Empossado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 16, André Mendonça é o novo relator da ação do Rio Grande do Sul que suspendeu o pagamento da dívida com a União. O processo é considerado crucial pelo Palácio Piratini, uma vez que o Estado está desobrigado de pagar as parcelas do débito com o governo federal desde 2017, e uma reviravolta jurídica poderia complicar a situação das finanças públicas.
O RS espera aderir ao regime de recuperação fiscal (RRF) antes que um revés aconteça na Suprema Corte. O pedido de adesão ao programa será oficializado nesta terça-feira (28).
Mendonça se tornou relator da ação porque substituiu no STF o ministro Marco Aurélio Mello, que era o responsável anterior pelo tema. Em agosto de 2017, foi antigo magistrado quem concedeu liminar em favor do Rio Grande do Sul determinando que a União ficasse impedida de cobrar as prestações da dívida ou congelar as contas do Estado.
Se tivesse de voltar a pagar o débito com a União, o Piratini precisaria tirar dos cofres estaduais R$ 285 milhões a cada mês. Conforme cálculo da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), a dívida acumulada chega a R$ 71 bilhões — valor que inclui as parcelas que deixaram de ser pagas e as que ainda seriam cobradas nos próximos anos.
Enquanto se mantém atento à liminar no STF, o Piratini tenta agilizar a adesão ao regime de recuperação fiscal (RRF).
O RRF é um alívio financeiro da União em troca de medidas de ajuste fiscal do Estado. Se conseguir ingressar no regime, o Piratini ficará um ano sem pagar a parcela da dívida. A partir do segundo ano, o Estado volta a pagar as parcelas de forma gradual. A duração do RRF é de nove anos — após este período, as parcelas se tornam novamente integrais.
Uma das vantagens do regime de recuperação fiscal é a abertura para conseguir novos empréstimos com garantia da União. Por outro lado, o Estado recebe uma série de restrições, como a proibição para realização de concursos que não seja para reposição de quadros e a criação de novos cargos e funções públicas que impliquem aumento de gastos.
O que esperar de Mendonça
Hoje, a suspensão do pagamento da dívida do Estado é mantida apenas pela liminar do STF, considerada frágil porque pode ser revista a qualquer momento. O governo Eduardo Leite espera aderir ao regime de recuperação fiscal até o final de janeiro e, assim, deixar de depender da liminar e conseguir formalmente a suspensão dos pagamentos.
— Creio que o ministro terá esta sensibilidade de acompanhar que o desfecho está se encaminhando. Como o STF está em recesso, não é matéria de urgência. Agora temos todos os itens (para ingressar no RRF). Acredito que teremos êxito — diz o secretário-chefe da Casa Civil, Artur Lemos.
— A liminar junto ao STF tenderá a perder a aplicabilidade porque nós não estaremos mais com o pagamento suspenso e, sim, com os pagamentos escalonados, começando com uma pequena parcela e crescendo até chegar no final. O próprio conteúdo da liminar do STF tinha a ver com as negociações para o Estado entrar no regime. A partir do momento em que ele entra, a liminar perde o sentido prático — avalia o secretário estadual da Fazenda, Marco Aurelio Cardoso.
De qualquer forma, Mendonça assumiu a relatoria do processo e a forma como poderá julgar a ação é uma incógnita. Ele era o advogado-geral da União no período em que o governo federal recorreu da decisão de Marco Aurélio Mello pedindo a reversão da liminar. No entanto, o ministro indicado ao STF pelo presidente Jair Bolsonaro não chegou a assinar especificamente estas petições da Advocacia-Geral da União (AGU).
Mendonça foi titular da AGU entre 1º de janeiro de 2019 e 27 de abril de 2020. Neste período, em 3 de abril de 2019, o órgão enviou um ofício defendendo a revogação da liminar.
"A liminar interposta traz prejuízos à União, uma vez que suspende os pagamentos devidos pelo Estado, e deveria ser inteiramente revogada", argumentam os advogados da União que assinaram a petição. Apesar de não subscrever o documento, Mendonça estaria a par dos movimentos internos do órgão.
No Piratini, a interpretação é de cautela. O procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa, afirma que existe "algum risco" de a liminar ser cassada, mas a avaliação é de que o ministro não tomará nenhuma decisão inesperada e imediata.
— Acredito que haja algum risco, mas não esperamos dele alguma postura repentina e de surpresa — diz.
Eventual impedimento
Juristas ouvidos por GZH comentam a possibilidade de Mendonça se declarar impedido ou suspeito para julgar a ação do Rio Grande do Sul. O foco principal da controvérsia é se Mendonça atuou de fato no processo, por ter sido o chefe da AGU, ou se pode julgar a ação normalmente por não ter envolvimento direto com o assunto.
— Entendo que, se o ministro não assinou petições, ele não está impedido. Fica a critério dele julgar-se suspeito ou não por motivo de foro íntimo, caso entenda estar comprometido com alguma tese — avalia Fábio Medina Osório, advogado-geral da União no governo de Michel Temer.
Chefe da AGU no governo de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo concorda com Medina Osório e diz que Mendonça não está impedido de julgar o processo. Para Cardozo, essa é "uma questão de foro íntimo".
— Ele pode se declarar suspeito por isso. Mas pode afirmar que não teve qualquer participação no feito. Objetivamente, a meu ver, ele não está impedido. Estaria se tivesse participado assinando alguma coisa ou emitindo alguma orientação interna — opina.
Conforme o professor de Direito Constitucional da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) André Coelho, Mendonça exercia a função de advogado da União na época e, portanto, tinha o dever de defender os interesses da administração federal. Agora a situação é diferente, porque o ministro do STF tem de julgar a ação com imparcialidade. Coelho também entende que Mendonça não está impedido:
— Já houve uma situação similar com o ministro Dias Toffoli (também ex-AGU). Foi alegado que ele já tinha atuado em inúmeros processos em que se discutia a questão. Prevaleceu o entendimento de que só (ficaria impedido) se atuou diretamente no processo.
De outro lado, o professor de Direito Penal da PUCRS Marcelo Peruchin avalia que Mendonça pode se declarar impedido:
— Pelo fato de ter relação anterior com o caso, é possível que o ministro se declare impedido de julgar. Isso dependerá da sua compreensão sobre essa situação.
Procurada pela reportagem sobre eventual impedimento de Mendonça, a assessoria do Supremo Tribunal Federal informou apenas que "as questões processuais são decididas pelos ministros nos autos".