Três meses após as enchentes que afetaram — em maior ou menor proporção — 471 das 497 cidades gaúchas, surgem os primeiros sinais de que a economia do Estado possa estar de volta à normalidade. Indicadores positivos de emprego, renda, arrecadação, comércio e indústria, por exemplo, tiram o foco do passado e voltam a direcionar as atenções para fatores capazes de garantir crescimentos mais sustentáveis para a atividade local ao longo do tempo.
Economista e professor da UFRGS, Marcelo Portugal afirma que "boa parte do problema de maio foi superado, e o calcanhar de Aquiles da economia gaúcha continua sendo o setor de serviços". É neste segmento, bastante concentrado em regiões muito atingidas, como a Metropolitana e a Serra, em que estão 42% das 2,8 milhões das vagas de emprego formais ativas, hoje, no RS.
Também é a atividade em que se consolidam os principais impactos negativos das baixas associadas ao turismo, ainda prejudicado em razão do fechamento do aeroporto Salgado Filho.
— É uma tragédia pessoal sem tamanho para quem perdeu tudo, mas, do ponto de vista macroeconômico, talvez a tenhamos superestimado. Quando olhamos para o Estado como um todo, levando em consideração que a agricultura vai ter um ano razoável, comparado com um ano péssimo, teremos crescimento — diz Portugal.
Sem questionar a legitimidade, a urgência e a necessidade dos programas de transferência de renda e a antecipação de benefícios implantados a partir de maio, o economista explica que a lógica de mercado determina que aquilo que deixou de ser produzido ou vendido por alguma empresa danificada pelas águas o será por outra em condições de fazê-lo em maior escala.
Ajuste em curso
Esse movimento norteado pelo choque de demanda, reforça Portugal, não anula os problemas individuais e empresariais. Em contrapartida, é responsável por promover um ajuste natural no desempenho macroeconômico, agora, em curso no Estado.
Diante dos dados, Portugal estima — em linha com o que também argumenta o economista-chefe da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), Antônio da Luz (leia abaixo) — que a agropecuária tenha alta na faixa de 14% no encerramento deste ano. Assim, apesar da enchente, o avanço do Produto Interno Bruto (PIB) gaúcho, fixado por ele inicialmente em 3,4%, foi revisado, mas ainda deverá fechar 2024 no campo positivo: em 2,5%, de acordo com os modelos do professor da UFRGS.
Sinais de alento da economia do RS
1) Mercado de trabalho
Após dois meses com mais demissões do que admissões no mercado formal de trabalho do Estado, as contratações com carteira assinada voltaram a superar os desligamentos em julho. O saldo de 6.690 vagas ainda é insuficiente para repor a totalidade dos 30.574 postos destruídos pela enchente, entre maio e junho, mas demarcam a reversão da trajetória de baixa e recolocam o RS em linha com o cenário nacional, onde prevalece viés de alta.
2) Atividade econômica
As tradicionais pesquisas setoriais divulgadas pelo IBGE apontam para alta generalizada do comércio gaúcho e queda menos profunda e abaixo das expectativas na indústria. A retração de 1,1% do setor fabril no primeiro semestre foi menor do que a apurada em igual período do ano passado, de 6,1%. A expansão do comércio, de 7,3%, de janeiro a junho, ficou acima da nacional — de 5,2% — e superou a registrada nos primeiros seis meses de 2023, de 1,2%.
3) Realização de eventos
Fruto de manifesto de empresários que chegaram a fundar um grupo destinado à manutenção do calendário após as enchentes, dois eventos com movimentação em áreas distintas da economia superaram as expectativas. Mesmo sem voos no aeroporto Salgado Filho, a Expoagas, que movimenta o varejo e a indústria de alimentos, gerou R$ 704 milhões em novos negócios. E o resultado da Expointer — R$ 8,1 bilhões — foi recorde, servindo de alento para as expectativas do agro no RS.
4) Arrecadação estadual
As receitas do principal tributo de competência estadual, o ICMS, compõem o caixa do governo e assinalam se a atividade produtiva — seja de bens industriais ou de serviços — está em alta ou em baixa. Em maio e junho deste ano, momento mais crítico da enchente, essa arrecadação ficou em R$ 7,5 bilhões, queda de 10,66% ante os R$ 8,3 bilhões de igual período de 2023. Em julho e agosto de 2024, chegou a R$ 10,1 bilhões, alta de 23,17% em relação aos R$ 8,2 bilhões destes meses no ano passado.
Desafios para o futuro
O ex-secretário estadual da Fazenda Aod Cunha percebe que o Estado mostra recuperação de parte do que se perdeu com a tragédia de maio. Ao avaliar que alguns indicadores estão vinculados ao fluxo de dinheiro novo injetado na economia pelos programas de governo, ele alerta que a continuidade dessa evolução depende, agora, menos de medidas emergenciais e mais de avanços em aspectos estruturais da economia gaúcha e que permanecem por décadas sem resolução.
O principal, comenta, é o tema da irrigação. Em 2024, mesmo com a cheia, o PIB do Estado deverá ser positivo. O que não ocorre, contrapõe Aod, em anos marcados pela estiagem. Foi o que ocorreu em 2022, quando a economia brasileira cresceu 2,9% e a do RS recuou 5,1% em razão da seca.
Esse cenário, reforça o economista, se repete pelo menos uma vez a cada quatro anos. Foi o que fez com que na última década o Estado deixasse de gerar US$ 120 bilhões em riquezas, aponta.
— Se enfrentarmos desafios que já tínhamos antes, podemos aproveitar esse evento da tragédia para unir a sociedade, os governos, e começarmos, de fato, a realizar o que pode fazer com que, depois dessa recuperação, tenhamos uma trajetória melhor — explica, ao chamar a atenção para três vertentes essenciais a serem mais bem exploradas: transição energética, tecnologia e armazenagem de água.
O que pensam as lideranças setoriais
Agro
Por pior que tenha sido (a enchente), e foi horrível, a seca de 2023 foi muito mais prejudicial para o setor. Cada grão que deixa de ser colhido é um grão que não vai virar ração, nem proteína animal, tampouco exportado. O efeito é muito elevado. A ausência dessa produção é penosa. Mas, estamos comparando um ano de base ruim com um ano de base horrível, então só a passagem do 'horrível' para o 'ruim' já tem um efeito positivo, tanto que o PIB do RS cresce este ano, apesar da enchente.
ANTÔNIO DA LUZ
Economista-chefe da Farsul
Indústria
O crescimento da indústria reflete fatores conjunturais, como a base de comparação baixa dos anos anteriores e a retomada de segmentos específicos. No entanto, a atividade continua abaixo dos níveis de 2022. Além disso, os fatores que colaboraram para esse aumento da atividade não se repetirão nos próximos anos. Para um crescimento estrutural e sustentável, é essencial enfrentar desafios de longo prazo, como a melhoria da competitividade, o estímulo à inovação, a retenção de talentos.
CLAUDIO BIER
Presidente da Fiergs
Comércio e serviços
Há retomada pela necessidade de não ficar na espera. A maioria dos nossos representados não consegue voltar, e muitos trabalhadores ainda não conseguiram retomar o seu trabalho. Não podemos atribuir o retorno à injeção de recursos externos, pois estão sendo insuficientes. Muitos estão fazendo o investimento necessário, contraindo dívidas ou gastando suas reservas, um capital que vai fazer faltar lá adiante.
LUIZ CARLOS BOHN
Presidente da Fecomércio