Após o resultado de novembro, informado na última sexta-feira, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumula alta de 5,13% no país em 2022 – o menor patamar desde fevereiro de 2021. A trajetória, considerada positiva, é fruto de uma desaceleração que, no entanto, não se repete nos alimentos e bebidas. Nesse grupo, a expansão em igual período é cerca de duas vezes superior à inflação geral, que chega a 10,91% no Brasil.
A comparação na Grande Porto Alegre é ainda mais acentuada. Enquanto o índice geral na Região Metropolitana acumula alta de 3,04% de janeiro a novembro, o avanço nos alimentos e bebida alcança 13,13% - ou seja, acima de quatro vezes a mais.
Cada nova divulgação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) evidencia a persistência da inflação sobre os itens da cesta básica, o que torna os efeitos mais corrosivos sobre o poder de compra das famílias com as finanças menos protegidas.
Há uma entre tantas máximas dos economistas que resume o quadro: "a inflação chega para todos, mas atinge antes e mais forte a população de menor renda". Nesse contexto inflacionário, o salário médio real dos brasileiros não retomou aos patamares pré-pandemia e segue em declínio. No ano, caiu 8,78% – de R$ 2.118,96, em janeiro, para R$ 1.932,93, em outubro.
Ajuda a entender melhor o panorama atual quando se olha para a evolução dos números e ações praticadas. Em junho, o IPCA subia 5,49% no ano (e 11,89% em 12 meses) e ameaçava fechar, pelo quarto ano seguido, acima do centro da meta (estipulada em 3,5% para 2022). Na ocasião, o vilão a ser abatido era o frequente reajuste dos combustíveis, provocado por série de conjunturas internacionais, responsáveis por reacender o debate interno sobre os métodos de precificação da Petrobras.
Redução das alíquotas do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e comunicações, com a fixação de um teto entre 17% e 18% para os Estados, ao custo de bilhões a menos em arrecadação para os entes da federação, foi uma das soluções pontuais encontradas. Foi aprovada pelo Congresso por meio de lei complementar. Na semana encerrada em 25 de junho, quando a medida entrou em vigor, os respectivos preços médios para o litro da gasolina e do diesel S-10, no país, batiam em R$ 8,89 e R$ 8, respectivamente, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo.
Quase seis meses depois, a gasolina teve queda de 43,4%, vendida a R$ 5,03 nos postos, na semana encerrada em 3 de dezembro. No diesel S-10, cujo efeito multiplicador para demais preços da economia é mais consistente, em razão de seu uso nos transportes, o impacto foi menor: retrocedeu 16,6%, negociado em média a R$ 6,67. O detalhe é que esse combustível, que historicamente teve valor inferior ao da gasolina, hoje, continua com preço médio R$ 1,64 superior.
Os efeitos não demoraram a aparecer. Em julho (-0,68%), agosto (-0,36%) e setembro (-0,29%), o IPCA teve as três únicas quedas no ano. Mas nos alimentos, leve baixa viria somente em setembro (-0,51%), com altas em agosto (+0,24) e julho (+1,30%).
De março de 2021 até hoje, o juro básico subiu 11,75 pontos percentuais – de 2% para 13,75%. Esse que é o principal instrumento da política monetária para combater à inflação, em síntese, tem a pretensão de puxar o freio da atividade para tentar conter a circulação de moedas e, por consequência de médio ou longo prazo, reduzir a pressão inflacionária sobre preços.
Mas por que, apesar de todas as ações implementadas, os alimentos insistem em não ceder? Ex-diretor do Banco Central, Alexandre Schwartsman identifica a ponta solta no processo: a política fiscal. E enfatiza que "pode-se fazer um monte de coisas, não necessariamente as certas, inclusive o que já foi realizado como os combustíveis, e baixar impostos". O resultado, explica, é uma renúncia de arrecadação que virá, "literalmente" com juros à frente.
Em resumo, diz Schwartsman, agrava-se o desequilíbrio fiscal, a percepção de risco é ampliada, reflete-se em dólar mais caro. Como boa parte dos alimentos é transacionada internacionalmente, o fator câmbio traz na bagagem mais inflação subsequente em troca de breve alívio doméstico para alguns preços, não o dos alimentos, no primeiro momento.
Desequilíbrio de oferta e demanda monetária
Economista-chefe da CDL Porto Alegre, Oscar Frank destaca as razões estruturais, que passam por gastos de governo superiores à arrecadação (déficit), baixa produtividade da economia, gargalos logísticos, tributários, de capital humano e segurança jurídica, que acabam por reduzir a oferta de produtos, um dos fatores preponderantes para a elevação de preços.
Frank ressalva que o distanciamento social durante a pandemia estancou a produção, razão pela qual os governos – não só do Brasil – despejaram recursos extras (outro fator que contribui com a alta dos preços) na tentativa de estimular demanda por consumo. No país, foram R$ 591 bilhões, entre 2020 e 2022, a maior parte no pagamento dos auxílios emergencial e Brasil.
No mundo, estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), cravam em US$ 16 trilhões o aumento da base monetária (dinheiro) em circulação. Do ponto de vista fiscal (crédito e desonerações), são outros US$ 7 trilhões, que ajudaram as atividades econômicas ao redor do planeta a se reerguerem mais rapidamente, mas deixaram no horizonte um rastro inflacionário a ser contido.
Economista-chefe da Federação da Agricultura no Rio Grande do Sul (Farsul), Antônio da Luz afirma que no país não faltam alimentos e o problema está na deterioração da renda da população. Segundo ele, o fato abre a reflexão sobre o crescimento econômico e pontua que a inflação é fruto do desequilíbrio de oferta e demanda monetária. Reforça que em 2020 e 2021, a base monetária em circulação na economia nacional aumentou em 30% (R$ 591 bilhões a mais) em programas emergenciais.
De olho nas feiras e em descontos
Na prática, a aposentada Eulália Alves, 83 anos, repete o ritual de todas as terças-feiras, na Feira Modelo, realizada no Largo Zumbi dos Palmares, na Cidade Baixa, em Porto Alegre.
Na companhia de um carrinho de compras – às vezes utilizado para duas viagens até a residência, a poucas quadras dali, comenta –, ela mostra os grãos de feijão "graúdos" a escorrer entre os dedos e que não necessitam "ser escolhidos, evitando o desperdício", o que também funciona como uma espécie de "economia", diz.
É que, de acordo com Eulália, assim como outros frequentadores, produtos mais em conta, tempos atrás encontrados em abundância nas feiras, estão cada vez mais equiparados aos dos mercados tradicionais.
— Cebola e ovos ainda têm uma pequena diferença —, relata o policial militar reformado Flávio da Silva, 84 anos.
José Paulo da Rosa, 66, acrescenta que é preciso ficar atento a cada possibilidade de pagar menos pelos alimentos e, por isso, costuma acompanhar de perto os dias de promoção de cada estabelecimento e feiras da cidade:
— A gente está sempre atrás do menor preço.
Repensar incentivos e tributos em programas
Longe de refutar os efeitos prioritários das políticas fiscal e monetária para o controle de preços e reconstrução da renda familiar, Paulo Niederle, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista de do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), afirma que é preciso repensar incentivos e tributos em programas pontuais que auxiliem a aliviar o núcleo inflacionário dos alimentos. Segundo ele, uma das questões centrais está nas periferias das grandes cidades.
— Fazer com que os produtos cheguem com menos entraves em pequenas redes de varejo e sistemas de restaurantes populares nesses locais é o primeiro passo —, avalia. Ele cita o exemplo de Curitiba, em que um Sacolão funciona com permissionários, licitados pela prefeitura (mas poderia ser o governo do Estado, diz), que define os preços de 10 produtos das cestas básicas todos os meses. Esses itens passam a ser subsidiados com recursos do município e os revendedores devem seguir a tabela acordada. Para os demais, utiliza-se o preço de mercado.
Estoques
Para Niederle, são dois fatores que devem ser levados em paralelo. De um lado, retomar paulatinamente os estoques, e por outro, ampliar a produção desses alimentos que serão armazenados e adquiridos pelos governos. É o caso do feijão, cujas importações, até o primeiro semestre de 2022, contabilizavam 34.777 toneladas contra 23.765 no ano passado (alta de 46%), apesar de um aumento da área plantada no país. O fato contribui com a elevação de 15,84% no ano em um dos itens essenciais na mesa dos brasileiros. No segundo aspecto, identifica como o tópico mais crítico no RS a política de crédito rural.
Segundo o professor da UFRGS, os juros agrícolas para o custeio da soja não deveriam ser iguais aos de outras culturas (como batata, arroz e tomate), pois a commodity internacional conta com um sistema de comercialização muito mais favorável. Para promover determinados gêneros, comenta, seria necessário reduzir os juros.
— Não me parece razoável manter uma taxa tão baixa para a soja. Pode-se argumentar que não haveria espaço fiscal, mas é preciso equilibrar, elevar um pouco a soja e reduzir em outras culturas. Para os produtores de soja, o que interessa, de fato, é o câmbio que vai fazer efeito no preço. Mas para os Estados isso abria a possibilidade de reduzir significativamente os juros dos produtos da cesta básica, o efeito fiscal seria praticamente nulo, e agiria para extrair a pressão nos preços alimentares em meio a uma crise inflacionária — analisa Niederle.
O professor da UFRGS chama a atenção também para modelos alternativos já existentes de entrega compartilhada entre cooperativas de produtos da agricultura familiar para reduzir o custo logístico (um dos componentes mais pesados sobre os preços), ampliação de programas de compras de alimentos governamentais para a rede escolar e outras experiências complementares.
– Seria possível prever sem nenhuma regra draconiana a oferta de alimentos mais saudáveis e também para a população de menor renda. Ações que têm efeito geral seriam recuperar o poder de compra do salário mínimo e políticas de benefícios fiscais para determinados produtos ou setores. Esses exemplos mais pontuais podem parecer pequenos, mas acabam por se articularem às políticas monetária e fiscal – avalia Niederle.