Armários e geladeiras caídos, mesas e cadeiras espalhados por cômodos aos quais não pertenciam, brinquedos do playground pendurados sobre os portões e a lama que se impregnou em cada centímetro dos prédios denunciam que foi impossível às escolas passarem incólumes pela enchente de maio de 2024. Mas a cicatriz mais profunda é nos alunos.
Entre traumas e mudanças de cidade, muitas instituições viram o número de estudantes despencar. No Interior, a situação mais comum foi a alta nos pedidos de transferência de matrícula para outros municípios ou estabelecimentos. Em Porto Alegre e Região Metropolitana, foi a infrequência acentuada e falta de informações sobre o paradeiro de alguns estudantes.
Não há escola que não tenha sido atingida pela enchente no Rio Grande do Sul.
MATEUS SARAIVA
Professor da UFRGS
— Mesmo entre as que não foram danificadas pela enchente, não há escola que não tenha sido atingida pela enchente no Rio Grande do Sul. Ou a comunidade foi atingida, ou tem famílias que vieram de outros lugares e se matricularam naquela escola, ou há até um processo migratório no período que acabou impactando aquela comunidade escolar — define Mateus Saraiva, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na área da Política e Gestão da Educação.
Na rede municipal de Porto Alegre, foram registrados 571 pedidos de transferência de escolas atingidas pela enchente entre maio e agosto. A maior fatia (178) foi para mudar a matrícula para outro município. Em segundo lugar, estão solicitações de troca para a rede estadual (160). O número é 166% maior do que as 214 solicitações do mesmo período de 2023.
Em Canoas, na Região Metropolitana, no dia 18 de outubro, 1,1 mil alunos ainda não estavam frequentando as aulas na rede municipal, de 27.388 matriculados no Ensino Fundamental. O número já foi pior: em setembro, por meio da Rede de Apoio à Escola (RAE), foram localizados 656 estudantes, que retornaram para as aulas. Em outubro, outros 200 tinham sido recuperados. Com relação aos pedidos de transferência para outras instituições da cidade, a maioria tem sido atendida.
Entre maio e julho de 2024, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) registrou 27.839 pedidos de transferência para outras escolas. O número é 40% maior do que as menos de 20 mil solicitações feitas no mesmo período de 2023.
Segundo a secretária estadual de Educação, Raquel Teixeira, a movimentação dos alunos em consequência da enchente ainda está sendo estudada, mas há indicativo forte de que o aumento nas transferências se deva à tragédia climática. A maior parte dos pedidos foi para escolas do Litoral Norte e de Caxias do Sul, na Serra. A secretária não dá números, mas confirma que a frequência dos estudantes tem sido baixa:
— Nós temos feito reuniões sistemáticas de acompanhamento, temos feito um trabalho de estímulo aos diretores, de ir atrás do aluno infrequente, mas a gente, de fato, só vai ter certeza disso na época da matrícula, na época do Censo (Escolar, divulgado pelo Ministério da Educação) e no período de março. Agora, em novembro, a gente já começa a ter um início de panorama. Entre 11 de novembro e 1º de dezembro temos a primeira fase, que a gente chama de inscrição, que é uma espécie de pré-matrícula. Aí, já teremos, mais ou menos, essa movimentação — ressalta.
O temor é de que os índices de abandono e evasão escolar, já acima da média nacional no Rio Grande do Sul, aumentem após a enchente.
- Abandono escolar: é o termo utilizado quando um estudante deixa de frequentar as aulas ao longo do ano letivo
- Evasão escolar: diz respeito àqueles que sequer se matricularam
Nos últimos 10 anos, o Estado registrou taxas de abandono escolar semelhantes ou inferiores às brasileiras no Ensino Fundamental. No Ensino Médio, a média de matriculados que não concluíram algum dos anos da etapa no RS supera os índices nacionais, em especial desde a pandemia. Em 2023, o índice de inconclusão foi mais do que o dobro do brasileiro.
— É uma geração muito prejudicada. Dois anos de escolas fechadas com a covid, ameaças nas escolas de uma forma que a gente nunca teve e, agora, esse evento climático terrível que destruiu o Rio Grande do Sul. Então, é uma geração com a qual a gente tem uma preocupação e, por isso, tem que ajudar de todas as formas — diz Raquel.
No que se refere à taxa de evasão, os dados de todo o Brasil estão defasados – a divulgação mais recente desse índice, no qual é feito o cálculo percentual dos alunos que estavam matriculados em um ano e não se matricularam no ano seguinte, é relativa a informações do período 2020/2021. Procurado, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) não respondeu qual a perspectiva de atualização desse levantamento.
Nos últimos cinco cálculos realizados (de 2016/2017 a 2020/2021), a evasão entre crianças do Ensino Fundamental se manteve menor no RS do que a média nacional, variando de 1,7% a 2,1% no RS, contra 2,1% a 2,5% no país. No Ensino Médio, a situação novamente muda de figura: se no Brasil a percentagem de alunos que não se matricularam no ano seguinte variou de 5,9% a 9,7%, nas escolas gaúchas o índice variou de 11% a 16,5%.
O que causa o abandono e a evasão?
Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e professor visitante junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará (UFPA), Romualdo Portela avalia como alto o risco de abandono ou evasão diante da destruição de uma escola ou da mudança da criança para longe da instituição. No entanto, entende que um quadro mais claro será verificado no ano que vem:
— No fundo, a variável-chave é a estabilização da população, que é onde essa população vai residir e, em função disso, qual acesso à escola ela vai ter. De toda maneira, esses fenômenos envolvendo catástrofes obviamente têm impacto desde o acesso até o aprendizado. A criança pode não se afastar completamente do sistema escolar, mas passa a ter uma frequência absolutamente caótica, vai uma vez por semana, duas vezes, não se integra à nova escola.
Há duas razões apontadas pelo pesquisador para o desinteresse dos jovens pela escola, algo potencialmente gerador de abandono e evasão. O primeiro é simples: as instituições nem sempre serem vistas como locais agradáveis onde se deseja estar. O segundo é uma crença menor no estudo como mecanismo de inserção profissional e melhoria de vida.
— Vivemos em um mundo, e em um Brasil, em particular, em que a esperança da juventude é escassa. O aluno para de frequentar a escola em um episódio desses (enchente) e diz “bom, não me fez muita diferença, pelo menos no curto prazo, e, pela situação, meus pais exigem menos que eu vá. Então, é melhor ficar sem ir”. Isso deveria produzir uma reflexão na escola sobre seus métodos, sua ação e a interação real que ela tem com a juventude — observa Portela.
Portela cita como exemplo de diferença entre as escolas a realidade do Estado de São Paulo, que guarda semelhanças com a do RS. Lá, há três situações de instituições:
- localizadas na capital, que têm menos alunos e conseguem oferecer uma qualidade melhor
- localizadas na periferia, que enfrentam mobilidade populacional maior que, com frequência, gera superlotação e falta de professores
- localizadas no Interior, onde há estabilidade populacional maior e melhores condições de ensino
— Muitas vezes, em cidades muito pequenas, não tem rede privada, então a elite local estuda na escola pública, o que ajuda que haja uma pressão social para uma melhor qualidade — pontua o docente da USP.
Nessas comunidades, Saraiva salienta que o sentimento de pertença àquele contexto social, no qual os estudantes contam com redes de apoio e uma relação mais próxima com seus professores, ajuda a combater a evasão.
— Temos um nível de impessoalidade nas grandes "urbes" que é assustador para o jovem. Para quem já está desestimulado, chegar a uma escola e ninguém saber o nome, não conhecer a história dele, não conhecer os irmãos, é um prato cheio para nunca mais ir. Isso aparece em pesquisas sobre juventude: o jovem se engaja por um local onde há troca efetiva com ele — resume o professor da UFRGS.
Em circunstâncias onde há muitos docentes com contratos temporários, entretanto, falta tempo para fazer esse movimento, sugere Saraiva.
Portela menciona dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que apontam que aproximadamente 90% da população fora da escola vive em famílias com renda per capita de até um salário mínimo, o que indica uma correlação da evasão escolar com a pobreza.
Por esse motivo, acredita na força das políticas de renda cidadã, como os programas Pé-de-Meia e Todo Jovem na Escola, para combater o problema. A reprovação dos alunos também é apontada como “indutor” da evasão.
Saraiva salienta, no entanto, que a oferta de bolsas precisa levar em conta as realidades regionais – o Rio Grande do Sul, por exemplo, tem um custo de vida mais alto do que outros Estados:
— Fazer a mesma bolsa nacional, o que tem sentido, por uma questão de isonomia, faz com que, aqui, a bolsa valha menos – R$ 150, R$ 200 podem ser o suficiente somente para pagar passagem de ônibus e voltar da escola, não compram um livro, um tênis, uma roupa. A mesma política desenhada num Estado ou numa região que tem um custo de vida mais baixo vai funcionar lá e aqui não funciona.
* A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação, da Jeduca e da Fundação Itaú