Durante cinco décadas, a caneta e o caderno foram objetos estranhos para Nilza Marques. Trabalhadora rural na infância, babá na adolescência e faxineira na atualidade, a moradora de Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo, deixou a escola antes de aprender a ler: para se dedicar à lida no campo, abandonou os estudos aos sete anos. Retornou à classe quando alcançou os 50, enfrentando o temor da rejeição.
— Sentia vergonha. Mas na escola conheci muita gente que também não sabia ler, e os professores também me deram muita força. Tinha vergonha de entrar no colégio. Hoje a leitura me abriu o mundo, posso voar nas palavras — conta.
Agora com 54 anos, Nilza tomou gosto pela poesia a tal ponto que inscreveu sua obra no 12º Concurso Literário de Venâncio Aires, realizado na Feira do Livro do município, no final de outubro. Com rimas que traçam a linha do tempo de sua vida, tirou o primeiro lugar.
O texto foi construído em sala de aula, atividade da professora Silvânia Carvalho, na turma de Ensino de Jovens e Adultos (EJA) da Escola Municipal de Ensino Fundamental Dois Irmãos. A educadora expôs para os alunos um CD do poeta Bráulio Bessa, com a provocação de que eles deveriam também construir uma narrativa a partir de experiências próprias.
— Ver eles escrevendo e trazendo sua história em forma de poema já foi muito gratificante. É uma emoção saber que mais uma pessoa está se emancipando pelo EJA — comemora a professora.
A interpretação da recém-alfabetizada leitora ainda é vagarosa, com dificuldade na junção de vogais e consoantes. Por vezes, Nilza tropeça, mas não se importa. Sorri, encara os observadores e retoma o olhar para o papel. Diz que está nervosa pelo assédio após sua história ser contada pelo jornal Folha do Mate, que anunciou a vencedora da competição. Na manhã desta quinta-feira (11), teve seu poema recitado por David Coimbra ao vivo no programa Timeline, da Rádio Gaúcha.
Recomeçar
Meu nome é Nilza, minha história vou contar
Com 7 anos apenas, comecei a trabalhar
Isso me afastou da escola e não pude mais estudar
Por ser de família humilde, aos 12 anos fui trabalhar
Em uma casa de família, como babá
Por sair cedo da escola
Não aprendi a ler
Cresci, e meu sonho
Achava que não ia acontecer
Foi então que um certo dia
Em uma casa fui trabalhar
Por não saber assinar meu nome
Minha patroa quis me ensinar
Apesar de ser difícil
Tinha vontade estudar
Meu horário não fechava
Por isso ficava a esperar
Até que um certo dia
Meu horário mudou
Fui na escola Dois Irmãos
E a vice diretora me matriculou
A partir daquele dia
Minha vida mudou
Estou aprendendo a ler
E a escrever como sou
Hoje leio Bíblia
Faço nota do mercado
Leio o preço das coisas
E tudo se transformou
Tenho certeza que ainda, muito vou aprender
Tenho 54 anos, muitos livros quero ler
Como diz nosso poeta, nunca é tarde para aprender
Ouvi poemas de Bráulio Bessa
Que a professora levou
Vi que a leitura aproxima
E isso me motivou
Parte do poema está escrito à lápis, em uma arte que lembra um espelho. A iniciativa tem como objetivo inspirar os estudantes a se enxergarem no papel. A palavra que inaugurou a carreira de escritora da faxineira foi “Bíblia”, pois ela queria ler os mandamentos sagrados e repassar a palavra adiante.
A primeira a atender Nilza no EJA foi Maria Cristina Dornelles de Ávila, atual vice-diretora das turmas da noite na escola.
— Ela pisou aqui muito acanhada, agora é outra pessoa. Estamos muito felizes com o feito que ela alcançou. Com força, fé e vontade a gente consegue tudo, e ela é o maior exemplo disso — diz.
A premiada poetisa agradece, além dos educadores, uma senhora para a qual trabalhava como empregada doméstica. Dona Almira Sulzbach repassou lições a Nilza, pois, segundo ela, não aceitava alguém viver sem literatura.
No Laboratório Gassen, onde orgulhosamente trabalha como faxineira, virou inspiração.
— Depois de uma idade e com tanta dificuldade que ela enfrentou, aprender a ler agora é um exemplo muito grande — afirma Rosângela Hermes, 36 anos, recepcionista do laboratório.
Os empregadores flexibilizaram a carga horária para ela não faltar aula – a direção da escola garante ser a aluna mais assídua. O secretário de Educação de Venâncio Aires, Emerson Eloi Henrique, define a trajetória como “uma realização para a escola”:
— O tema de casa está feito.
A independência de Nilza através da educação inclui idas frequentes ao supermercado, nas quais identifica o que está comprando e por quanto, além de itinerários certeiros nos ônibus da cidade, troca de mensagens no WhatsApp e, como define na forma mais poética, “uma viagem pelos livros”.
— Posso voar nas palavras — complementa a poetisa.
Ouça a entrevista no Timeline, da Rádio Gaúcha