Criado inicialmente para medir a qualidade da Educação Básica, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se transformou em importante instrumento para quem almeja cursar uma faculdade. Pré-requisito para concorrer a vagas em universidades públicas no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e bolsas de estudos em instituições privadas pelo Programa Universidade Para Todos (ProUni), a nota da prova tem proporcionado reviravoltas na vida de muitos jovens.
Com as portas abertas pelo Enem, a goiana Daline da Silva, 28 anos, conquistou uma vaga na Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com bolsa de estudos, e a caxiense Renata Casagrande, 22 anos, formou-se em História na Universidade de Coimbra, em Portugal. O mineiro Jonathan Karter, 19 anos, viu no Sisu a chance de começar a vida adulta em um lugar diferente, e Ana Júlia Soares, 17 anos, saiu de Limeira, no interior de São Paulo, para São Borja, na fronteira oeste gaúcha, em busca do primeiro diploma universitário da família. Morador do bairro Rubem Berta, na Capital, Denis Brum, 22 anos, realiza o sonho de estudar Direito, graças a uma bolsa do ProUni.
Essas são algumas das tantas histórias de universitários e diplomados que mudaram sua visão de mundo e as perspectivas de vida impulsionados pela nota do Enem.
Daline da Silva: Medicina em universidade renomada
A goiana Daline da Silva, 28 anos, passou um tempo sem estudar depois de se formar no Ensino Médio, em 2009. Filha de empregada doméstica em Goiânia (GO), começou a trabalhar para complementar a renda da família até que, em 2012, decidiu que queria cursar Relações Internacionais. Ao escolher o curso, logo mirou Porto Alegre, pela boa avaliação da formação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Fiz seis meses de cursinho em Goiânia e tentei o vestibular da UFRGS, mas não passei. Resolvi ficar em Porto Alegre para tentar de novo — conta a jovem, que conseguiu ingressar no curso em 2015.
Depois de um ano cursando Relações Internacionais, a estudante não se encontrou na carreira e decidiu mudar de rumo. Daline havia começado um técnico em Radiologia, para ter uma opção melhor de trabalho. Ela se mantinha na capital gaúcha com ajuda financeira da mãe e fazia trabalhos extras como operadora de telemarketing ou vendedora.
— No técnico em Radiologia, eu me encantei com a possibilidade de ajudar outras pessoas e resolvi mudar para Medicina — diz.
Fez o Enem outra vez em 2016 e conseguiu a vaga na PUCRS com bolsa integral pelo ProUni. Está no oitavo semestre e não pretende desistir, apesar das dificuldades. Como cotista, ela recebe uma bolsa-auxílio de R$ 400 para ajudar nos custos básicos, como ônibus e alimentação, mas mesmo o restaurante universitário da faculdade privada pesa no bolso — e o comprometimento exigido pelo curso de Medicina inviabiliza trabalhos extras.
— A oportunidade de estar em uma das melhores universidades do país mostra que todo o esforço vale a pena. Muitas vezes, parece que nunca vai acontecer com a gente, mas é possível, sim. Sei que muitos não têm o suporte que eu tive para seguir tentando, mas só não consegue quem desiste — ensina.
Rafaela Casagrande: formada em História em Portugal
De volta a Caxias do Sul depois de três anos estudando na Universidade de Coimbra, em Portugal, Rafaela Casagrande, 22 anos, trouxe na mala muito mais do que um diploma em História. Para ela, o Enem abriu não só uma porta para estudar fora, mas uma janela para ver o mundo de um jeito diferente.
— Voltei com uma nova leitura da vida — resume a jovem, que retornou à Serra em setembro.
Ter convivido com universitários de lugares como Luxemburgo, Noruega, Finlândia, Lituânia, Letônia, além de Itália e Espanha, de onde chegava o maior número de intercambistas, enriqueceu a experiência de Rafaela fora do Brasil. Quando estava no terceiro ano do Ensino Médio, ela já mirava Portugal como uma possibilidade e sabia que a nota no Enem poderia ajudar.
Interessada na faculdade de História, ela imaginava que uma temporada de estudos na Europa seria um diferencial. Além de poder usar a nota do Enem, as universidades portuguesas tinham a vantagem do idioma, sem contar a relação com a história do Brasil.
— Eu morava ao lado de uma igreja que foi construída antes de os portugueses chegarem aqui, tinha história por todos os lados — conta, referindo-se à Igreja Sé Velha, inaugurada em 1146.
Rafaela se preparou para o Enem em casa, com ajuda de videoaulas no YouTube. Foi selecionada para uma das seis vagas abertas para estudantes brasileiros em Coimbra pelo Enem de 2015, com pontuação de 694, que equivale a 140 na pontuação portuguesa. O mínimo exigido é 600 no Enem, que equivale a 120. Se alcançar a média de 160 pontos na escala portuguesa — algo em torno de 800 no Enem —, o estudante pode concorrer a uma bolsa de mérito. Rafaela conseguiu a bolsa no terceiro ano de curso, pelo desempenho nas disciplinas. A bolsa é concedida a estudantes com média 16 no curso.
Agora, o foco da historiadora formada em Coimbra é providenciar a validação do diploma no Brasil e estudar para as seleções de mestrado.
Jonathan Karter: começar a vida adulta num lugar diferente
Para Jonathan Karter, 19 anos, o Enem foi o empurrão que ele sempre quis para começar a vida adulta em um lugar diferente. Como a irmã mais velha, Júlia, de 22 anos, já estava na graduação em Direito em uma instituição privada em Divinópolis, no oeste de Minas Gerais, Jonathan apostou no Sisu para ver onde poderia cursar Jornalismo em uma universidade pública.
— Eu nunca tinha ouvido falar em São Borja, depois que fui saber que Getúlio e Jango nasceram aqui, mas a experiência de vir para cá, com uma cultura diferente, longe dos pais, tem me proporcionado um amadurecimento incrível — analisa.
Jonathan chegou à Fronteira Oeste em março de 2018 e demorou para se acostumar com bastante coisa, desde o clima, ora muito frio, ora muito quente, até o intervalo para descanso na hora do almoço.
— Não se acha um comércio aberto na cidade entre meio-dia e duas da tarde! — diverte-se o mineiro.
Mas o que ele mais estranhou foi o nome dos cortes de carne:
—Precisei estudar a anatomia do boi para conseguir pedir a carne certa no açougue — segue contando, entre risos.
Ir ao supermercado, aliás, é uma das lições de amadurecimento que a mudança proporcionou ao garoto.
— Se eu não compro pão, não tomo café. O Enem me possibilitou começar a vida adulta em um lugar que eu nunca tinha imaginado. Aqui, estou tendo a chance de me tornar independente, além de ter acesso a uma universidade pública, com professores qualificados — avalia Jonathan.
Denis Brum: bolsa de estudos para cursar Direito
Morador do bairro Rubem Berta, na zona norte de Porto Alegre, Denis Brum fez o Ensino Médio no Colégio Marista Irmão Jaime Biazus, que oferece bolsas integrais para estudantes da região. O contato com a rede fez com que ele despertasse o interesse em cursar uma faculdade na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mas sabia que para realizar o desejo teria de batalhar por uma bolsa de estudos. O pai, prestador de serviços técnicos na área de telefonia, e a mãe, empregada doméstica, não teriam condições de pagar pelo curso.
— O valor da mensalidade é mais do que a renda bruta da minha família, então o Enem me abriu uma porta para frequentar outro universo e fazer parte dele. Quando eu imaginei que estaria participando de uma pesquisa? — comenta Denis, lembrando uma experiência na iniciação científica.
Durante o Ensino Médio, o jovem fazia estágios no turno oposto à escola para dar conta das próprias despesas, ajudando a aliviar o orçamento familiar. Visando o ProUni para fazer Direito da PUCRS, entrou num cursinho comunitário, na Cidade Baixa. Era escola de manhã, estágio à tarde e cursinho à noite. Com a nota do Enem 2015, conseguiu ingresso em Geografia. Começou a cursar e pediu mobilidade acadêmica, ingressando em Direito no segundo semestre de 2016. Aos 22 anos, quase na metade do curso, já faz estágio na área e é representante discente no conselho universitário.
— O ProUni muda a realidade de toda a universidade, não só dos bolsistas, o próprio campus precisa se adaptar. Às vezes são coisas muito básicas, como disponibilizar um microondas para esquentar comida. É uma oportunidade para os outros colegas também ampliarem sua visão de mundo — observa o estudante.
Ana Júlia Santos: a primeira neta a entrar na faculdade
Filha de um ajudante de marcenaria aposentado natural do Rio Grande do Norte e uma empregada doméstica cearense, Ana Júlia Pereira da Silva Santos, 17 anos, saiu de Limeira, no interior de São Paulo, rumo a São Borja, na fronteira oeste gaúcha, em busca do primeiro diploma universitário da família. Com 11 tios de cada lado e outras dezenas de primos, Ana Júlia é a primeira neta a entrar na faculdade.
— Era o sonho do meu pai que uma das filhas entrasse na universidade. Mais da metade dos meus tios sequer conseguiram terminar o Ensino Médio, então era algo distante da minha realidade — conta Ana Júlia, que tem uma irmã de 22 anos.
Apesar de considerar a prova difícil para quem faz a educação básica na rede pública, a estudante de Jornalismo reconhece a importância do exame para oportunizar a jovens como ela o ingresso no Ensino Superior. Ela frequentou um cursinho comunitário, ministrado por estudantes da Universidade de São Paulo (USP), em paralelo ao terceiro ano do Ensino Médio, para chegar mais preparada para o exame. A rotina era intensa, com aulas regulares todas as manhãs, mais o cursinho aos sábados e domingos, das 8h às 18h. Ana chegou a ser selecionada para o curso de História da Universidade de Campinas (Unicamp), bem mais perto de casa, mas queria mesmo era cursar Jornalismo, então foi parar na Universidade Federal do Pampa (Unipampa).
— O que eu mais estranhei foi a comida, acho muito pesada. Em São Paulo, a gente come feijão preto só na feijoada, sinto falta do feijão carioca — conta a estudante.
O ingresso de Ana Júlia na Unipampa, no primeiro semestre de 2019, coincidiu com a intensificação dos cortes de verbas para universidades, levando a estudante a se engajar em ações para defender a instituição.
— Sabendo de toda a luta que foi chegar até aqui e ver que a gente pode perder tudo isso porque a universidade não tem dinheiro para pagar uma conta de luz é muito preocupante, a gente precisa defender o direito de ter uma formação pública de qualidade — conclui.