O Conselho Tutelar da Restinga e do extremo sul de Porto Alegre está recebendo diariamente dezenas de famílias que ainda buscam vagas em escolas nos ensinos Fundamental e Médio. Agora, depois do período de matrícula e com aulas já ocorrendo, os pais e responsáveis são orientados a procurar diretamente os colégios, mas muitas vezes recebem respostas negativas e recorrem ao órgão, relata a coordenadora geral dos Conselhos Tutelares de Porto Alegre, Alice Goulart.
Há casos de famílias que fizeram a pré-matrícula na internet no período correto e o sistema retornou que elas não haviam sido contempladas. Entre os motivos para as crianças e adolescentes ainda não terem se matriculado ou estarem buscando transferência estão: não se inscrever no período correto, ser colocado em escola de Ensino Fundamental a mais de três quilômetros de distância de casa, estar em risco na região do colégio em que foi contemplado (por brigas territoriais de facções criminosas, por exemplo) e mudança de território.
Na segunda-feira (19), dia de volta às aulas e também quando o Conselho Tutelar da Restinga e Extremo Sul recebeu a maior demanda até agora, foram 80 atendimentos do tipo. Alice diz que as classes com mais solicitações são o 1º ano do Ensino Fundamental e o 1º ano do Ensino Médio.
— As pessoas ficam desesperadas. (Dizem) "Olha, começaram as aulas, meu filho está fora, o que eu faço?" — comenta Alice.
Com tanta demanda, os funcionários do órgão estão preocupados com as solicitações que devem receber no próximo mês, quando o prazo de transferências, cortes e ajustes nas escolas termina. É quando o Conselho Tutelar pode começar a fazer requisições junto à Secretaria da Educação do RS (Seduc), responsável pela gerência das vagas nos ensinos Médio e Fundamental.
— Com isso (fim do período de ajustes), "confirma-se" a falta de vagas e está configurada a violação de direitos, então podemos começar a enviar requisições — explica Alice.
A procura por vagas nesta época do ano teve um salto em 2022 e continua alta até hoje, salienta Alice. Em março de 2022 (depois do período em que todas as crianças e os adolescentes já deveriam estar alocados), o Conselho Tutelar da Restinga e Extremo Sul atendeu 458 famílias em busca de vagas nos ensinos Fundamental e Médio, no mesmo mês de 2023 foram 604. Em 2020 a demanda era muito menor, de 200. E pelo fluxo observado neste ano, Alice estima que o número de atendimentos vai aumentar em relação a 2023.
Os dados mostram um problema que pode ser ainda mais grave, pois consideram apenas as famílias que chegaram a buscar o Conselho Tutelar, ressalta a coordenadora. Alice lembra de uma família que procurou o órgão em março de 2023 com uma criança que estava chegando aos nove anos de idade e desde 2021 ainda não tinha conseguido vaga em nenhuma escola para iniciar o 1º ano do Fundamental. O caso foi levado ao Ministério Público e a criança conseguiu uma instituição para iniciar os estudos apenas em outubro do ano passado.
— Ficamos em alerta, porque o problema que hoje é de educação, amanhã é de segurança pública — ressalta a coordenadora.
A subdirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do RS (Nudeca - DPERS), Anelise Sturm, confirma que a instituição recebe muitas famílias procurando vagas todos os anos. Segundo ela, os casos mais comuns são de estudantes que foram matriculados em escolas distantes de suas residências e buscam transferência.
Quando há muitos casos de crianças e adolescentes sem vaga, o Conselho Tutelar comunica o Ministério Público (MPRS). Questionado pela reportagem sobre o atendimento a estudantes nessa situação, o MPRS afirmou que, quando os casos chegam ao órgão, é ajuizada Ação Civil Pública buscando garantir o acesso à educação. O órgão informou, ainda, que a Promotoria de Justiça Regional da Educação de Porto Alegre (Preduc-Poa) solicitou à Secretaria Municipal da Educação (Smed) e ao Conselho Tutelar da microrregião informações sobre a existência de alunos não contemplados com vagas neste ano.
O que causa o problema
Por um acordo da gestão pública, a Secretaria da Educação do RS é responsável pela gestão das vagas nos ensinos Fundamental e Médio em Porto Alegre. É à Seduc que o Conselho Tutelar encaminha as requisições de vagas quando o período de ajustes é encerrado. A explicação para crianças estarem fora da sala de aula após o início do ano letivo, de acordo com a pasta estadual, é de que houve um aumento populacional.
Alice explica que há mais ocupação e novos empreendimentos na Restinga e Extremo Sul, mas sem contrapartida do Estado. Segundo a coordenadora, muitas pessoas que haviam mudado de cidade estão voltando a morar no território, junto com as famílias, e uma diminuição do poder aquisitivo dos moradores fez com que voltassem a matricular seus filhos em escolas públicas, o que aumentou a procura pela rede.
Esses problemas ficaram mais nítidos depois do fim do ensino a distância, quando alunos deixaram de ser encaixados em vagas que não existiam “fisicamente”, já que recebiam aulas fora do ambiente escolar, conta Alice.
— Era tudo online. A gente tinha sala, tudo, mas com 60 alunos. E a gente dizia: em 2022 isso vai dar problema.
Outra questão destacada pela coordenadora é a dificuldade de muitas famílias de fazer as inscrições online, não só por falta de acesso de qualidade à internet, como também por dificuldade de navegar pela plataforma e completar a matrícula, com todos os documentos que precisam ser anexados.
De acordo com a Seduc, os estudantes que não passaram pelo processo de inscrições para pré-matrículas da Chamada Pública e que precisam de transferência de escolas são os que mais demandam vagas nesta época do ano. Em Porto Alegre, a secretaria afirma estar atendendo, por dia, em torno de 200 pessoas que solicitam vagas, número um pouco menor que o do ano passado.
À reportagem, a Seduc informou que não existe um déficit de vagas nos ensinos Fundamental e Médio em Porto Alegre. Porém, em nota, a pasta reconheceu o aumento dessas demandas na Restinga e Extremo Sul e classifica a situação como “atípica”.
A Seduc afirma que medidas como a abertura de novas turmas e a disponibilização de salas de aula em instituições de ensino localizadas nos arredores da região estão sendo tomadas. Além disso, garante que todas as solicitações serão atendidas.
“Já bati em todas as escolas da Restinga e elas dizem que não tem vaga”, diz mãe de estudante
Simone da Silva se mudou de Pelotas para a Restinga no ano passado e tenta desde dezembro matricular seu filho de oito anos no 3º ano do Ensino Fundamental. Ela relata ter ido diversas vezes à Central de Vagas da Seduc para tentar a matrícula, mas não conseguiu nada. Também tentou ir diretamente às escolas da região e agora, depois da orientação da vice-diretora de um dos colégios, recorreu ao Conselho Tutelar.
— Já bati em todas as escolas da Restinga. Eles dizem a mesma coisa, que não tem vaga. E a fila estava enorme, enorme, enorme nos colégios — relata.
Simone diz sentir-se desorientada porque ainda não conhece a cidade. Foi trazida até o órgão pela nora. Já que não conseguiu vaga em nenhuma escola, ela pensa em recorrer ao Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) para que o filho não fique na rua durante o dia.
Leia a nota da Seduc na íntegra:
“Em relação à oferta de vagas da Rede Estadual na região da Restinga e extremo sul da cidade de Porto Alegre, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) identifica que existe uma demanda atípica na região e trabalha, desde antes do início do ano letivo, para garantir a matrícula de todos os alunos.
O grupo de trabalho é composto por entidades da sociedade civil e do poder público como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, Conselho Tutelar, entre outros. Diversas medidas estão sendo tomadas, como a abertura de novas turmas e a disponibilização de salas de aula em instituições de ensino localizada nos arredores da região. Na própria Escola Raul Pilla, da Restinga, por exemplo, poderão ser acomodadas um total de nove turmas em três turnos diferentes. Estas salas poderão acomodar alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Além disso, outras ações da Rede em consonância com os demais órgãos públicos estão sendo efetuadas constantemente.
A Seduc reitera ainda que todos os alunos serão atendidos e matriculados. Além disso, ocorrerão circuitos de encontros com as microrregionais do Conselho Tutelar para cruzar as informações e sanar as necessidades pontuais.”