Engenheiro civil de formação, Roberto Azevêdo, 66 anos, ingressou no Itamaraty em 1983, e se tornou um dos mais representativos diplomatas brasileiros dos últimos 40 anos. Após três décadas atuando no Ministério das Relações Exteriores, tendo servido na embaixada brasileira em Washington, Azevêdo se tornou, em 2013, o primeiro latino-americano a ser eleito diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em 2017, foi reconduzido ao cargo para um segundo mandato, e ficou no posto até renunciar em seu último ano de gestão, em 2020.
Ao deixar a OMC, o brasileiro assumiu a vice-presidência global de assuntos corporativos da gigante internacional PepsiCo, onde ficou até 2023. Da companhia, se juntou ao grupo que fundou a YvY Capital, uma gestora com foco em investimentos na área da sustentabilidade e economia verde, que também tem como sócios o ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, o ex-ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, e o ex-presidente do BNDES, Gustavo Montezano.
Nesta entrevista concedida à Zero Hora por e-mail, Roberto Azevêdo comenta seu objetivo ao integrar a YvY Capital, além de detalhar o modelo de negócios da empresa. Azevêdo também analisa a sua passagem à frente da OMC, destaca a importância da instituição em um momento de conflito entre grandes potências globais e reforça a necessidade de uma agenda global comum de combate à crise do clima, apontando o protagonismo que o Brasil pode ter neste tema.
— O país tem que desempenhar papel de liderança no combate à crise climática global — ressalta.
Confira a entrevista completa a seguir
Você foi diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) por sete anos, entre 2013 e 2020. Como você avalia a sua passagem à frente da organização, e como foi o seu processo de decisão para deixar o posto?
Tenho muito orgulho do que conseguimos fazer durante meus dois mandatos. Após 18 anos de existência, ainda no meu primeiro ano como diretor-geral, conseguimos fechar os primeiros acordos multilaterais da OMC. Começamos com o de Facilitação do Comércio, que foi seguido pela eliminação dos subsídios às exportações de produtos agrícolas, entre outros. Também concluímos importantíssimos acordos plurilaterais, aqueles onde nem todos os membros são parte. Por exemplo, o Acordo sobre Tecnologia de Informação, que eliminou tarifas antes aplicadas a um comércio anual superior a um trilhão de dólares.
Em meu segundo mandato, vivemos um período muito difícil com o Trump nos Estados Unidos. Era uma administração muito hostil aos organismos multilaterais. Quando se aproximava o último ano do meu segundo mandato, em 2020, começou a pandemia do covid-19. As negociações e trabalhos da organização foram virtualmente paralisados, e a conferência ministerial foi adiada. Pouco ou nada eu poderia fazer àquela altura, e tomei a decisão de passar o bastão. Deveríamos aproveitar a paralização para efetuar a transição, o que foi feito com êxito.
Como você enxerga a importância da OMC hoje, por ser uma organização supranacional em um mundo com crescentes tensões geopolíticas entre as grandes potências globais, inclusive guerras, como vemos na Ucrânia?
Liberalização comercial já era uma empreitada difícil desde a crise financeira de 2008. A partir de 2017, com a presidência Trump, vimos uma verdadeira guerra comercial entre Estados Unidos e China, além de muitas outras barreiras comerciais impostas pelos EUA, sobretudo na área de aço e alumínio. Outros países responderam impondo barreiras também. Pela primeira vez na história da OMC, o “interesse nacional” foi invocado em litígios na organização. Começou com uma disputa entre Ucrânia e Rússia. Depois, os EUA também usaram o argumento do “interesse nacional” para defender suas barreiras comerciais.
A verdade é que, justamente nesse cenário de extrema polarização, a importância da OMC é maior do que nunca. É um foro importante para diálogo e a maioria dos membros ainda procura observar as regras e princípios dos acordos multilaterais. A eficácia da organização foi duramente atingida quando o veto dos EUA a novos juízes provocou a paralização do Órgão de Apelação. Ainda assim, o mundo estará sempre melhor com a OMC do que sem ela.
Qual foi o seu objetivo ao se juntar à YvY Capital? Para quem ainda não sabe, como funciona a atuação e o modelo de negócios da companhia?
Ao deixar a OMC e, mais tarde, a PepsiCo, estava e sigo convencido que as agendas climática e ambiental teriam papel de grande relevo nas relações econômicas e comerciais. A YvY é uma gestora de ativos com foco exclusivo em investimentos que ajudam a transição para a economia verde. O mercado financeiro carece de gestoras capazes de avaliar os vários elos das cadeias de valor associadas a essa transição. A YvY aquilata oportunidades e riscos na cadeia como um todo, desde o suprimento de insumos, passando pela transformação, armazenagem, distribuição, comercialização e circularidade dos resíduos. A probabilidade de acerto nos investimentos é maximizada.
Seus executivos têm perfis profissionais que se complementam. Alguns são grandes e renomados expoentes do sistema financeiro. Outros, como eu, são peritos em outras frentes: marcos regulatórios, comércio internacional, geopolítica, meio ambiente e clima, mercados de carbono... a lista é longa. Justamente porque a YvY oferece um serviço e uma expertise muito singular no mercado, oferecemos ao investidor oportunidades únicas e de alto retorno.
Quase uma década após o Acordo de Paris, como você avalia os esforços globais para conter a crise climática e avançar na transição para uma economia verde, combatendo as altas taxas de emissões?
Essa agenda não vai desaparecer, apesar de ruídos que ouvimos de vez em quando. Haverá turbulência na rota, mas o caminho está traçado. As Conferências do Clima – as COPs – fazem progresso importante, mas apenas gradual. Não podemos ficar aguardando acordos multilaterais detalhados antes de agir. Os setores público e privado já se movem, mas há uma tremenda descoordenação no plano internacional, sobretudo. Cada país ou região adota, de forma unilateral, políticas públicas que imagina serem as mais adequadas para dar tratamento às questões climáticas e ambientais. Essas políticas respondem a pressões políticas internas e atendem às peculiaridades locais. Os demais países tendem a responder de maneira igualmente autônoma e unilateral. Essa proliferação descoordenada nas regulamentações tende a gerar conflitos políticos e comerciais, retardando o combate eficaz às mudanças climáticas. Temos que criar foros mais ágeis de coordenação, e o setor privado pode ajudar nisso.
Como você avalia a evolução do combate à crise do clima na China e nos Estados Unidos, as atuais maiores potências globais e também responsáveis pelas maiores taxas de emissões de gases de efeito estufa no planeta?
Um combate eficaz às mudanças climáticas depende sobretudo de dois elementos: vontade política e coordenação global. Estados Unidos e China precisam fazer parte e mesmo capitanear esse esforço internacional. A Europa tem procurado liderar esse processo, mas o engajamento de Washington e Pequim é fundamental. Infelizmente, as rivalidades e tensões naquele eixo inviabilizam o tipo de diálogo e de coordenação desejável e necessário. Além disso, o setor privado precisa de previsibilidade no marco regulatório, o que é dificultado por alguns drásticos ciclos eleitorais no ocidente.
Qual é o papel que o Brasil deve e pode ter nesse momento global de combate à crise climática e de transição para uma economia verde?
O Brasil tem um parque industrial diversificado e capaz de inovações, sobretudo na área de transição energética. Tem rede elétrica limpa, vasta biodiversidade e cobertura verde. Tem os maiores mananciais hídricos do mundo e recursos naturais em abundância. O país tem que desempenhar papel de liderança no combate à crise climática global. Mas essa liderança precisa ser conquistada com ações no terreno. Precisamos inspirar com iniciativas nas várias áreas críticas desse processo: respeitando os biomas nativos, investindo nas cadeias de combustíveis renováveis, adotando agricultura regenerativa em escala, estimulando a economia circular e, sobretudo, promovendo alianças e foros climáticos de cooperação internacional. Isso requer harmonização das visões e narrativas internas e estratégia bem definida de atuação externa. Muito está sendo feito nesse sentido, mas precisamos acelerar.
Nessa esteira, como o Brasil pode aproveitar a realização da COP30, em 2025, para buscar mais protagonismo nessa agenda?
A COP30 será um belo desafio. Devemos evitar que as manchetes se reduzam a preservação de florestas e obtenção de apoio financeiro dos países desenvolvidos. Nossa capacidade para contribuir na luta contra mudanças climáticas não pode ser subestimada. Precisamos falar de nossa rede elétrica limpa e de como a baixa pegada de carbono dos produtos brasileiros precisa ser reconhecida e emulada mundo afora; vamos falar da contribuição que nossa agricultura tropical pode dar na descarbonização do planeta; vamos propor rotas de geração de combustíveis sustentáveis para aviação e transportes marítimos. Enfim, vamos ampliar a agenda e inspirar.
Falando sobre a transição energética, como você avalia o potencial do Brasil em relação ao hidrogênio verde? Como o país pode explorar esse potencial da forma mais adequada?
Não resta dúvida quanto ao potencial do país, tanto em matéria de custos de produção, disponibilidade de recursos renováveis e escala. A tendência natural é de que essa produção não se limite a atender apenas o mercado interno, exportar é o caminho natural. Além disso, nosso hidrogênio verde pode ser obtido por várias rotas tecnológicas: solar, eólica, hidráulica, mas também com uso da biomassa. Essa energia limpa pode ser exportada também embutida em produtos produzidos no território nacional. O mais importante é que o marco regulatório evolua de forma desburocratizada, com o viés de apoio, e que a estrutura necessária seja desenvolvida para que nosso potencial seja realizado.
Abordando a relação com os europeus, como você observa hoje o atual estado das discussões sobre o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia?
Estamos buscando esse acordo há décadas. Inclusive, participei desse esforço quando fui subsecretário de assuntos econômicos no Itamaraty. É necessário existir inequívoca vontade política e determinação dos dois lados, nos dois blocos. Nenhuma das dificuldades apontadas é insuperável, as soluções não demandam criatividade infinita. É uma mera questão de vontade política e sentido de urgência.
Os créditos de carbono podem ser uma boa solução para a diminuição das emissões como um todo? O que falta para esse mercado avançar no Brasil?
Em quase todas as áreas da agenda climática, as soluções mais efetivas passam por um marco regulatório adequado: que seja simples, sem burocracia excessiva, transparente, com incentivos claros e suficientes para viabilizar os negócios e, sobretudo, com previsibilidade e segurança jurídica. O Pacto Ecológico, anunciado recentemente pelos três poderes, é um bom passo nessa direção. Termos um mercado regulado que permita a exportação dos créditos de carbono gerados no Brasil é, a meu ver, peça central desse sistema.
Para muitos, o agronegócio é visto como um dos grandes vilões no combate à crise do clima. Quais iniciativas o agro brasileiro já toma, e pode fomentar ainda mais, para mudar essa imagem e mostrar que também pode ser parte da solução e não só do problema?
O mais importante é a mudança cultural que hoje já podemos observar nas principais lideranças do agro. A convicção de que não basta defender as nossas práticas com bons argumentos ou atacar as assimetrias do discurso fácil que vem do Norte (global), com frequência em benefício próprio. Precisamos abraçar a agenda climática e ambiental, fazendo isso de forma crível e orientada para ações no terreno. A agricultura regenerativa e o agronegócio de baixo carbono são excelentes negócios, mas essa transição precisa ser apoiada com políticas públicas inteligentes e duradouras. Estamos no caminho certo e fazendo progresso. Mas mudanças culturais, com visão e planos de ação bem definidos e estratégicos, não vicejam e amadurecem da noite para o dia.