Desde janeiro de 2003, a Lei nº 10639, torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas de Ensino Fundamental e Médio do país. Enquanto a aplicação da lei ainda engatinha, alguns projetos protagonizam verdadeiras transformações na vida de jovens gaúchos. Em Porto Alegre, ações que buscam enaltecer a ancestralidade e a cultura negra crescem.
Esta reportagem apresenta três exemplos que recorrem sobre esse viés. São atitudes que começam pequenas e crescem beneficiando famílias inteiras, espalhando conhecimento e o mais importante: eliminando preconceitos.
Solte o cabelo e prenda o preconceito
A sala de aula está lotada. Do palco, a professora Larisse Moraes, 36 anos, fala sobre o continente africano e mostra alguns dos países mais ricos da África. A cada imagem projetada no quadro, uma nova reação. Do meio das cabecinhas borbulhantes e ativas, uma voz ecoa: "Viu? a África não é só bicho!", diz um dos alunos aos colegas.
Desmistificar a imagem do continente que é apresentada ao restante do mundo e oferecer uma educação étnico-racial são alguns dos objetivos que norteiam o projeto Afroativos, da Escola Municipal Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, criado há três anos.
Em 2016, durante uma atividade de aula, uma aluna de 10 anos de Larisse escreveu uma carta sobre o próprio cabelo. Ela questionava o que seus fios tinham de errado, pois as pessoas faziam comentários negativos sobre ele.
Aquele fato fez a professora pensar, pois cruzou também com questões pessoais de Larisse que, por mais de 20 anos, alisou o próprio cabelo. A docente viu naquela manifestação a necessidade de mostrar que os fios de alguém — sejam eles crespos, lisos ou com tranças — não determinam quem esta pessoa é. Além disso, essa questão deveria envolver também os meninos, que, muitas vezes, raspam o cabelo por não gostarem dele ao natural.
— O Afroativos começou pelos cabelos, mas isso tudo vai além da estética. É preciso falar sobre a nossa ancestralidade, sobre a nossa história. É a "afrobetização" por meio do conhecimento — explica Larisse.
É preciso falar sobre a nossa ancestralidade, sobre a nossa história.
LARISSE MORAES
Professora
Aceitação
A estudante Ginny Lopes, 14 anos, conta que já ouviu comentários em função do seu cabelo:
— Eu não gostava do meu cabelo, sempre usava coque, no dia que resolvi soltar, vários colegas me xingaram. Mas eu comecei a conversar com a professora e passei a soltar ele. Também li a cartinha da aluna (que motivou o início do projeto) e um dia no recreio vi quando ela estava de cabelos soltos e as pessoas comentavam. Ela entrou na sala de aula de capuz e a professora disse que ela não precisava fazer aquilo.
Já Ketlyn Vieira, 10 anos, entrou na escola este ano e interessou-se pelo projeto, que já causou mudanças em seus hábitos:
— Eu entrei na escola esse ano. Quando nos apresentaram os projetos oferecidos eu optei por esse e pelas aulas de flauta. Na minha antiga escola eu ia de cabelo preso, porque quando eu soltava zoavam de mim. Agora uso ele solto porque isso transforma — conta.
As declarações genuínas demonstram que, ao mesmo tempo em que a escola tem poder para transformar, ela pode ser um ambiente difícil, onde o apoio dos pais e professores é fundamental para crianças e adolescentes.
— Casos de racismo acontecem na escola e isso pode marcar por uma vida toda. Queremos trazer conhecimento, quebrar esses ciclos de exclusão, de ignorância. Ressignificar a história e a cultura — explica a docente.
Reconhecimento nacional e internacional
O Afroativos cresceu, ganhou espaço e notoriedade. Na escola, contempla nove turmas, inclusive uma do jardim. Há grupos de estudo só para tratar da temática. Um calendário comemorativo com datas significativas para a cultura afro foi lançado este ano e serviu de inspiração para uma reportagem do jornal angolano Nova Gazeta.
No último dia 13 de maio, a professora Larisse esteve no programa Encontro, da apresentadora Fátima Bernardes, falando sobre o projeto. Este ano, a iniciativa foi finalista do prêmio Sim à Igualdade Racial, na categoria Educação e Oportunidades, do Instituto Identidades do Brasil. Em agosto, será apresentado no seminário promovido pelo Observatório da População Infanto-Juvenil em Contextos de Violência, em Natal (RN). A ideia é que o evento conte com a participação da professora e mais três alunos. Para isso, eles buscam apoio.
/// Para falar com o Afroativos, em contato com Larisse no (51) 99632.1656 ou pelo e-mail afroativos@gmail.com.
Uma nova visão sobre a Bonja
Quando o professor de geografia Bruno Xavier, 35 anos, começou a lecionar na Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, na Bom Jesus, em 2015, ele notou que a imagem negativa que as pessoas faziam do bairro era diferente da realidade que ele estava conhecendo.
— Eu percebia que os alunos tinham baixa autoestima em relação à aprendizagem, às perspectivas de futuro mas, ao mesmo tempo, eu notava que isso estava ligado às representações que se têm sobre a Bonja. Foi então que eu pensei em desenvolver ações que mudassem essa imagem distorcida — explica.
Bruno abriu então espaço para um grupo de pesquisa, o Quilombonja, que nasceu para mostrar uma Bom Jesus diferente. Ativistas e líderes da comunidade são convidados a contar suas histórias e a dividir com os estudantes um novo olhar sobre o bairro. O projeto chamou atenção na cidade e tem sido apresentado em seminários, universidades e outras escolas. Um passo importante no processo de mudança de uma realidade.
— Quando alguém falava do meu bairro, eu ficava quieta e achava que era verdade. Mas hoje eu sei que a Bom Jesus não é formada por uma única história. Existem várias Bom Jesus dentro da Bom Jesus. Não é só tiroteio, traficante. Existem atividades sociais, eventos, suporte da escola — opina a aluna do 9ª ano Taissa Elisângela Gomes, de 14 anos.
Visibilidade
Mostrar o papel das mulheres do bairro é outro ponto trabalhado pelo grupo. Muitas mulheres protagonizaram as maiores lutas da Bonja, mas a decisão do que iria ser feito acabava sempre nas mãos dos homens, segundo Bruno. Diante do conhecimento, o posicionamento das próprias alunas mudou.
— Vejo que as gurias têm outra postura, porque agora elas conhecem essas mulheres — disse.
/// O Quilombonja já tem uma página no Facebook onde divulga suas ações. A ideia é ampliar e criar um canal de vídeos no YouTube, reativar a rádio da escola e elaborar um livro que ilustre a história do bairro.
Uma nova consciência para as crianças
Professora da rede municipal de Porto Alegre, Perla Santos, 35 anos, viu na sala de aula a chance de mudar a consciência de crianças negras sobre si mesmas. Em 2015, diante da didática que era aplicada nas aulas — onde a história do continente africano e do povo negro é contado do ponto de vista da exploração europeia — ela resolveu criar um grupo voltado para meninas negras da Escola Municipal de Ensino Fundamental Senador Alberto Pasqualini, na Restinga, onde dá aulas.
A ideia era trabalhar os problemas de autoestima e autoimagem das gurias e de suas famílias. No ambiente escolar, o maior desafio das meninas negras costuma ser em relação ao cabelo, daí o nome do movimento: Meninas Crespas.
— É importante que elas entendam como o cabelo delas é lindo naturalmente. Se a menina não quer, ela não precisa prender, alisar, cortar, nada disso — conta Perla.
É importante que elas entendam como o cabelo delas é lindo naturalmente. Se a menina não quer, ela não precisa prender, alisar, cortar, nada disso.
PERLA SANTOS
Idealizadora do projeto Meninas Crespas
Aulas
O projeto cresceu e passou a funciona na Casa Emancipa, no bairro Restinga, sem ligação com a escola. Atualmente, além dos encontros para debater a valorização da negritude, o grupo conta com a parceria de professores de diversas áreas. Recentemente, foi formada uma turma para o aprendizado da língua africana yorubá. Além das meninas, as famílias também têm aulas de danças africanas e negras.
Perla ainda diz que, voluntariamente, o doutor em Ciências Alan Alves Brito, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mostra aos alunos personalidades negras que são referência no mundo científico-acadêmica.
— É uma ação para quebrar esse mito de só pessoas brancas ocupam este espaço. Batizamos como "Crespas na Ciência" — conta a criadora do projeto.
Mudança evidente no comportamento
Entre as integrantes do projeto, várias histórias chamam atenção. A comerciária Karina Borges, 37 anos, revela a mudança que o Meninas Crespas aplicou na via de sua filha. Rafaella, hoje com 10 anos, sofria com o racismo na escola onde iniciou sua vida letiva. A mãe recorda os questionamentos que a pequena costumava trazer para casa:
— Ela perguntava a razão de o cabelo dela ser black power. Se só ela era assim. Uma vez, ela chegou a perguntar se poderia fazer alisamento.
A mãe resolveu transferi-la para o colégio Pasqualini. Lá, Rafaella conheceu a professora Perla. A identificação logo veio, era a primeira personalidade negra que a menina convivia fora do círculo familiar. Com o convite da criadora do Meninas Crespas para que a menina também fizesse parte do movimento, o cenário mudou totalmente.
— O projeto fez ela se conhecer e se amar mais. Hoje ela tem orgulho do cabelo dela — garante a mãe.
Auxílio
/// O projeto lançou recentemente uma biblioteca afrocentrada, que está recebendo doações. Além de livros, materiais pedagógicos e escolares são bem-vindos.
/// Tecidos e acessórios com estampas étnicas ajudam na construção dos figurinos usados nas aulas e apresentações. As meninas crespas também buscam por padrinhos. Atualmente, são as próprias mães-coordenadoras que financiam as ações.
/// O contato com o grupo pode ser feito pelos telefones (51) 98562-5310, (51) 99621-5867 ou (51) 99641-2346, com Perla, Paula ou Lisbet.
/// Pessoalmente, o atendimento é na Casa Emancipa, Avenida Vereador Milton Pozzolo de Oliveira, 59, na Restinga (ao lado da quadra da escola de samba Estado Maior da Restinga).
Opinião de especialistas
"A ideia é institucionalizar as iniciativas"
"Temos uma lei com 16 anos (Lei nº 10639) que enfrenta sérios problemas de implantação e esses coletivos são extremamente importantes para que o trabalho se efetive. Porto Alegre tem um dos piores índices de desenvolvimento humano para a população negra do país. Com as cotas raciais houve uma crescente de professores negros na rede e isso deu um impulso para que a gente pudesse se conhecer mais. Este ano, iniciamos uma atualização de dados sobre estes projetos, para que juntos esses professores pudessem trabalhar e compartilhar as experiências. A ideia é institucionalizar as iniciativas para que, mesmo que o professor saia da escola por algum motivo, o projeto continue.
Autoestima é um dos princípios da aprendizagem e trabalhar a identidade racial com vínculo histórico faz com que eles se vejam como parte do todo, tenham uma sensação de pertença, noção de comprometimento com a sua comunidade e se apropriem do processo de construção da cidadania. Esses alunos precisam se enxergar e o professor também tem, desta forma, com quem compartilhar, fortalecer, dialogar. As famílias também têm auxiliado muito. Um conhecimento conjunto, mais solidário e efetivo".
Pedagoga, Mestre em Educação pela UFRGS e Assessora Técnico-Pedagógica do Núcleo de Cultura e Diversidades da Secretaria Municipal de Educação (Smed), Patrícia da Silva Pereira, 49 anos.
"São iniciativas que assentam em valores civilizatórios afro-brasileiros"
Há vários pontos comuns nos projetos educacionais que convém sublinhar. Em primeiro lugar, vinculam-se ao trabalho de educadores(as) negros(as), a partir de referenciais afrocentrados que, em si mesmos, são dispositivos anti-racistas ao devolver protagonismo para pessoas negras. Em segundo lugar, são iniciativas que assentam em valores civilizatórios afro-brasileiros, conforme preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira e o Art. 26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9.394/96). Em terceiro lugar, são ações educativas eficazes, libertadoras, com alta capacidade de transformação dos pressupostos do racismo vigente em nossa sociedade pois incentivam jovens estudantes a perceberem sua capacidade criativa de agir no mundo, não como "periféricos", "vulneráveis" ou "excluídos sociais", mas como pessoas capazes como quaisquer outras a seguir com segurança e confiança seus próprios caminhos.
José Rivair Macedo. Professor Titular do Departamento de História - UFRGS. Docente das disciplinas: História e relações étnico-raciais; História da África e afro-brasileiros.