A lei do superendividamento, que entrou em vigor no mês passado, busca combater o empilhamento de contas e a impossibilidade de pagar todas. Essa é a realidade de cerca de 30 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
A atualização no Código do Consumidor cria regras tanto no aspecto da prevenção quanto no do socorro a pessoas sem alternativa para honrar seus débitos e garantir o mínimo de dinheiro para necessidades básicas. A possibilidade de renegociar todas as dívidas ao mesmo tempo com a ajuda da Justiça é uma das principais novidades da lei.
Relatora-geral da comissão de juristas que elaborou o projeto de lei e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS, Claudia Lima Marques explica que o conjunto de normas introduz dois capítulos no Código de Defesa do Consumidor. Um na linha de concessão de crédito, para um sistema mais responsável e claro ao consumidor, e outro na repactuação da dívida. A diretora destaca a possibilidade de renegociar as dívidas em bloco e a criação de gatilhos para impulsionar a educação financeira entre os principais avanços da lei:
— Essas pessoas vão fazer esse plano de pagamento. Vão passar por esse momento na frente de todos os seus credores, explicando o que aconteceu e, com isso, vão poder liberar o seu nome, repactuar esse pagamento, mostrar que são bons consumidores, preservar o seu mínimo existencial. Isso tudo é uma reeducação do consumidor e do mercado.
Claudia também ressalta a importância do chamado “mínimo existencial”, que é uma quantia mínima da renda do endividado que não poderá ser usada para pagar as dívidas:
— Ele fica com a sua dignidade preservada, com seu mínimo existencial preservado, mas também fica um consumidor ativo, o que vai ser muito bom para o Brasil também. A Ordem dos Economistas do Brasil e o Instituto do Capitalismo Humanista de São Paulo calcularam que essa lei vai trazer de volta para a economia brasileira R$ 350 bilhões.
O artigo que limitava o valor do crédito consignado a um percentual do salário do cliente e previa a possibilidade de desistir da contratação em determinado prazo ficou de fora da lei. Claudia afirma que esse dispositivo vetado pela Presidência da República é importante na prevenção do superendividamento, pois garantiria mais proteção ao consumidor em relação ao crédito consignado. A diretora espera a reversão do veto no Congresso.
A economista e coordenadora do programa de serviços financeiros do Idec, Ione Amorim, avalia que a lei é a reforma mais relevante no Código de Defesa do Consumidor, que completa 31 anos neste ano. No entanto, a economista salienta que é importante regulamentar esses novos processos para criar um sistema forte e que garanta a efetividade das novas normas:
— Como o próprio CDC (Código de Defesa do Consumidor) é uma lei principiológica, continua realmente atual. A lei de superendividamento se integra a esse modelo e a regulamentação vai garantir a operacionalização da lei propriamente dita.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou, por meio de nota, que a prevenção e o combate ao superendividamento é um tema prioritário para o setor, que adotou iniciativas para prevenir e combater esse problema nos últimos anos: “O projeto aprovado reforça a importância da conciliação e da atuação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor na prevenção ao superendividamento e no resgate da capacidade econômica do consumidor”.
Alguns dos principais pontos da nova lei
Renegociação judicial
O consumidor superendividado terá acesso a uma espécie de recuperação judicial, ferramenta utilizada por empresas com problemas financeiros e que tentam evitar a falência. Nesse modelo, o juiz poderá iniciar um processo de repactuação das dívidas com a presença de todos os credores. A novidade é que todas as dívidas do cliente são reunidas e negociadas de uma vez só.
Plano compulsório
Caso não ocorra conciliação, o juiz, a pedido do consumidor, poderá instaurar um plano judicial compulsório, que assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço.
Conciliação
Antes de ir à Justiça para negociar acordo com os credores, os consumidores poderão tentar conciliação com os órgãos de defesa do consumidor. Esse tipo de atendimento é considerado facultativo. Nesse tipo de acordo, o "mínimo existencial" também deve ser garantido.
“Mínimo existencial”.
A lei estipula o conceito de “mínimo existencial”, que se trata de uma quantia mínima da renda do endividado que não poderá ser usada para pagar as dívidas. Essa reserva busca impedir que a pessoa tenha de contrair novas dívidas para pagar despesas como água e luz ou débitos antigos. Um regulamento da lei deverá definir qual será o valor dessa quantia mínima.
Proteção contra assédio na oferta de crédito
A lei cria mecanismos para proibir o assédio ou a pressão ao consumidor para contratar crédito ou comprar produto ou serviço, principalmente no âmbito de grupos mais vulneráveis, como idosos, analfabetos e doentes.
O descumprimento dessa obrigação poderá acarretar judicialmente na redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo sobre os valores e prazos previstos no contrato original.
Também fica proibido indicar que a operação de crédito poderá ocorrer sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor. Isso costuma ocorrer em ofertas de crédito para pessoas “negativadas”.
As instituições de concessão de crédito também não poderão condicionar o início de negociações sobre dívidas à desistência de ações na Justiça, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais.
Transparência na concessão de crédito
O fornecedor de crédito terá de informar ao consumidor previamente e de forma clara qual é o custo total, a taxa mensal efetiva de juros e os encargos por atraso, o total de prestações e o direito do consumidor de antecipar o pagamento da dívida ou parcelamento sem novos encargos. Na prática, a medida obriga credores a deixar mais claro o que está sendo contratado pelo cliente e todos os encargos que fazem parte da operação.
Nas ofertas de empréstimo ou de venda a prazo, deverão ser informadas ainda a soma total a pagar, com e sem financiamento.
A redução de juros e o aumento do prazo de pagamento estão entre as sanções previstas pelo descumprimento dessa regra.
Educação financeira
A lei coloca nos princípios da política nacional das relações de consumo o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores. A lei prevê a “garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento”. Especialistas avaliam que a nova legislação cria mecanismos para reeducar financeiramente as famílias.