Quando um país que possui mais da metade da população autodeclarada negra não consegue dar sequer 16% de representatividade para esse universo de pessoas nos cargos de gerência em empresas, é sinal de que alguma coisa não vai bem. Ainda que a propagação do racismo estrutural histórico existente no seio da sociedade brasileira não comece pelo mercado de trabalho, de uns tempos para cá, a iniciativa privada tem repensado modelos e gerado ações capazes de reduzir a desigualdade racial no ambiente organizacional.
Não se trata de tarefa fácil, porém necessária, dizem especialistas no assunto, ao garantirem: olhar somente da porta para dentro não é suficiente, pelo contrário, é preciso ampliar a visão e chegar aonde, muitas vezes, o próprio poder público se ausenta.
Ligada às questões de pluralidade racial, Aldren Flores é a criadora da Mais Afro, plataforma de curadorias que visa o aumento da visibilidade de pessoas negras e seus currículos profissionais. Segundo ela, muitas empresas estão “perdidas” na busca por se tornarem diversas.
— Diversidade para ontem não existe. Tem muita ansiedade, mais para parecer diversa do que para se tornar de fato. A principal dificuldade é olhar para dentro e identificar as iniciativas que devem vir antes — resume.
O primeiro passo, afirma, é mapear alternativas e evitar “correrias em todas as direções”. A partir disso, é possível pensar em processos seletivos e capacitações intencionais (direcionadas), além de outras ferramentas de inclusão, que, isoladamente, não solucionam o problema.
— O papel da iniciativa privada é fundamental, porque ela detém o poder do investimento. Por mais que o poder público faça, as empresas podem agir de forma focal para ampliar acesso à educação e ao trabalho, o que proporciona acesso a outras áreas e leva toda essa ascensão até o núcleo das famílias — destaca Aldren.
Para entender melhor o panorama no RS, o estudo do Departamento de Economia e Estatística (DEE), por ocasião da semana da consciência negra, aponta que com 21% da população do Rio Grande do Sul — cerca de 2,3 milhões de gaúchos — as pessoas negras (pretas e pardas) estão em desvantagem nos indicadores sociais.
Exemplo disso é encontrado na escolaridade. Entre os matriculados na Educação Básica, brancos representavam 84% do total dos estudantes, contra apenas 10% de pardos e 5% de pretos. No Ensino Superior, a disparidade sobe — 16,4% dos brancos o tinham completo em 2019 contra só 6,3% dos negros.
Professora da UFRGS, Maria Beatriz Rodrigues trabalha em administração, psicologia e educação, com os temas de ética e gestão da diversidade e inclusão laboral. Para a especialista, enquanto a realidade não for alterada, será preciso investir em ações afirmativas e garantir acesso ao mercado de trabalho.
Por outro lado, comenta que esse tipo de iniciativa deveria ser temporária e, quando se transforma em permanente, mostra o quanto a sociedade está disposta a mexer ou não com o racismo estrutural.
Em novembro de 2020, o assassinato do homem negro João Alberto de Freitas no estacionamento do Carrefour em Porto Alegre, pelo qual são acusados seguranças terceirizados, lançou holofotes sobre o tema. Colocou a empresa e o Estado no centro das discussões nacionais sobre a pauta.
A tragédia, que na avaliação do próprio presidente do Grupo, Noel Prioux, “ensinou que o que fazíamos até aqui não era suficiente e precisamos avançar”, teve série de desdobramentos. Dentre os mais de 50 itens de um termo de ajuste de conduta (TAC), assinado junto ao Ministério Público, a diretora de Cultura e Desenvolvimento de Talentos da rede, Cristiane Lacerda, explica que a empresa trabalha no combate à discriminação e violência, empregabilidade e incentivo ao empreendedorismo negro:
— As ações afirmativas precisam crescer e ser incorporadas ao nosso dia a dia, porque em um país tão diverso como o Brasil, é necessário ter em nossos quadros essa diversidade. Assim, vamos ampliar a visão e conhecer melhor o nosso cliente, que também é diverso.
Transformação
Na prática, somente no setor de segurança, entre dezembro 2020 e setembro de 2021, 67,17% dos contratados do Carrefour foram negros. Já são 1,1 mil agentes de prevenção. A equipe utiliza uniformes remodelados e bodycams (câmeras de corpo), com foco no cliente sempre ligadas, que passaram a fazer parte da rotina nas lojas. Todos esses profissionais, hoje, são internalizados, ou seja, contratados diretamente pela rede de supermercado.
A transformação não para por aí. Cristiane conta que, além da inclusão de uma cláusula antirracista nos contratos com terceirizados, foram criados dois programas. Um deles é a aceleradora de empreendedorismo negro. O segundo inclui fornecedores negros nas lojas da rede.
A ideia é levar produtos das comunidades e das empresas geridas por pessoas negras para as prateleiras. Após um mapeamento, cerca de 20 empresas começaram a vender produtos em um projeto piloto pensado para 15 lojas no mês de novembro.
Dentre elas, está a Makeda Cosméticos, marca de cosméticos que oferece produtos para a saúde capilar dos cabelos crespos e cacheados, com propósito de potencializar a beleza da mulher negra, com produtos veganos, feitos com óleos vegetais naturais, para todos os tipos de cabelos. Outra é a DaMinhaCor, empresa que carrega diversidade e empoderamento, especializada em produtos socialmente inteligentes para a comunidade negra, nas áreas do esporte, beleza e saúde.
— Isso faz a roda girar. Como o racismo é estrutural, é importante que as empresas ocupem esse espaço, que começa na mobilização dos colaboradores e avança para o grupo de fornecedores. Aos poucos, ganha-se relevância e mobiliza-se a sociedade para transformar a realidade — argumenta Cristiane.
Ambientes com mais potenciais
Uma pesquisa da empresa de auditoria e consultoria Ernest Young (EY) Brasil revela que organizações com alto índice de diversidade e inclusão aumentam em 6% a margem bruta e 10% a receita. Além do retorno financeiro, o estímulo profissional cresce, pois o estudo aponta que ambientes com comportamentos inclusivos possuem funcionários três vezes mais propensos a contribuírem com seu potencial para a empresa.
Mais do que números, o tratamento racial reproduz no mercado de trabalho a disparidade presente no acesso às oportunidades. O Índice de Equidade Racial Empresarial (EIRE-2021), divulgado pela Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, pontua que a participação de negros nas empresas brasileiras, que é de apenas 29,6%, cai para 15,8% nos cargos de gerência e supervisão.
De olho nos referenciais, empresas preocupadas em alterar a realidade mergulham na temática em busca de soluções. A EY Brasil está entre elas e, em agosto do ano passado, lançou a Black Professional Network (BPN) para acelerar o recrutamento, o desenvolvimento profissional e a retenção de profissionais negros e pardos, incluindo as posições de liderança.
Cristiane Hilário, sócia de auditoria da EY e líder do BPN EY Brasil, conta que em 16 meses os avanços são visíveis. Antes do projeto, 22% dos profissionais eram autodeclarados negros — 14% deles em funções gerenciais e 4% sócios.
Para elevar a participação, foi preciso entender o processo de recrutamento. Cristiane observa que eram poucos candidatos negros inscritos nas seleções. Como os currículos não chegavam, a empresa foi mais a fundo e concluiu que as faculdades tradicionais também não possuem estudantes negros. Neste momento, realizou parcerias com outras universidades, menos tradicionais.
— Antes que alguém pense que isso significa “baixar a régua” ou o nível de exigência, é preciso dizer que, pelo contrário, optamos por dar mais oportunidade para profissionais capacitados e qualificados que não chegavam até nós — comenta.
Em seguida, a EY constatou que os poucos candidatos negros não passavam pela seleção. Os motivos: questões relacionadas a habilidades de comportamentos e idiomas. A descoberta foi o embrião para um programa de capacitação para esses estudantes.
Se todos continuarem com a mesma mentalidade, nós sempre vamos contratar o mesmo perfil de profissionais, ou seja, aqueles que tiveram oportunidades que os profissionais negros não tiveram
CRISTIANE HILÁRIO
Sócia de auditoria da EY e líder do BPN EY Brasil
Foram 80 vagas em treinamentos, com idiomas, comunicação e softwares. Após cinco meses de formação, 30% dos participantes saíram contratados. Os demais encontraram colocação em empresas que atuam em mercados similares.
— Mapeamos universidades, capacitamos e conscientizamos, porque precisávamos que os gestores e avaliadores tivessem empatia na hora de realizar a dinâmica. Se todos continuarem com a mesma mentalidade, nós sempre vamos contratar o mesmo perfil de profissionais, ou seja, aqueles que tiveram oportunidades que os profissionais negros não tiveram — resume Cristiane.
Com isso, em pouco mais de um ano, os profissionais negros já somam 28%, gerentes, 16%, e nos associados a taxa é de 6%. A meta é repetir e dobrar a dose nos próximos anos. Para isso, também são desenvolvidas iniciativas para garantir um ambiente interno inclusivo, amistoso e receptivo para que os profissionais fiquem, se desenvolvam e cresçam.
Discussão interna e impacto na sociedade
Em setembro, a decisão de realizar um programa de trainee exclusivo para candidatos negros colocou a Magazine Luiza no centro de um debate sobre “racismo reverso”. O assunto ganhou as redes sociais com muita desinformação, conforme explica a gerente de gestão de pessoas da Magalu, Fernanda Chapot:
— Por ser uma proposta inédita, de uma empresa grande, com visibilidade, conseguimos fazer com que a sociedade brasileira se obrigasse, naquele momento, a discutir o racismo estrutural.
Geramos mais de 4 mil reportagens, em mídia nacional e estrangeira, sobre um assunto que não havia ganhado a repercussão que sempre mereceu.
Fernanda explica que a bandeira da diversidade racial sempre existiu, mas a preocupação não nasceu com o lançamento do programa de trainee. No final de 2019, uma ampla pesquisa sobre diversidade constatou que 53% do quadro era autodeclarado negro, mas só 16% ocupava cargos de liderança.
— Ou seja, somos um espelho da demografia brasileira. Para uma empresa que prega o valor estratégico da diversidade para o negócio, seria inconcebível ignorar o problema. E, para nós, ficou claro que ali havia um — pontua.
Fernanda diz que o primeiro ponto é entender que as ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, com a intenção de eliminar desigualdades e garantir oportunidades. Gislaine Cruz foi uma dos 19 trainees selecionados para a primeira edição do programa. Ela concluiu a formação na semana passada e considera que o impacto desse tipo de movimento acontecerá no longo prazo, porque permite que diversos profissionais sejam reconhecidos, ganhem notoriedade e ocupem os espaços.
Essa iniciativa inspira e coloca na pauta a discussão sobre uma situação que nós, negros, vivemos há anos que é a falta de representatividade
GISLAINE CRUZ
Trainee na Magalu
— Também abre caminho para outros profissionais negros. Essa iniciativa inspira e coloca na pauta a discussão sobre uma situação que nós, negros, vivemos há anos que é a falta de representatividade — declara Gislaine.
Atualmente, na Magalu, 51,8% dos funcionários se consideram pretos ou pardos, e, desses, 41,5% ocupam cargos de gerência. Quando consideradas apenas as funções de liderança corporativa, ou seja, lideranças só nos escritórios da companhia, a parcela de negros fica em 21%.
Para abrir 10 mil posições de lideranças negras
Para combater o racismo, 44 grandes empresas fundaram, em junho deste ano, o Mover (Movimento pela Equidade Racial). A ação inédita busca, com investimentos de R$ 15 milhões, gerar 10 mil novas posições de liderança para pessoas negras e oportunidades para 3 milhões de pessoas nos próximos anos.
Juntas, as companhias empregam 1,2 milhão de pessoas. Carrefour, Ambev, Coca-Cola, McDonald’s, Renner e Gerdau são algumas das signatárias do documento que firma uma série de compromissos públicos pensados para reduzir a desigualdade racial no país.
Na Gerdau, os negros em posição de liderança representam 26% dos funcionários, o que equivale a mais de 600 pessoas. A partir de 2022, as metas serão desdobradas para ampliar a presença em até 30%, em 2023.
Caroline Carpenedo, diretora global de pessoas e responsabilidade social, comenta que educação é um “papel de todos” e, hoje, a empresa atua em vários pilares de diversidade.
— Atuamos em vários pilares, porque é papel das empresas saber como incluir. Até porque, um dos nossos princípios é aprender, desaprender e reaprender. Ou seja, precisamos estar sempre provocando o protagonismo de cada um — comenta.
Não é por acaso, que, em junho do ano passado, a indústria gaúcha também assinou o manifesto Seja Antirracista, que propõe práticas para o dia a dia das organizações. Em 2021, além do Mover, passou a integrar o Pacto de Promoção da Equidade Racial.
Com isso, assumiu compromissos como o de publicar o número de pessoas negras em cargos executivos no Relatório Anual da empresa, traçar meta de quantos profissionais negros a empresa se compromete a contratar anualmente e criar treinamentos voltados à educação racial para os colaboradores.
O vocabulário da inclusão
- Ação afirmativa: são iniciativas especiais e temporárias com o objetivo de corrigir as desigualdades raciais
- Seleção intencional: emprega meios capazes de promover o ingresso de determinado público em igualdade de condições
- Racismo reverso: termo usado de maneira equivocada para descrever preconceito perpetrado por minorias raciais contra indivíduos pertencentes à maioria racial
O que se espera das práticas antirracistas e promoção da igualdade
- Que não sejam apenas para trabalhar a imagem da empresa
- Desenvolvam políticas de oportunidades em igualdade de condições
- Permitam a progressão de carreiras iguais
- Criem canais de denúncia para que a empresa tenha espaço permanente de revisão das práticas
- Promovam debates profundos sobre mudanças necessárias
- Gerem inclusão, acolhimento e valorização efetiva, fora dos holofotes do marketing