Um encontro semanal na Casa Emancipa, na Restinga, extremo sul da Capital, está mudando a consciência e os sentimentos de crianças negras. São ações que fazem parte do projeto Meninas Crespas, criado em 2015 pela professora Perla dos Santos, com a parceria de algumas mães e alunas da Escola Municipal de Ensino Fundamental Senador Alberto Pasqualini, no mesmo bairro.
A reunião do grupo ocorre sempre aos sábados. Agora, para fortalecer ainda mais o laço dos integrantes do projeto – composto em sua maioria por mulheres negras – com a negritude, estão sendo organizadas aulas do idioma yorubá, de origem africana. Além disso, o grupo está criando uma biblioteca afrocentrada, que terá livros nos quais a história do negro será contada por diferentes vieses, não apenas centrada na escravidão ou na visão dos colonizadores europeus.
— Queremos demonstrar para as crianças e também aos demais participantes que o negro tem uma história muito rica e anterior à escravidão. São séculos de reis e rainhas africanos cujas histórias não são contadas nas aulas ministradas nas escolas — explica a professora Perla.
Atualmente, o projeto não tem mais ligação com a rede pública de ensino. As aulas de yorubá, que começaram no sábado, são ministradas pelo eletricista Gercy Ribeiro de Mattos, 61 anos. Chamado de mestre Cica, Gercy é pesquisador da cultura africana e babalorixá da nação Oyo do Batuque no Rio Grande do Sul. O idioma yorubá está na família dele há algumas gerações.
Esforço para manter cultura
Para o mestre, além ensinar as crianças sobre a existência do idioma africano, as aulas são uma maneira de manter a língua viva.
— Toda a repressão que os negros sofreram no período da escravidão calou essa língua. Mas, o yorubá foi sobrevivendo de geração em geração, graças ao esforço dos nossos ancestrais — conta mestre Cica.
Uma das alunas da classe é a professora Kátia Flores, 39 anos, que conheceu o Meninas Crespas recentemente. Além dela, as aulas de yorubá contam com a presença de duas de suas filhas, Lívia, sete anos, e Luiza, quatro anos, e também da sobrinha Laura, oito anos, que está há mais tempo envolvida com a organização social.
— Essas ações são perfeitas para demonstrar as crianças a importância de resgatar a negritude da nossa população — pontua Kátia.
Dificuldade em trabalho escolar motivou a busca por livros
Estudante do Ensino Médio do campus Restinga do Instituto Federal (IFRS), Helena Santos Moreira, 16 anos, foi quem sugeriu à professora Perla a criação da biblioteca. Em um trabalho da escola sobre raças e etnias, a menina resolveu falar da história negra, mas saindo do senso comum.
— Queria contar a história do povo negro antes do período da escravidão. A intenção era fazer um trabalho diferente. Só que eu não achava nada na internet e não conseguia nenhum um livro sobre isso — recorda Helena.
Ao recorrer à criadora do Meninas Crespas, a estudante pensou que, para que a situação não se repetisse e para que as crianças aprendessem a história negra contada de outro ponto de vista, uma biblioteca poderia ser montada na sede do projeto.
Mãe de Helena e também uma das coordenadoras do Meninas Crespas, a artesã Lisbet dos Santos Pinheiro, 48 anos, não só apoiou a ideia da filha, como ajuda até hoje na arrecadação dos livros.
— Pedimos pela internet e também em eventos da cultura negra que participamos. Ainda estamos com um número pequeno, mas o acervo vai crescer — projeta Lisbet.
Doação para a nova biblioteca
No domingo, durante o encontro especial para receber o Diário Gaúcho, o escritor José Falero fez questão de doar ao acervo da recém-inaugurada biblioteca um exemplar de Vila Sapo. O livro, lançado em fevereiro, traz seis contos escritos por José com temáticas plurais sobre a vida na periferia.
— O que está sendo feito aqui pelas meninas é fantástico. Demonstra a importância da desconstrução de um branqueamento da nossa sociedade. Ajuda a mudar um país, infelizmente, moldado pelo racismo — diz José.
Como ajudar
- /// Tanto a biblioteca quanto o projeto Meninas Crespas precisam de doações. Além de livros, materiais pedagógicos e escolares são bem-vindos.
- /// Tecidos e acessórios com estampas étnicas ajudam na construção dos figurinos usados nas aulas e apresentações.
- /// O projeto também busca padrinhos. Atualmente, são as próprias mães-coordenadoras que financiam as ações.
- /// O contato pode ser feito pelos telefones (51) 98562-5310, (51) 99621-5867 ou (51) 99641-2346, com Perla, Paula ou Lisbet.
- /// Pessoalmente, o atendimento é na Casa Emancipa, Avenida Vereador Milton Pozzolo de Oliveira, 59, na Restinga (ao lado da quadra da escola de samba Estado Maior da Restinga).