Quem circula pelo Litoral, pela Serra e pela Capital pode reparar em uma cena que tende a se tornar cada vez mais corriqueira: veículos elétricos estacionados em paradouros de concessionárias ou empresas para a recarga de bateria da nova geração de automóveis eletrificados. Em um ano, a quantidade desse tipo de carros, emplacados no Estado, saltou 81,9% – de 1.043, em 2020, para 1.897 no fechamento de 2021, conforme aponta a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE).
A taxa de expansão do Rio Grande do Sul, supera a nacional, que, em igual período, com 34.990 unidades, avançou 77%. Trata-se do melhor resultado da série histórica medida pela entidade no Brasil.
A novidade, comenta o presidente da ABVE, Adalberto Maluf, é a evolução nos plug-ins, ou seja, aqueles que possuem recargas externas. Entre os puramente elétricos, sem nenhum um tipo de combustível fóssil alternativo, a participação também subiu, de 4% para 8% do total de emplacamentos. No Estado, a proporção foi intermediária: de 5,5%. Para o dirigente, os dados demonstram maturidade do setor, em especial, na categoria dos comerciais leves. Maluf destaca o segmento dos híbridos (elétrico e combustível) em relação aos convencionais.
Em 2021, quase 15 mil novos modelos dotados de recarga externa passaram a rodar no país, o que, segundo ele, ajuda a impulsionar ecossistemas de inovação para atender à demanda. No Estado, em igual período, 36,5% dos carros elétricos emplacados estão nesse enquadramento, que já é a aposta em vendas para a fase de transição entre a gasolina e a eletricidade nos carros.
— Agora, é necessário desenvolver eletrovias (postos de recargas rápidas). Já temos no Nordeste (da Neoenergia, para conectar Salvador, na Bahia, a Natal, no Rio Grande do Norte), no Paraná (da Copel, com 730 quilômetros de extensão), e Santa Catarina e Rio Grande do Sul também contam com projetos para investimentos em recarga — pontua Maluf.
Depois do preço (um veículo eletrificado ainda custa de duas a quatro vezes mais do que um similar a combustível fóssil), a infraestrutura de recarga é o fator que mais joga contra o mercado no país. Presidente do Sindicato dos Concessionários e Distribuidores de Veículos (Sincodiv/Fenabrave), Paulo Siqueira alerta que, no Brasil, caso a frota de eletrificados, que hoje representa 1,8% da total, com mais de 77 mil unidades em circulação, chegue a 10%, haveria problemas de abastecimento.
— Teríamos que ativar termelétricas (carvão ou combustível fóssil). Isso anularia a vantagem ecológica da eletrificação. Embora a indústria automotiva mundial tenha apostado nessa matriz, os desafios são complexos e estão distantes da solução — argumenta.
Carregadores
Na prática, o engenheiro mecânico e diretor técnico da concessionária San Marino, Mário Augusto Guglielmi, delimita três tipos de carregadores. As peças são internas e exigem fonte de energia para entrar em ação. As baterias, diz, concentram cerca de 50 quilowatts de energia, o que equivale ao consumo de uma casa de 200 quilowatts/hora, por mês.
Na melhor das hipóteses, o carro elétrico, em uma residência, vai significar o dobro de energia
MÁRIO AUGUSTO GUGLIELMI
Engenheiro mecânico e diretor técnico da concessionária San Marino
No primeiro modelo, explica, é possível plugar o automóvel em tomada de 220 volts, cuja capacidade seria de um quilowatt por hora. Levaria cerca de dois dias para alcançar a carga de 50 quilowatts. A segunda, mais potente, requer instalação específica com mudança de disjuntor e extensão até a garagem para que a recarga ocorra em até 12 horas. O custo fica entre R$ 10 mil e R$ 15 mil. A terceira, pouco usada em residências, usa corrente contínua em vez da padrão (alternada). É oferecida nas eletrovias e reduz o tempo de espera para até duas horas.
— De qualquer maneira, estamos falando em consumir o equivalente a uma casa, em uma semana, para rodar 300 quilômetros. Na melhor das hipóteses, o carro elétrico, em uma residência, vai significar o dobro de energia — afirma.
Consumo sustentável é aposta do mercado
O consumo de energia e a necessidade de infraestrutura são pontos cruciais para a consolidação do mercado no Brasil. Presidente da ABVE, Adalberto Maluf, sustenta que mais de 90% das recargas acontecem à noite. Nesse período, contrapõe, 99% da energia é oriunda de fontes renováveis, como as usinas eólicas e PCHs (pequenas hidrelétricas).
Segundo ele, não é por acaso que a Organização das Nações Unidas escolheu a eletrificação como a matriz mais adequada nos veículos para fazer frente às necessidades ambientais. O mesmo ocorreu na União Europeia e nos Estados Unidos, onde apesar da pressão inicial das montadoras, o modelo chegou para ficar.
Para se ter uma ideia, Renault, GM, Nissan, Volvo, Volkswagen, Honda, Audi, Jaguar, Ford e BMW, entre outras, já marcaram data para em até oito anos encerrarem suas produções de automóveis movidos a combustível fóssil. No Brasil, com base em estudos da CPFL, o dirigente acrescenta que, quando a participação dos elétricos chegar a um terço da frota nacional, o consumo de energia aumentará somente 1,7 ponto percentual na relação com os níveis atuais, algo que dificilmente acontecerá antes de 2030.
— Se os números fossem ruins, as empresas e governos não teriam cedido. Nossa matriz é uma das mais limpas do mundo. Mesmo em matrizes sujas (termelétricas), a redução equivalente de CO2 (gás carbônico) é de 30%. Nas emissões locais (dos carros) é sempre de 100%. É um caminho sem volta — afirma.
A rotina de um motorista com um modelo eletrificado
Depois de tombo superior a 26% em 2020, os emplacamentos de carros convencionais no país cresceram apenas 2,98% em 2021, conforme levantamento da Fenabrave, entidade que representa as concessionárias. O desempenho fica bastante abaixo do registrado pelos veículos eletrificados em igual período.
Mesmo com preços elevados e baixa oferta de infraestrutura no Estado, há quem aponte diversas vantagens na transição. O fisioterapeuta e empresário Felipe Duarte, 36 anos, está entre eles e adquiriu o seu primeiro carro 100% elétrico em outubro do ano passado.
Aficionado por veículos da BMW, trocou um sedã da marca por um Mini Cooper – o modelo compacto da montadora alemã. Na ponta do lápis, afirma que o cálculo indica que, em dois anos, a economia com gasolina anulará a diferença de preço na comparação com um similar
não elétrico.
A disparada dos combustíveis, diz, foi o pontapé inicial para começar a busca por alternativas mais viáveis de abastecimento. Além disso, projeções da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE) apontam que o fator preço será equilibrado já na segunda metade de 2023 no Brasil.
Atualmente, para se ter uma ideia, o quinto eletrificado mais emplacado no Estado, o Volvo XC40, foi lançado em setembro do ano passado com preço médio de R$ 389 mil. Modelo similar, convencional, é encontrado com diferença inferior a R$ 105 mil. Em cenário de custos mais compatíveis, como o da Europa, por exemplo, as vendas totais no mercado saltaram de 3%, em 2020, para o equivalente a 27%, no ano passado.
— Como utilizo muito o carro na cidade, comecei a especular a relação custo e benefício e descobri, surpreendentemente, que faria todo sentido para a minha necessidade — comenta Duarte.
Deslocamentos com recarga no caminho
O empresário é morador da zona sul de Porto Alegre. Antes da compra, a concessionária instalou, sem cobranças adicionais, um carregador do tipo wall box (alimentado pela rede doméstica tradicional, mas que fornece maior potência e transforma o carregamento lento, em rápido) em sua residência. Assim, em três horas, a bateria está completa e garante autonomia de 234 quilômetros de rodagem.
Além da opção na garagem da própria casa, Duarte costuma utilizar os pontos disponíveis no BarraShopping, enquanto realiza compras, ou no trabalho, no Edifício Trend 24, no bairro Independência, onde mantém uma clínica de fisioterapia e acessa o espaço de recarga
do local.
— Inicialmente, o planejamento era usar o carro na cidade e carregar em casa, na tomada, o que acrescentaria uns R$ 50 na conta de luz mensal. Logo, descobri pontos de recarga externos e, com chegada do verão, percebi que havia opções no Litoral. Tenho me deslocado para a praia quase todos os finais de semana, sem problemas para recarregar — argumenta Duarte.
O fisioterapeuta também viaja, com certa frequência, para Caxias do Sul. Lá possui outra empresa e relata não encontrar dificuldades com o recarregamento nesse destino.
— Com base na minha experiência, aconselho a mudança. Só o quem tem que cuidar é o perfil do motorista, porque ainda é algo mais indicado para cidade. Isso me foi muito bem esclarecido pela concessionária no momento da compra. Ainda assim, para o Litoral e a Serra, existem opções de recarga que contemplam as minhas necessidades — avalia Duarte.
Ações tocadas pela iniciativa privada
Enquanto faltam políticas públicas no país, empresas disponibilizam alternativas aos usuários. Na concessionária Iesa, por exemplo, além dos pontos de carregamento nas lojas, existem dois postos de recargas no Litoral: na BR-101, em Osório, e no Parador Grupo Iesa, na Avenida Paraguassu, em Xangri-lá.
O diretor comercial Alexandre Barbosa conta que, até o ano passado, as vendas só eram efetuadas após a instalação necessária para o carregamento nas residências dos clientes. Outra iniciativa, da Volvo, que até o fim de 2022 pretende estar com a linha de produção 100% eletrificada, prevê a instalação de 300 pontos de carregamento na Região Sul.
O Estado possui uma das menores malhas de abastecimento do país. A ideia é que a própria iniciativa privada assuma esse papel e dê mais capilaridade para a rede de abastecimento
ALEXANDRE BARBOSA
Diretor comercial da Iesa
No Estado, há ainda um projeto da montadora Nissan com postos de combustíveis para oferecer, em localizações estratégicas nas rotas da Capital a Santa Maria e Pelotas, equipamentos de recarga. Todos os serviços ainda não têm previsão de cobrança para os motoristas.
— O Estado possui uma das menores malhas de abastecimento do país. A ideia é que a própria iniciativa privada assuma esse papel e dê mais capilaridade para a rede de abastecimento — comenta.
Por essa razão, Barbosa antecipa que o Iesa e-mobility, em conjunto com a Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), já utiliza a estrutura do Tecnopuc, em Porto Alegre, para avaliar e desenvolver novas opções para as necessidades e potenciais associadas ao mercado e à migração para os veículos elétricos.
Rota gaúcha
Denominada de 1ª Rota do Veículo Elétrico do RS, a estrutura já conta com três estações de recarga entre a Serra e o Litoral: em São Francisco de Paula, Caxias do Sul e Torres. Concebida por duas empresas, a Magnani e a Sicredi, a iniciativa prevê pontos em outros 15 municípios. Entre eles, estão Nova Petrópolis, Novo Hamburgo e Porto Alegre. A previsão é de que, até o final deste ano, outros cinco pontos sejam instalados nas estradas gaúchas.