GaúchaZH realizou análise estatística do desempenho dos 3,89 milhões de pessoas que realizaram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em todo o Brasil no ano passado — dos quais 167,4 mil são gaúchos — e identificou que, para além da desigualdade social, a cor da pele também pode dificultar o acesso ao Ensino Superior. A média na prova de estudantes brancos é a mais alta: no Brasil, de 552,8. Alunos negros têm a segunda pior média, de 510,4, à frente apenas de indígenas, com média de 487. Quando analisadas as mil maiores notas no Rio Grande do Sul, um perfil se delineia em comum: estudante branco, de alta renda e com acesso a bens de consumo, como computador, carro e internet em casa.
Das mil melhores notas gaúchas do Enem de 2018, 92,5% são de candidatos brancos. De negros, há 0,7% (0,5% de homens e 0,2% de mulheres). Não há nenhum indígena. Essas proporções não correspondem ao total de inscritos no exame no Estado: brancos compõem 78,1% dos candidatos, e negros, 6,7%.
– O fato de só duas mulheres negras terem tirado as melhores notas não quer dizer que mulheres negras não sejam inteligentes. O que falta são oportunidades iguais. Desde a mais tenra idade, mulheres e, em específico, mulheres negras assumem responsabilidades, como cuidar da casa, enquanto a mãe ou a avó trabalham. Cursinhos e colégios de ponta dão aulas no turno inverso e no fim de semana. Os alunos que passam no Enem, em sua maioria brancos e ricos, são criados para isso. A preparação deles não se repete com jovens de favelas – afirma Auxiliadora Martins, professora na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora da relação entre racismo e educação.
Quanto maior o nível de estudo dos pais ou a renda da família, maior é a proporção desse tipo de estudante entre as melhores notas no Rio Grande do Sul. Entre os mil melhores, há 126 alunos com renda familiar acima de R$ 19 mil, mas, pela proporção de inscritos, esse perfil econômico deveria ser característica de apenas 10 alunos. Pela proporção, deveria haver 234 alunos com renda entre R$ 924 e R$ 1,4 mil, o segundo salário mais baixo. Há apenas 20.
Para chegar ao curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Franciéle Rodrigues da Silva, 20 anos, acordava às 5h para sair do extremo sul da capital gaúcha e ter aulas na região central da cidade. À tarde, trabalhava em uma repartição pública para ganhar uma bolsa que ajudava em casa e a pagar as passagens de ônibus. À noite, estudava em um pré-vestibular gratuito e voltava para casa por volta das 23h. Sem computador na residência, ela reforçava os estudos na avó ou em uma biblioteca pública. Hoje, mora com a mãe, que trabalha como faxineira – com o pai, não tem contato. Entrou na UFRGS como cotista racial, de renda e por ser estudante de escola pública.
– Era muita correria, eu almoçava no horário de trabalho porque minha chefe deixava, senão nem teria tempo de comer. No começo do curso, era muito difícil. Rodei em uma cadeira porque tinha dificuldade em entender conceitos e palavras que meus colegas já conheciam, por serem filhos de advogados e juízes. A maioria dos meus colegas fala mais de uma língua, viaja para outros países e não precisa se preocupar em trazer dinheiro para casa. Pode se dedicar apenas aos estudos. Eu, não: se eu não trabalhasse e estudasse, ninguém ia me botar na faculdade. Eu apenas tinha que estudar – diz a universitária, que segue trabalhando para ajudar na renda familiar e pretende ser defensora pública ou delegada.
No Enem, apesar de as candidatas serem a maioria, tanto no país quanto no Rio Grande do Sul, os homens alcançam pelo menos 10 pontos a mais na média, em comparação com as mulheres. Elas só vão melhor em redação – também por pouco mais de 10 pontos. A diferença é gritante em matemática, disciplina na qual eles têm ao menos 42 pontos de vantagem sobre elas. Especialistas da educação ressaltam que não é diferença de capacidade cognitiva, mas sim de incentivo.
– Homens e mulheres são constituídos para gostar e fazer coisas diferentes. As meninas crescem tendo diários, por isso se relacionam com a escrita de forma intensa. O homem é ensinado a se expressar com raciocínios lógicos e pontuais. Não é que ambos não sejam capazes em diferentes áreas, mas foram ensinados a se comportar e a se interessar por certos temas – analisa Leunice Martins de Oliveira, pós-doutora em Educação e professora de psicologia da educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
José Francisco Soares, ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável pelo Enem, e professor nas faculdades de Educação e de Estatística na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destaca que homens se saem melhor do que mulheres também porque elas são menos vítimas da evasão escolar – homens costumam ser convocados a trabalhar e são, também, maiores vítimas da violência. Portanto, diz, quem se forma já passa por uma espécie de seleção.
– Há mais mulheres do que homens no Enem porque os homens foram excluídos do processo escolar. A desigualdade começa na Educação Infantil. No Brasil, 25% dos alunos que iniciam o Ensino Fundamental não chegam ao Médio. Entre esses que desistem, a maioria são homens. As meninas, então, terminam o Ensino Médio em número maior – pontua o pesquisador, responsável por coordenar o Indicador de Desigualdades e Aprendizagens (IDeA), indicador de avaliação de aprendizado.
Os três Estados com maior média no Enem são também os mais ricos do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O Rio Grande do Sul, apesar de ter o quarto Produto Interno Bruto (PIB) mais alto, está em sexto lugar. Analistas afirmam que há uma relação entre a riqueza de uma região e o desempenho educacional dos alunos. Mas não é regra: há locais pobres em que alunos se saem bem.
– Pegando o caso de São Paulo: com um PIB alto, há mais empregos e aumenta a renda familiar. Aí, há mais pais mantendo o emprego, permanecendo na classe média e com os filhos em escolas privadas, sem depender de política pública. A formação cultural se dá por essas oportunidades – destaca Clarice Traversini, pesquisadora de currículos em escolas contemporâneas e professora da UFRGS.
Por que fizemos esta matéria?
É consenso entre pesquisadores da educação que a pobreza prejudica o jovem na escola. Ao usar inteligência artificial, GaúchaZH buscou encontrar, em números, a influência de cada fator socioeconômico na nota de um estudante na prova que é a porta de entrada ao Ensino Superior — o Enem. Ao longo da análise, a reportagem identificou que havia diferenças nas notas pela raça e pelo gênero do aluno.
Como apuramos esta matéria?
A reportagem inseriu os microdados do Enem de 2018, elaborados pelo Inep, em um programa de computador com linguagem Python. Ao inscrever-se na prova, os candidatos informam o salário de seus pais, quantos computadores têm em casa, a escola onde estudam, sua raça, entre outras informações socioeconômicas e culturais. A reportagem traduziu essas informações de texto para linguagem de programação (que lida com números, e não letras), com base em um dicionário fornecido pelo Inep. Em seguida, aplicou um algoritmo de árvore de regressão logística — em outras palavras, um sistema que analisa todas as possibilidades dentro de um universo, testa cada uma e aprende com os erros e acertos, algo chamado de "machine learning" ("aprendizado de máquina"). O resultado mostra, em números, o peso na nota final de cada fator informado pelo candidato. A metodologia foi baseada em códigos abertos do cientista de dados Leonardo Sales, disponibilizada no site https://github.com/leonardojs1981/analise_enem_2. GaúchaZH também compartilhou a íntegra dos códigos de programação utilizados na apuração.
Quais os cuidados que tomamos para sermos justos?
GaúchaZH conversou com o cientista de dados Leonardo Sales, que já fez análise semelhante em nível nacional, e adaptou o modelo estatístico para a análise. Para interpretar os dados, a reportagem entrevistou pesquisadores de grandes universidades que estudam a relação entre educação, desigualdade social, provas, raça, gênero e currículo em escolas.
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Conteúdo complementar
Confira os códigos de programação utilizados na apuração (links externos):
Material de referência (códigos abertos de Leonardo Sales)
Análise dos microdados do Enem
Ranking das escolas