Viver sem um trabalho formal. Necessidade para uns, escolha para outros. Certo é que quem se aventura nesse caminho distante da carteira assinada recebe a alcunha de empreendedor. E se a empreitada costuma ser difícil mesmo onde o acesso é maior, em espaços desabonados ou em posições sociais ainda em luta, os desafios se acentuam.
É o caso das mulheres que escolhem a arte de empreender como um caminho, ainda mais aquelas das classes C, D e E. Foi isso que uma pesquisa do Sebrae-RS buscou explicar ouvindo 50 mulheres empreendedoras destes estratos sociais no Rio Grande do Sul. Sintetizar os maiores desafios enfrentados por estas pessoas que resolveram (ou precisaram) seguir um caminho de buscar o próprio sustento através do trabalho autônomo.
— Elas empreendem por necessidade. Muitas até têm trabalho formal, mas complementam a renda da família com esta ocupação. Muitas são mães solo, sustentam a casa e cuidam dos filhos. E a maioria não se vê como empreendedora, se vê como alguém que precisa se virar para sustentar a casa. O empreendedor é algo superior pra elas — explica Andréia Nascimento, especialista em Inteligência de Negócio do Sebrae-RS:
— Elas têm a dupla jornada, algumas enfrentam a violência doméstica. Muitas partiram para esse caminho por encontrar preconceitos e resistência no mercado de trabalho formal — conclui ela, sintetizando o perfil formado cruzando as 50 personagens ouvidas.
O caminho do empreender é, por vezes, uma espécie de autorrealização para quem o segue. No caso das mulheres ouvidas pela Sebrae, a razão mais comum é outra: estratégia de sobrevivência. "As nossas entrevistas precisam criar uma forma de dar conta das necessidades fisiológicas de si e da família", aponta o relatório.
E nesta jornada, um desafio a mais para as empreendedoras é o quanto o entorno tenta as diminuir. Conforme a pesquisa, "o preconceito atravessa essas mulheres e atinge diversas camadas da sua existência, trazendo consequências irreparáveis na percepção de valor sobre si mesmas".
Preconceitos enfrentados na jornada
Entre os tipo de preconceito citados entre as 50 personagens ouvidas, aparecem o machismo, a homofobia, a gordofobia, o racismo e a intolerância religiosa. Ainda mais três tipos de preconceito foram identificados.
O classismo, com mulheres que relataram clientes não querendo ir até o ponto de atendimento em razão do local estar na periferia. O preconceito estético, relatado por quem sofria por conta da aparência. E o etarismo, que é o preconceito com a idade, onde mulheres chamam atenção para a dificuldade de se manter no mercado com o avanço dos anos.
— Tivemos vários relatos de discriminação, dessas mulheres expressando como sentiram a hostilidade do mundo fora do seu entorno, da sua casa. Tem aquelas que ficam resilientes. Tem outras que se retraem e tentam se proteger de alguma forma. Mas, infelizmente, muitas aceitam por serem situações que elas veem desde sempre e se acostumam. Ainda assim, pontuam que essa discriminação surge como forma de apontar um impeditivo para elas desempenharem o trabalho — pontua a especialista do Sebrae.
E é na prática que estas mulheres mostram o contrário, desempenham suas funções e tiram do mundo dos sonhos uma ideia de prover a sua subsistência. Mesmo que em casa, mesmo que em uma dupla jornada, mesmo que para isso tenham que se desdobrar em muitas.
Nesta reportagem, GZH conta história de mulheres empreendedoras que quebram barreiras e fincam os pés na terra firme, provando que podem fazer o que quiserem, mesmo com os percalços do caminho. Ainda que reconhecendo que, sem esses obstáculos e com mais igualdade, a jornada seria menos árdua.
"Diziam que era desculpa para não trabalhar"
— Hoje é bonito falar que é empreendedor. Quando eu comecei, diziam que era desculpa para não trabalhar — recorda Kelly Amaro, 46 anos.
Moradora da zona sul da Capital, ela domina a venda de roupas como sacoleira ou em loja própria há mais de duas décadas. Com o nascimento do filho, em 1999, Kelly perdeu o emprego formal e começou a vender lingeries e semijoias, contando também com a ajuda da mãe, que levava parte dos itens para vender no trabalho.
Passados os primeiros anos do guri, Kelly voltou para o mercado formal de trabalho, mas sem deixar de lado a arte de sacoleira. Até 2013, seguiu nessa jornada dupla, uma perspectiva comum para as mulheres empreendedoras, como apontou a pesquisa do Sebrae.
— Trabalhei em telemarketing e em uma instituição financeira. Sempre levava comigo coisas para vender, como as roupas femininas, por exemplo — recorda ela.
Com o trabalho, até então, secundário crescendo, a moradora da Restinga parou de pegar as roupas com uma amiga para revender e deu início às viagens até Santa Catarina, onde comprava os itens direto dos fabricantes. Certa vez, até se aventurou em São Paulo, outro conhecido polo para aquisição de confecções. Mas foi um tiro no escuro:
— Não conhecia nada, não sabia onde eram os locais certos e bons para comprar. Acabou sendo um investimento sem retorno.
Altos e baixos
Tentativa e erro também fazem parte da jornada do empreendedor. E Kelly sabe bem disso, como sua história vai contar. Um outro grande obstáculo para mulheres da periferia que empreendem é o planejamento e a gestão do negócio.
E Kelly sentia isso, principalmente, com o cansaço batendo a porta. O trabalho formal durante a semana e as viagens para comprar roupas aos finais de semana estavam lhe desgastando. Foi quando decidiu priorizar um caminho. Entretanto, sem a organização necessária, veio a primeira quebra de expectativa.
— A venda de roupas estava dando dinheiro, aí resolvi largar o emprego e abrir minha loja. Só que as minhas clientes eram as minhas colegas de trabalho. Por isso, foi um começo complicado. As minhas clientes agora estavam longe da minha casa. E comecei a perceber que não tinha mais clientes. Então, recorri ao fiado, o que acabou fazendo eu perder todo meu investimento. Quebrei e quase fechei no primeiro ano de trabalho — recorda ela.
Virada de chave
Sem perspectiva de melhora, em 2016, Kelly decidiu que precisava de uma virada de chave. E isso viria através da confecção própria. Uma amiga que dominava linha e agulha se ofereceu para ensinar, mas acabou recuando de última hora.
Kelly foi atrás de outras iniciativas, algo que fosse gratuito. E achou um curso de Corte e Costura em Novo Hamburgo, na Região Metropolitana, em uma iniciativa ligada ao Senac. Com ajuda da mãe para os deslocamentos, absorveu os conhecimentos durante seis meses, enquanto tocava a loja em casa, a esta altura, praticamente vazia.
— As pessoas não acreditam no potencial, não dão oportunidades. Eu saía da Restinga para ir no Sarandi comprar um metro de tecido, como não tinha muito dinheiro. E aí, não era bem atendida. Às vezes, eu queria uma nota fiscal e não queriam me dar por ser pouco o que eu tinha comprado. É muito difícil ter reconhecimento e valorização. Na dificuldade, a primeira coisa que diziam era: "Volta pra carteira assinada" — cita a criadora da By Kelly Modas.
A partir de 2018, as coisas engrenaram. Kelly locou um espaço para abrigar mais máquinas de costura e abrir sua loja, que, até então, funcionava em casa. O crescimento ia de vento em polpa até o famigerado março de 2020, quando a pandemia causada pelo coronavírus reduziu a circulação e afetou negócios.
Nos primeiros meses, Kelly começou a receber pedidos para que confeccionasse máscaras, mas o olhar ainda limitado a deixou perdida. Sabia fazer roupas, não máscaras. Entretanto, foi ao migrar para o segmento emergencial que o sustento se manteve durante os períodos mais complicados da pandemia.
— As máscaras me sustentaram, foi o que consegui fazer naquele momento, porque ninguém queria comprar roupa, todo mundo estava em casa — recorda
Mais um recomeço
Em outubro de 2020, um novo choque. Em meio à pandemia, Kelly descobriu um câncer de mama:
— Desmoronou meu mundo, comecei o tratamento, fiquei muito debilitada e não consegui mais costurar. Tive que fechar a loja e junto com câncer ainda tive covid-19 em março de 2021. Foram momentos difíceis.
Hoje, o tratamento já foi concluído e Kelly está em remissão — quando não há mais o câncer e a paciente segue em acompanhamento para consultas de rotina. Entretanto, além da mama, ela também teve linfomas em um dos braços. E isso prejudicou a sua mobilidade. Precisou abdicar de suas criações, pois não consegue mais costurar, entregou o espaço alugado e voltou a atuar em casa:
— Era hora de tomar um fôlego e recomeçar.
Mas, nada para Kelly. Ela segue vendendo roupas na By Kelly Modas, sua marca, e já tem projetos para ampliar a loja em casa. As décadas de experiência também a fizeram procurar um novo diferencial para o seu negócio. E, de novo, um curso gratuito, encontrado por ela, cruzou seu caminho. Agora, o aprendizado era de consultoria de imagem e estilo.
— Meu propósito é fazer a cliente ter a autoestima elevada. Ela não vem e só escolhe uma roupa. Como ofereço essa consultoria de imagem, ela sabe a modelagem e o tecido que ficam bons pra ela. Esse aprendizado me ensinou a fazer com a cliente saia menos frustrada do provador, algo que acontece muito com nós, mulheres. Hoje, eu consigo direcionar a venda correta para aquela mulher. Sei qual é o estilo dela, a roupa que fica melhor — explica Kelly.
Experiência é o produto
A jornada dupla, a busca por uma renda extra e a descoberta de um talento que estava diante dos olhos. Fatores que se repetem entre as mulheres ouvidas na pesquisa do Sebrae também ecoam para assistente administrativa e financeira Thais Nunes Fraga, 42 anos.
Moradora do bairro Restinga, na Capital, Thais trabalha há mais de 15 anos na área administrativa e financeira. Mas sempre pensou em algo a mais que pudesse fazer. Na pandemia, com o trabalho em casa, começou a estudar sobre caminhos para seguir e como poderia aproveitar seu conhecimento. Ao mesmo tempo, ainda não havia se dado conta de que a experiência que carregava na área administrativa e financeira já era o produto que poderia vender.
— Na pandemia, a empresa que trabalho chegou a parar de funcionar por um período. Pesquisando, descobri que poderia monetizar (transformar em dinheiro) o que já faço, atendendo várias outras pessoas físicas e não só empresas. Hoje, é uma renda extra, mas quero tornar a minha renda principal futuramente — explica Thais, que divide a casa com o marido e um enteado.
E foi quando teve esse estalo que passou a oferecer o serviço de assistente virtual. Thais atende Microempreendedores Individuais (MEIs) e outros profissionais liberais, como construtores civis.
Além da ajuda para abertura do MEI, emissão das guias mensais e declarações, ela orienta os clientes sobre a importância da organização financeira, da separação entre as finanças pessoais e do negócio, entre outras questões ligadas ao trabalho autônomo. É uma corrente de um empreendedor ajudando outro.
— Costumo trabalhar nisso à noite e aos finais de semana, quando a demanda é maior. Conto com a ajuda do meu esposo para nos dividirmos nas tarefas da casa. Então, apesar de exigir uma rotina organizada, é muito bom — pontua Thais.
As maiores dificuldades em relação ao negócio, segundo a empreendedora, estão na relação de confiança com clientes, de entenderem a necessidade de ter transparência nos dados da empresa para que o trabalho seja melhor executado.
E também sobre o modelo virtual, principalmente, pelo costume de algumas empresas de terem o funcionário ainda de forma presencial, mesmo em casos que isto não é necessário. Mesmo com intercorrências, Thais acredita ter encontrado algo onde se realizou:
— Tive dias bons e também vários dias ruins. Não se pode é desistir, vai ter tempestade, mas é preciso ter foco no que se quer fazer. Superar isso leva a gente a se sentir capaz para superar qualquer desafio.
Crescendo perto de quem se ama
Brenda Moraes, 29 anos, foi uma das 50 gaúchas ouvidas pelo Sebrae durante a pesquisa sobre as empreendedoras gaúchas nas classes C, D e E. Moradora do bairro Guajuviras, em Canoas, ela toca um brechó de roupas infantis na área de casa. O envolvimento com a venda de roupas e semijoias é mais antigo, sempre como um auxiliar ao trabalho formal.
Mas, depois do nascimento do segundo filho, há cinco anos, ficou mais difícil manter os cuidados dele e da irmã, de nove anos, estando distante. Por isso, Brenda quis se manter por perto. E ter o próprio negócio era uma maneira de complementar a renda com a do marido, que é pintor.
Brenda é a expressão de um sentimento presente de maneira forte na pesquisa do Sebrae sobre as empreendedoras femininas: a influência da maternidade na escolha de ter o próprio negócio e, principalmente, onde tê-lo.
"A possibilidade de trabalhar de casa e poder proporcionar um espaço psicológico seguro para si e para os filhos favorece que o negócio se desenvolva nesse território", cita a pesquisa. Brenda também contou com a ajuda da mãe no início do negócio, em julho do ano passado. Outro fator pontuado pelo estudo. "Trabalhar em casa também proporciona contar com a ajuda de outros familiares, tanto no trabalho propriamente dito, quanto no cuidado com os filhos".
— Eu abro das 10h até umas 19h. Fecho só pra levar ou buscar as crianças na escola — conta a moradora de Canoas.
O fato da casa ser também um espaço seguro não é impeditivo de avanço. Brenda pensa no futuro, com um espaço mais amplo e próprio:
— Eu quero conseguir mais, um espaço melhor. Tenho roupas que ficam guardadas em caixas por não ter o espaço para expor tudo. Futuramente, quero alugar uma loja aqui no bairro mesmo.
Negócios costumam nascer do incentivo
Uma mulher muitas vezes tem o talento e nem sabe. Esse foi um dos pontos detectados pelo Sebrae. Entre as 50 gaúchas ouvidas, muitas começaram o negócio depois do estímulo de alguém, seja parente, amigos etc.
— Normalmente, a mulher já tem uma habilidade e a necessidade de mais dinheiro. Mas tem um problema de autoestima, de não se sentir capaz. E aí, o incentivo de uma terceira pessoa ajuda elas a tomarem a decisão — explica Andréia, especialista em Inteligência de Negócio do Sebrae.
Parecido com o caminho tomado por Alexandra Borges Fraga, 43 anos. Criadora da Borges Salgados, ela também é uma das mães que toca o negócio de casa para, principalmente, estar mais perto dos filhos.
Há cerca de seis anos, enquanto estudava num curso técnico em Nutrição, ela vendia salgados para ajustar nas despesas de deslocamento. Enquanto isso, ainda trabalhava como auxiliar de cozinha ou atendente, sempre no ramo alimentício. Mas, com o nascimento da filha, a moradora do bairro Restinga, na Capital, resolveu deixar o trabalho.
E quando a filha mais velha foi completou 15 anos, Alexandra e o marido buscavam por salgados para o aniversário. Entretanto, nenhuma opção agradava. Por isso, resolveram fazer por conta própria 5 mil quitutes para o evento. Foi um sucesso e logo o boca a boca começou. E aí, vieram os pedidos (e o incentivo) para que ela começasse a produzir o produto para venda.
— Hoje, eu que faço tudo, trabalho sozinha e de casa. Meu marido trabalha fora como cozinheiro. Em casa, também consigo cuidar da minha filha pequena — explica Alexandra.
A primogênita seguiu o caminho da mãe no empreendedorismo e é massoterapeuta. Hoje, atende em sala própria na região central de Porto Alegre. Com apoio e liberdade da mãe desde jovem para escolher os caminhos, ela teve uma caminhada menos desafiadora do que a geração anterior, ao menos um bom sinal de que os tempos vêm mudando.
Principais pontos da pesquisa
- O Sebrae-RS ouviu 50 mulheres em nove regiões do Rio Grande do Sul. O público-alvo eram mulheres que tenham iniciado o seu negócio nos últimos seis meses.
Gênero
- Mulheres - 80%
- LGBTQIA+ - 20%
Faixa etária
- 20-24 - 15%
- 25-35 - 25%
- 35-49 - 35%
- 50-64 - 25%
Classe social
- C - 40%
- D - 30%
- E - 30%
Ramo do empreendimento
- Acessórios/Vestuário - 14
- Alimentação - 13
- Beleza/Estética - 12
- Prestação de serviço/Técnico do trabalho - 6
- Artesanato/Cultura - 4
- Serviço de limpeza - 1