No ano em que foi aprovada no concurso do magistério estadual, Luciane Manfro foi chamada para assumir o cargo de escrivã na Polícia Civil gaúcha. Formada em Educação Física, passou a dividir a rotina entre a delegacia durante o dia e a escola à noite. Doze anos depois, assumiu a coordenação da Comissão de Prevenção a Acidentes e Violência Escolar (Cipave), menina dos olhos do governo do Estado comandado por José Ivo Sartori. De uma escola atuante em 2015, o programa passou para quase a totalidade da rede em 2017 – são 2.430 instituições com comissões para prevenir casos de violência. Aos 49 anos, a policial e professora orgulha-se em mostrar dados que apontam a redução de casos de agressões e bullying. Duas coisas ainda a preocupam: a falta de preparo dos professores para lidar com alunos tão diferentes e a escassez de dinheiro para investir em formação.
Como começou essa trajetória de policial e professora?
Fiz licenciatura em Educação Física e trabalhava há 15 anos com treinamento esportivo. Mas sonhava ser policial. Fiz concurso em 2001 e, em 2003, fui chamada para a academia de polícia. Passei no concurso do magistério estadual no mesmo ano e fui nomeada para 20 horas semanais. Resolvi assumir as duas coisas.
Como foi lidar com essa dupla rotina?
Puxado: era uma rotina de 60 horas de trabalho por semana. Fui tentando conciliar as duas profissões.
Essa atuação peculiar a levou a trabalhar com violência escolar...
Os professores queriam aproveitar o conhecimento que eu tinha por ser policial. Sempre me pediam: “Quem sabe você dá um toque para aqueles guris, eles estão fumando maconha antes de entrar no colégio”. Queriam que eu desse um susto. Mas eu preferia manter a postura de professora na escola (Francisco José Rodrigues, em Cachoeirinha), e não assumir uma posição de policial, de repressora. Então comecei a falar com eles sobre a minha profissão como policial, contar histórias. E os alunos passaram a querer saber mais sobre como era o meu trabalho. Conversei com a diretora, e criamos uma palestra sobre ato infracional e Estatuto da Criança e do Adolescente. Outras escolas passaram a me convidar para palestrar também. Inicialmente, todas em Cachoeirinha. Em Parobé, município em que eu trabalhava como policial durante o dia, o delegado teve uma ideia parecida: quis aproveitar minha experiência como educadora para dar palestras aos jovens. Foi assim que tudo começou.
Como foi a aproximação com o trabalho da Cipave?
Depois de 12 anos nessa rotina dupla, fui transferida para uma delegacia em Porto Alegre. Então, precisava trocar para uma escola da Capital também. Não conseguia nenhuma vaga para dar aula no noturno, já estava até pensando em desistir do magistério. Até que um policial que eu conhecia falou com o (então) secretário Vieira da Cunha. O governo (Sartori) estava começando e não tinha ninguém para tocar esse projeto. O secretário então me convidou para assumi-lo.
A Cipave foi instituída por lei em 2012. Como era o programa quando você chegou à secretaria?
Havia apenas uma escola no programa, a Ayrton Senna da Silva. Quando foi criada a lei, todas as escolas foram convidadas a participar, mas só essa instituição de Porto Alegre aderiu no primeiro momento. Como o governo que assumiu tinha interesse no programa, defini metas para que outras instituições aderissem a ele. O objetivo era chegar ao final de 2015 com cem escolas, mas alcançamos 1,3 mil. Foi um susto, até. Então decidi criar um formulário com 10 questões e enviei para todas as escolas do Rio Grande do Sul para poder mapear quais eram os principais tipos de violência e, a partir daí, começar um trabalho em cima disso. Do total, 855 responderam, o que já me deu uma boa base do que estava acontecendo.
A indisciplina gera violências mais graves, porque o ato de dizer não, a falta de respeito, coisinhas a princípio bobas, se transformam em discussão, briga no recreio. É o início de tudo.
LUCIANE MANFRO
Coordenadora da Cipave
Que tipo de violência mais chamou a sua atenção naquele mapeamento?
Percebi que 60% da violência que perturbava o funcionamento das escolas é relacionada à indisciplina. Agora, conseguimos reduzir, mas segue como o principal fator. A indisciplina gera violências mais graves, porque o ato de dizer não, a falta de respeito, coisinhas a princípio bobas, se transformam em discussão, briga no recreio. É o início de tudo.
A indisciplina é o que mais aparece. É o que mais preocupa?
A agressão física entre os alunos e contra professores e servidores das escolas – que diminuiu bastante, mas ainda acontece. E tem também o bullying, que é muito presente. Desde o primeiro mapeamento, notei que precisava fazer algo logo. Então, fui em busca de parcerias com Brigada Militar, Polícia Civil, Conselho Tutelar, Ministério Público, equipes de saúde. E isso ajudou a mudar a relação entre essas instituições e as escolas. A polícia, por exemplo, não era chamada para dialogar; só ia até a escola quando acontecia alguma coisa, quando tinha algum problema. Com o programa, isso mudou: conseguimos criar uma rede de prevenção.
Como funciona o trabalho dentro das escolas?
Para criar a Cipave em uma escola, é preciso reunir cinco segmentos: pais, alunos, professores, funcionários e direção. Eles debatem quais são os problemas na escola, se é o tráfico no entorno, se é o índice alto de meninas grávidas, se é o bullying. A própria comunidade faz esse mapeamento e propõe soluções. Em 2015, uma escola registrou 200 casos de bullying em um semestre. Antes, só apagavam incêndio, chamavam os pais, discutiam e... acontecia tudo de novo. A partir da Cipave, começaram a chamar psicólogos e outros parceiros para debater, e o problema se resolveu.
Esses parceiros, além dos órgãos públicos, são todos voluntários?
Sim. Se os parceiros precisarem de material didático, deslocamento, nada disso envolve custos para o Estado, esse é o lema. A gente precisou arrecadar muitos parceiros, hoje são 30 fixos em nível estadual, mas as escolas têm liberdade para procurar parcerias em nível local e regional.
Hoje a Cipave está em 2,4 mil das 2,5 mil escolas estaduais. Por que não se chegou à totalidade ainda? Existe resistência?
Dessas cerca de cem escolas que faltam, 75 são de Porto Alegre. As outras são da Região Metropolitana. Existe resistência, sim. A grande maioria das direções diz que tem medo de chamar atenção dos líderes do tráfico. Não querem se arriscar. E tem a questão política também: o programa foi criado em Caxias do Sul (quando Sartori era prefeito do município), virou lei estadual proposta por Maria Helena Sartori (então deputada, hoje secretária estadual de Justiça). Por mais que a gente tente mostrar que é uma política de Estado, e não de um governo, as pessoas associam a um partido. Mas a maioria já não pensa assim. Viu o bem que o programa faz, e essa questão política fica menor. Vamos buscar as escolas que faltam mostrando que o benefício é grande.
É preciso perder o medo de se relacionar com a comunidade na qual a escola está inserida.
LUCIANE MANFRO
Coordenadora da Cipave
Desde que assumiu, o governador tem usado a Cipave como uma bandeira da sua gestão. Como a senhora vê isso?
Não vejo problema: a Cipave é um exemplo. Não envolve custos, fortalece os elos entre as secretarias, porque o programa precisa da Saúde, da Cultura, do Esporte e da Segurança. E as escolas também passam a conviver com a comunidade de uma maneira diferente. É preciso perder o medo de se relacionar com a comunidade na qual a escola está inserida. Um exemplo é a escola de Cachoeirinha na qual a menina Marta (Avelhaneda Gonçalves, 14 anos) foi morta (na sala de aula, em março de 2017). A instituição foi cobrada porque não fazia nada para combater o bullying e a violência. Depois da tragédia, passou a adotar o programa e, na primeira reunião com a comunidade, percebeu-se que a escola era feia, suja, toda pichada, por isso os alunos sentiam vergonha de estudar lá. O ginásio de esportes estava ocupado com entulho. E ainda teve um terceiro ponto, uma árvore com uma sombra muito boa onde os alunos queriam brincar, mas que servia de estacionamento para os carros dos professores. Eles perceberam que dava para melhorar com coisas simples. Os pais fizeram uma vaquinha, compraram tintas para pintar o muro, tiraram os entulhos do ginásio, os carros dos professores saíram da sombra da árvore. E aí todos passaram a se orgulhar: "Tivemos uma tragédia aqui, sim, mas hoje a nossa escola é bonita".
Essa tragédia poderia ter sido evitada?
É difícil falar agora. A menina era nova na escola e os colegas não quiseram aceitá-la, faltou um trabalho de aceitação do diferente. É a mesma coisa que não querer um negro, um gordo, um homossexual, pela sua diferença. Marta tinha a diferença de não ser daquele bairro. Deveria ter sido feito um trabalho com os jovens para acabar com essa intolerância que, provavelmente, já estava permeando as relações. Não sei se a tragédia poderia ter sido evitada, mas, se esses jovens tivessem consciência do mal que fazem com essa não aceitação, talvez a primeira briga já tivesse sido freada – pelos próprios colegas, sem a intervenção dos professores.
A rede estadual tem atendimento psicológico?
Não. Isso é feito pelos municípios. Claro que existe dificuldade, o município vai sempre priorizar os alunos da sua rede no atendimento.
O professor acaba assumindo o papel de psicólogo?
Sim. Mesmo sem conhecimento técnico da psicologia, o professor tenta ajudar. Houve um caso de automutilações, algo que existe há muito tempo, mas que ficou mais frequente com as redes sociais. Nove alunos se automutilaram em três meses em uma escola. Todos usaram a mesma gilete. Fizemos uma força-tarefa para falar sobre cuidados com a saúde, sobre depressão, com uma série de eventos. Os professores perguntam: "Como eu lido com isso?". Sempre digo que eles não devem lidar com a automutilação em si, mas com o que leva os jovens a se identificarem com o grupo de autoflagelo, de sofrimento. Por que querem se sentir assim?
É a rebeldia adolescente?
Essa rebeldia é uma coisa difusa, uns brigam com todo mundo, outros querem sofrer mais do que todo mundo, tem os que querem ser mais bonitos do que todo mundo ou aparecer mais. Cada um tem uma motivação. Eles precisam se autoafirmar, se encontrar na sociedade. Depende do lobo que tu alimentas mais, o lobo bom ou o lobo mau.
Como você trabalha para engajar professores que têm de dar aula e ser psicólogos ao mesmo tempo diante de um cenário de parcelamento de salários e de tantas dificuldades na educação?
A gente mostra exemplos. Leva os parceiros para desenvolver esse trabalho preventivo, e o professor participa disso. Ele começa a perceber a modificação no comportamento dos alunos e faz uma autoavaliação sobre mudar seu próprio comportamento perante aquele aluno. Sim, tem salário parcelado, sim, recebe pouco, mas é a profissão que tem. É preciso buscar se relacionar de forma mais amistosa com os alunos. A maioria entende a necessidade de amar a profissão, de encontrar prazer naquilo que faz. Aí buscamos essa motivação com os parceiros, com as formações que fazemos dentro da temática da justiça restaurativa, porque todo professor que tem contato com esses círculos de construção de paz cria um vínculo forte com os alunos e a comunidade.
Os dados apontam redução na violência com as comissões. Mas os números ainda são altos.
As escolas que estão nos bairros violentos e que têm situação de toque de recolher não entraram no programa porque têm medo.
LUCIANE MANFRO
Coordenadora da Cipave
Esses números não refletem totalmente o que está acontecendo, porque as escolas ainda estão se habituando a registrar os casos. Eu até esperava que as estatísticas piorariam, porque agora está se informando tudo. Antes não existia a necessidade de apontar todos os casos de violência. Se um aluno era assaltado perto da escola, era feito um boletim de ocorrência na Polícia Civil e não se tinha registro na instituição de ensino. Agora tem. Sobre a indisciplina, que domina os números, em dois anos houve 7 mil casos a menos.
De que forma a violência na sociedade gaúcha em geral afeta as escolas?
As escolas que estão nos bairros violentos e que têm situação de toque de recolher não entraram no programa porque têm medo. Mas as escolas que passaram a aderir conseguiram mudar a forma de relação com a comunidade. Quando se perde o medo e se mostra que a escola é um território neutro, que precisa de respeito, a situação no entorno melhora.
Você comentou que se trata de um programa que praticamente não demanda custos ao Estado. Se tivesse dinheiro, seria diferente?
Sim. Precisamos de dinheiro para a formação dos professores. Os educadores precisam estar preparados para identificar os jovens com mudanças no comportamento. Precisam de capacitação para saber lidar com as diferenças. Mas são formações que custam caro. Também precisaríamos que cada escola tivesse um espaço, uma sala para debater, desenvolver projetos de filmagem, de dança, um ambiente para se reunir e desenvolver ações. Além disso, seria importante ter um incentivo para a formação dos grêmios estudantis, para que as escolas incentivem a participação dos jovens desde cedo no exercício da cidadania.
E, principalmente, quando se fala nos professores, seria muito bom se o responsável pela escola pudesse chamar os docentes para que, durante cinco ou 10 horas, eles se dedicassem ao projeto, buscando parceiros, criando iniciativas diferentes para engajar os alunos. Se recebessem a mais para fazer isso, o engajamento seria bem maior. Uma quantia de R$ 200 ou R$ 300 a mais no salário já faria uma grande diferença.
Você já pleiteou isso?
Não. Por enquanto é complicado. Mas é uma questão que pode se pensar assim que o governo conseguir equilibrar as finanças.
Os pais e a comunidade têm participado?
Normalmente a gente chama o pai na escola para reclamar, para mostrar um problema relacionado ao seu filho. Com a vinda da Cipave, o pai sabe que vai até a escola para dar sugestão, para participar de algo que vai ser bom para ele, para o filho, para a comunidade. Mas ainda estamos muito longe de uma participação ativa. Queremos que os pais estejam mais engajados com a educação.
Os casos de violência dos pais contra educadores preocupam?
Há relatos de agressão física, mas são casos isolados, não aparecem como um problema. Já a agressão verbal é diferente: ocorre com maior frequência. Temos trabalhado em cima disso. É preciso mudar a relação, ter os familiares como aliados para melhorar a escola, engajá-los nisso, e não vê-los como pessoas que vão até o colégio para criticar o professor.
Existe violência por parte do professor?
Muitos professores discriminam os alunos. Quando acontece algo na escola, dizem "esse é burro, nunca vai ser nada na vida", "é um maloqueiro", "só poderia ter sido ele mesmo". Rotulam. E acabam fazendo parte da violência. Nesse ponto, vejo um problema mais antigo: a formação dos professores. O curso de licenciatura não prepara para as diferenças. Ensina a transmitir conteúdos, mas não a lidar com personalidades e atitudes diferentes, de rebeldia. Acham que são autoridade máxima e quem não respeita deve sair. Não entendem que o jovem tem dificuldade de ver o professor como uma referência. Falo isso como professora. Já aconteceu de aluno cuspir em mim. O que fazer? Ou eu pedia uma suspensão, ou sentava e conversava. Nem sempre a gente tem disposição de conversar. Sei que é difícil, mas, se houvesse uma preparação na faculdade, o professor chegaria melhor à sala de aula.
Qual foi a maior contribuição da Cipave?
A Cipave veio como um marco para a união e, principalmente, para o envolvimento de toda a comunidade escolar sem aquela máxima do diretor “a escola é minha”. A escola é nossa, as decisões são nossas. Quando criamos a campanha de vídeos (um concurso envolvendo as escolas), percebemos isso porque toda a comunidade teve de se engajar na votação online. A escola vencedora, por exemplo, recebeu votos dos EUA, da China, porque os alunos envolveram todas as pessoas que conheciam. E também foi legal ver que escolas de outras regiões do país conheceram o nosso projeto e se interessaram por ele.