A best-selller Martha Medeiros tem um livro fantasma, nas palavras da própria autora. Lançado em 2012, Noite em Claro saiu em uma pequena série da L&PM, chamada 64 Páginas, e não alcançou grande repercussão à época. Trata-se de um relato de uma mulher um pouco perturbada pelos relacionamentos incompletos que viveu, amores que mais incomodaram do que lhe trouxeram serenidade.
Como o livro passou quase despercebido, Martha decidiu relançá-lo pela mesma L&PM junto com poemas que escreveu nos últimos 20 anos. Noite em Claro Noite Adentro (144 páginas, R$ 39,90) tem lançamento neste sábado (6), às 17h30min, na Praça de Autógrafos da Feira do Livro de Porto Alegre.
Quem costuma ler suas crônicas em GZH pode ficar surpreso com a personagem, uma mulher que deixa claro que adora sexo e encara o amor mais como uma neurose do que uma realização. Certa noite, essa mulher abre um champanhe e revisita alguns romances. Começa pela perda da virgindade em um colchão imundo na adolescência, fala sobre o casamento com um homem que admira intelectualmente, mas que, por ser paralítico, não pode satisfazê-la na cama, e admite uma infidelidade com um desconhecido que a persegue na internet. São envolvimentos que contrapõem sexo e amor, que destroem a idealização de que é possível ter prazer e completude ao mesmo tempo.
Doze anos e uma tragédia se passam na vida dessa mulher até que, em outra noite, abre mais uma garrafa e decide contar a segunda parte de sua trajetória. Ela já tem pouco mais de 50 anos e namora um jogador de futebol que lhe dá o que o marido, aquele preso à cadeira de rodas, não pôde oferecer: penetração e deleite, embora nenhuma afinidade nas ideias.
Meio que vencida, como se tivesse desistido, a mulher admite: "Amor é uma palavra bela, mas inalcançável. Amor é um Himalaia, um Aconcágua", diz. "Prefiro sexo".
Martha garante que a personagem não tem nada de si, pelo contrário. Em suas crônicas, sempre incentiva a busca por amores mais plenos, em harmonia com o que se deseja. Noite em Claro foi uma oportunidade de colocar para fora uma mulher complexa, até um pouco infeliz.
- Como cronista, escrevo muito sobre relações humanas, mas sempre dentro de uma ótica realista, buscando falar sobre viver um amor legal, viver relações saudáveis. E, de repente, quis mostrar um outro lado, uma personagem que me contradiz e mostra quão tumultuada e doentia pode ser essa relação com o amor.
Embora Martha não se identifique com a personagem, considera que o amor da vida real está mais perto das experiências de Noite em Claro do que das fotos de casais felizes na internet.
- Essa é a grande verdade que, às vezes, a gente não consegue aceitar. Sempre fica faltando uma parte, e é com isso que a gente tem que aprender a lidar.
Noite em Claro é um pouco obscuro não porque fala da impossibilidade do amor romântico, mas porque a personagem, em certos momentos, vive situações degradantes com seus parceiros sem fazer qualquer crítica do que lhe aconteceu. A primeira é um quase estupro, que descreve com certa excitação. A segunda é quando o namorado a abandona após sofrer um aborto espontâneo.
São passagens que podem incomodar quem defende uma literatura mais combativa, politicamente correta. Martha se recusa a julgar seus personagens ou mesmo escrever uma história pensando em agradar.
- Uma coisa é o que estamos vivendo hoje, um feminismo que busca dar a homens e mulheres os mesmos direitos, outra coisa é minha ficção. Quando escrevo uma história, permito que meus personagens tenham características humanas, que minha personagem seja contraditória, esquisita, maluca, extremamente faminta por experiências, nem todas elas cor-de-rosa.
A outra ousadia de Martha é que, da metade do livro em diante, o leitor depara com Noite Adentro, uma reunião de 51 poemas inéditos, escritos desde a última vez que publicou Cartas Extraviadas e Outros Poemas, em 2001. Apesar de algumas homenagens delicadas às filhas, ainda há um sentimento de inadequação no amor, de uma expectativa irrealizada. Uma Martha mais noturna e menos feliz, mas uma experiência completa da sua literatura.