Criado para coibir excessos, o teto de gastos da administração pública federal chega a uma encruzilhada no Brasil da pandemia. Amplificado pela crise sanitária e contaminado pelas eleições, o dilema entre rever ou manter o limite de despesas vai além da dicotomia simplista que opõe gastança irresponsável e austeridade cega. Longe do consenso, a solução passa por um debate postergado há anos: o modo como se distribui e se aplica o dinheiro dos impostos no país.
Carimbado na Constituição, o teto foi aprovado em 2016 com o objetivo de conter o endividamento, que avança sem trégua (veja o gráfico). Por restringir o crescimento dos gastos à variação da inflação (leia os detalhes abaixo), o mecanismo sempre foi alvo de divergências, em especial entre analistas com visões distintas do papel do Estado. Com o coronavírus, a discussão ganhou novo capítulo.
Desde a aprovação do decreto de calamidade, em março, e do orçamento de guerra, em maio, a União foi autorizada a elevar desembolsos e a descumprir metas fiscais até o fim de 2020. A dúvida, agora, é o que vem depois.
Setores do governo — que tem até o dia 31 para propor o orçamento de 2021 — passaram a cogitar a hipótese de furar o teto e tornar perenes medidas transitórias. O próprio presidente Jair Bolsonaro, cuja popularidade cresceu com o auxílio emergencial, deu declarações dúbias, levando o ministro da Economia, Paulo Guedes, a reagir.
— Os conselheiros do presidente que estão o aconselhando a pular a cerca e furar teto vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment — advertiu Guedes, em entrevista coletiva em 11 de agosto.
Em resposta, Bolsonaro reafirmou fidelidade à norma, mas pediu alternativas para poder gastar mais — e tornar possível, por exemplo, o programa Renda Brasil, que deverá substituir o Bolsa Família e dar seguimento ao auxílio pandêmico, ainda que em valores reduzidos. A ameaça ao teto levou um grupo de 80 economistas a lançar manifesto em defesa do limitador, temendo a volta da inflação e dos juros altos.
— Vivemos um impasse. Visivelmente, o auxílio emergencial aumentou a base eleitoral do presidente, principalmente nas regiões de renda mais baixa, como o Nordeste, que eram tradicionais redutos do PT. O problema é que desprezar o teto é pisar em terreno pantanoso, com sérios riscos de instabilidade macroeconômica — alerta Aod Cunha, um dos signatários do documento, ex-secretário da Fazenda no Rio Grande do Sul.
A posição não é unânime. Há quem veja no mecanismo uma ferramenta mal desenhada, excessivamente rígida e, por isso, infactível.
— É claro que ninguém quer o descontrole. O que incomoda é esse tudo ou nada. Sou a favor de um teto, mas não desse teto, porque foi feito para ser descumprido. O governo vai abrindo exceções e gerando efeito randômico, que emite sinais contraditórios ao mercado e abre margem a pressões. Isso é péssimo — diz Pedro Dutra Fonseca, professor de Economia Brasileira da UFRGS.
Coordenador do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da Fundação Getulio Vargas, Nelson Marconi reforça o coro:
— Não pode ser “o teto ou a morte”, mas também não dá para pensar que o paraíso é o limite, que basta emitir moeda e tudo bem. Ao meu ver, é necessário reformular o teto. Além disso, é preciso tomar outras medidas, como rever despesas com juros, fazer uma reforma tributária completa, cortar subsídios e levar adiante uma reforma administrativa sem demonizar os servidores. Não precisamos, necessariamente, fazer dívida para investir mais.
A tese de que o investimento público é vital para superar a crise não é unânime entre os economistas, mas não restam dúvidas — mesmo entre os defensores do limitador — de que o instrumento tem falhas. O principal defeito é evidente: o orçamento deixou de ter crescimento real, ao passo que as despesas obrigatórias continuaram subindo (é o caso dos salários do funcionalismo), fazendo com que sobre cada vez menos dinheiro para os demais compromissos.
— É evidente que, sozinho, o teto não se sustenta, mas não é o momento de flexibilizar para gastar mais. Já vimos esse filme. O que precisamos é de reformas — reforça Aod.
Para a economista Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman Brasil, é imprescindível olhar para a qualidade do gasto. Na avaliação dela, o teto, com todas as suas controvérsias, tem a função de “impor o conflito distributivo”, ou seja, obrigar o gestor público a escolher onde alocar os recursos de forma mais racional.
Ex-secretária da Fazenda de Goiás, a consultora cita o caso do Reino Unido como exemplo a ser seguido. No período pós-crise de 2008, o país implementou medidas de ajuste fiscal para escapar da insolvência. As ações incluíram cortes de despesas ao longo de cinco anos. Para isso, foi criado um comitê com a missão de repassar, linha por linha, todos os gastos e seus efeitos, priorizando aqueles que de fato faziam a diferença.
— O governo brasileiro poderia seguir o exemplo britânico e propor um orçamento assim, mas essa discussão nunca é feita aqui porque a solução sempre é gastar mais, quando o que temos é desperdício e má distribuição de recursos. Acabar com o teto é tirar o bode da sala — opina Ana Carla.
O que é o teto de gastos
- É um mecanismo aprovado em 2016, no governo de Michel Temer, para controlar as despesas da administração pública federal (não vale para Estados e municípios)
- A regra foi inserida na Constituição e estabelece que os gastos federais não podem superar o orçamento do ano anterior corrigido pela inflação (variação do IPCA dos 12 meses do período encerrado em junho do ano anterior)
- Vale por 20 anos, ou seja, até 2036, para Executivo, Legislativo, Judiciário e demais órgãos
O que não entra na conta
- Não são contabilizados itens como créditos extraordinários para calamidade pública (como no caso da pandemia), repasses para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), juros da dívida, transferências obrigatórias para Estados e municípios, recursos injetados em empresas estatais e gastos eleitorais
- Em 2020, o valor do teto é R$ 1,454 trilhão
Projeção até o fim do ano
- Conforme o 3º Relatório Bimestral de Avaliação de Receitas e Despesas, divulgado no fim de julho, o valor projetado é de R$ 1,452 trilhão em 2020, o que significa “folga” de R$ 2,8 bilhões em relação ao teto
- Na prática, contudo, os gastos federais vão superar o limite, só que isso não entra na conta do teto
- As despesas extras relacionadas à pandemia, por exemplo, devem chegar a R$ 500 bilhões
O que acontece se for descumprido
- Se o teto for descumprido, passa a valer uma série de impedimentos. Por exemplo: poderes ou órgãos são proibidos, no exercício seguinte, de reajustar salários, contratar pessoas, fazer concursos públicos (com algumas exceções) e criar despesas até que os gastos voltem ao limite
- O Poder Executivo também fica impedido de criar ou expandir programas e linhas de financiamento e de conceder ou ampliar incentivos fiscais
O que dizem defensores
- Defensores do teto de gastos argumentam que o mecanismo é essencial para garantir o equilíbrio das contas, manter os juros baixos, assegurar o controle da inflação e melhorar a qualidade do gasto
- Para eles, é uma forma de conter o crescimento da dívida pública e elevar a confiança de investidores privados, mas, para funcionar bem, precisa ser acompanhado de reformas
O que dizem os críticos
- Os críticos sustentam que o teto é rígido demais, impede o crescimento dos investimentos públicos e restringe recursos para programas sociais e áreas essenciais como saúde, educação e segurança, já que despesas obrigatórias seguem crescendo (como os salários)
- Para eles, o piso deveria ser revogado ou revisto para haver menos restrições aos investimentos, considerados essenciais para combater a crise
Por que a polêmica cresceu
- Desde que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro aumentou, há setores no governo favoráveis a que medidas temporárias, como o auxílio emergencial, se tornem permanentes, o que elevará os gastos públicos
- Também há um debate interno a respeito da manutenção do teto de gastos e da possibilidade de brechas, já que uma ala defende a necessidade de ampliar investimentos para sair da crise
- O ministro da Economia, Paulo Guedes, ameaçou deixar o governo e chegou a dizer que, se o presidente descumprir o limite de gastos, poderá ser alvo de impeachment. Isso levou Bolsonaro a reafirmar fidelidade ao teto, mas as dúvidas persistem
- O governo tem até o próximo dia 31 para enviar a proposta de orçamento de 2021 para o Congresso, o que esquentou o debate sobre os rumos das contas públicas
Dívida alta é um problema?
Depende. A maioria dos países ampliou o endividamento na última década, marcada por baixas taxas de juros. Nos Estados Unidos, por exemplo, a dívida ultrapassou 100% do PIB, mas o país tem moeda forte, goza da confiança de investidores e não tem risco de solvência.
A situação é diferente em economias emergentes, como a brasileira, consideradas menos robustas e estáveis. Nesses casos, o endividamento crescente, aliado ao descontrole fiscal, pode levar a uma crise de confiança (pela ameaça de calote), tornando a rolagem da dívida mais difícil. O resultado é elevação das taxas de juros e inflação. Até o fim de 2020, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil deve ser o segundo mais endividado entre 36 países emergentes, perdendo apenas para a Angola, onde a dívida tende a bater 132% do PIB.