Um dos nomes mais fortes do terceiro setor brasileiro na área da educação, a presidente-executiva do Movimento Todos pela Educação, Priscila Cruz, defendeu o adiamento do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) para janeiro ou fevereiro de 2021. Em entrevista na manhã desta quarta-feira (13) ao Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha, ela afirmou que "todos os países do mundo" estão adiando a prova e que manter o calendário contribui para o cenário de desigualdade social no Brasil, mas que pode ser uma estratégia do governo para que os jovens pressionem pelo retorno às aulas.
Na terça-feira (12), a Gaúcha entrevistou o presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Camillo Mussi, responsável pela prova, que defendeu manter a aplicação dentro do cronograma pré-estabelecido, entre 1º e 8 de novembro. Na semana passada, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, sugeriu que grupos de esquerda fazem pressão pelo adiamento e afirmou que o exame não foi feito para corrigir injustiças.
O argumento de Priscila, mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard, ecoa a avaliação de pesquisadores da área da educação, de secretários estaduais de educação do Brasil e do Tribunal de Contas da União (TCU), segundo os quais adiar a prova impediria uma maior desigualdade de acesso à universidade em um cenário no qual alunos mais pobres têm menos recursos para estudar em casa.
— Temos um sistema extremamente desigual entre regiões, entre pobres e ricos, e entre as escolas públicas e privadas. Todos os países estão mexendo em seus calendários. Não dá pra tratar com normalidade uma situação excepcional que vai gerar mais desigualdade. O Enem, ao contrário do que o ministro já se pronunciou, tem como função corrigir desigualdade, sim. É um objetivo da política educacional e do Enem. Mais de 30% dos jovens brasileiros não têm internet em casa. Todo mundo tem celular, mas é com pacote de dados minúsculo e pré-pago, não dá para ter aula ali. As falas públicas são absurdas em defender que há igualdade de condições, isso não existe — afirmou.
Priscila destacou que os 27 secretários estaduais de Educação de todo o Brasil, responsáveis por estudantes de Ensino Médio, já pediram duas vezes que o governo federal adie as provas. O TCU pediu o mesmo.
Questionada sobre os motivos de o MEC não adiar o calendário da prova, a presidente-executiva do Todos pela Educação afirmou que a pasta tem “a gestão educacional mais fechada a qualquer tipo de troca com especialistas” e que, se Weintraub tomasse decisões técnicas, “ouviria os próprios secretários que fizeram duas vezes o pedido de adiar o Enem”. Ela ainda afirmou que prejudicar a educação “é uma morte lenta”.
— A informação que temos é de que o presidente do Inep, por duas vezes, fez reunião com o ministro (Weintraub) para convencê-lo a adiar o calendário, mas o ministro foi intransigente. A segunda informação é de que há pressão dentro do governo federal de submissão completa dos ministros ao presidente. Claro que eles têm que seguir orientação do presidente, mas essa pressão vai no sentido também de criar um direcionamento para o afrouxamento do isolamento. Quando o ministro diz que vai manter o calendário, há um certo negacionismo sobre a gravidade da pandemia e uma pressão para governadores abrirem escolas. A tese é de que, se mantiver o calendário do Enem, os jovens vão pressionar pela aberturas das escolas. É um embate que estão criando.
A principal novidade para o Exame deste ano é a aplicação de 100 mil provas digitais. O presidente frisou que a realização da prova não será em casa e, sim, em instituições cadastradas e credenciadas pelo Inep.
A prova será respondida pelo computador, mas redação ainda será entregue impressa, pelo menos neste ano. A ideia é gradativamente tornar a realização do exame digital para 100% dos participantes em 2026.
No Rio Grande do Sul, as vagas para a versão digital estão esgotadas em Porto Alegre e Santa Maria. Candidatos de Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Pelotas e Santa Cruz do Sul ainda podem se inscrever na modalidade.
Questionada se o governo do Rio Grande do Sul está certo em retomar as aulas antes na rede privada, Priscila ainda afirmou que não conhece estudos que sustentem a iniciativa e que, a princípio, a decisão também contribuiria para favorecer alunos de escolas particulares.
O impacto da desigualdade de acesso foi noticiado por GaúchaZH no ano passado: análise estatística do desempenho dos 3,89 milhões de brasileiros que realizaram o Enem em 2018 mostrou que 90% da nota é influenciada por fatores econômicos e culturais e que raça e gênero são determinantes para a nota.