda falou sobre a seriedade do processo de elaboração das questões, mas não comentou o conteúdo das provas.
— Temos comissões técnicas que fazem a elaboração das provas. O processo segue todos os ritos de segurança e o que é necessário para que se tenha um exame com qualidade. Não temos mais nada a declarar sobre as questões — disse o ministro.
A professora Cláudia Costin, ex-secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, elogia o grande sucesso do exame e o "quadro técnico sólido" responsável por elaborá-lo. Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ela acredita que as afirmações de Bolsonaro não têm como se traduzir em algo prático.
— O que o presidente eleito falou não faz sentido. Imagino que foi alguma coisa do calor do momento. Não acredito que vá acontecer, porque afetaria a credibilidade e o sigilo do Enem. Você pode mudar a estrutura do Enem, os campos de conhecimento que vão ser considerados, a dinâmica da elaboração e da aplicação do exame _ por exemplo, se ocorre em um ou dois dias. Mas não pode interferir na formulação das questões e quebrar o sigilo — afirma Cláudia.
Tenho certeza de que o Enem vai mudar radicalmente. Em primeiro lugar, vai ser conteudista, mas vão ficar só os conteúdos de competências, sem preocupação com conhecimento. Terá menos compreensão intelectual, teórica, ética e cultural. Além disso, vai descartar os saberes sobre nossa realidade social e política. Será um retrocesso intelectual.
MIGUEL ARROYO
Professor da UFMG
O educador Miguel Arroyo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tem visão diferente. Ele está convencido de que o futuro governo "vai mudar radicalmente" o Enem. A previsão dele é que o presidente do Inep a ser nomeado por Bolsonaro irá alterar a equipe que trabalha no Enem e traçará novas diretrizes para o trabalho.
— Bolsonaro tem como interferir no conteúdo sem precisar olhar a prova antes, porque ele nomeia o ministro, o ministro coloca o presidente do Inep e o presidente do Inep tem o direito de mudar toda a equipe. E ele vai realinhar essa equipe que faz a prova. No ano que vem já vai ser outra. Tenho certeza de que o Enem vai mudar radicalmente. Em primeiro lugar, vai ser conteudista, mas vão ficar só os conteúdos de competências, sem preocupação com conhecimento. Terá menos compreensão intelectual, teórica, ética e cultural. Além disso, vai descartar os saberes sobre nossa realidade social e política. Será um retrocesso intelectual.
Para Arroyo, a visão de Bolsonaro sobre o Enem coloca em risco justamente o que o exame tinha, na avaliação dele, de mais positivo: valorizar a capacidade de interpretação, em detrimento da mera memorização, e confrontar o estudante com questões sociais, econômicas e identitárias.
— Educação, para Bolsonaro, é simplesmente formar competências para o mercado de trabalho, para ser produtivo. Se esse trabalhador vai ter consciência, não interessa.
No vídeo em que atacou o Enem, o presidente eleito de fato apresentou sua concepção sobre o ensino, relacionando-a diretamente à formação de mão de obra.
— Qual o objetivo da educação? No final da linha, você ser um bom técnico, você ser um bom profissional do Ensino Superior, um bom patrão, um bom empregado, um bom liberal. E não um conhecedor dessas besteiras, ideologia de gênero. As universidades aqui, pelo amor de Deus, uma parte considerável delas é dinheiro jogado fora. A gente vai tentar mudar isso aí, porque a maioria dos brasileiros que votaram em mim não quer mais isso, eu também não quero mais isso. Assim tem de ser o nosso ensino: o pai e a mãe têm de ter a garantia e a tranquilidade que quando o filho está indo para a escola não é para aprender a fazer sexo, não! Ô, pessoalzinho que está no Ministério da Educação, se é que eu posso falar que é educação esse ministério que está aí: não é assim, não!