Valorizar a cultura e as preferências da comunidade negra, às vezes vistas à distância pelas grandes marcas, é um caminho que muitos afroempreendedores têm trilhado para erguer negócios bem-sucedidos. A lógica é que ninguém entende melhor o negro do que o próprio negro e ninguém conhece melhor suas necessidades.
E esse é um mercado gigantesco: segundo a consultoria Etnus, referência no país no estudo de perfil dos consumidores afrodescendentes, a comunidade negra movimentou cerca de R$ 1,6 trilhão em 2017 – o equivalente a 24% do Produto Interno Bruto (PIB) naquele ano.
Foi essa imersão natural que levou Maurício Delfino, 44 anos, a criar o negócio da sua vida. Ele passou a infância em uma periferia de Carapicuiba, na região metropolitana de São Paulo. Cresceu em uma casa onde viviam mãe, irmã, avó, tias e primas. Depois do almoço, conta, a cozinha virava um salão de beleza. Familiares improvisavam com a labareda do fogão o ferro para alisar o cabelo e faziam artesanalmente cremes para pele e cabelo.
– Ali já ficava claro como era difícil encontrarmos produtos feitos para nós – diz Delfino.
Anos depois, formou-se em Administração e trabalhou em grandes empresas e uma produtora musical. Teve a oportunidade de viajar por todo país. Constatou que as queixas sobre falta de vestuário ou cosméticos adequados aos negros eram comuns. E entendeu o porquê: como desconheciam o mercado afro, executivos brancos trabalhavam em projetos irreais para vender na periferia.
– Meus colegas falavam em vender secadores de roupa de R$ 5 mil, R$ 7 mil. Puxa, minha mãe criou um secador com R$ 2: um varal preso a duas paredes – brinca. – Eram mundos totalmente diferentes.
Em 2017, decidiu ele mesmo ocupar a lacuna. Acertou sua demissão e, em uma viagem aos Estados Unidos, fez uma relação de todos produtos que amigos e parentes costumavam encomendar do Exterior. Chegou a 40 itens, todos inexistentes no Brasil. Mirou em um para começar a vender no Brasil: toucas de natação para pessoas com cabelos volumosos.
– Fiz contato com fabricantes da China e recebi protótipos para ver se se adequavam ao negro brasileiro, que, por ser filho da miscigenação, tem cabelos crespos e abundantes – conta.
Por seis meses, analisou toucas de silicone e adequou elasticidade e tamanho. Chegou a um modelo que julgou ideal e passou a vendê-lo pela internet e pequenas lojas em vários Estados. Criou, então, a grife DaMinhaCor. Além das toucas, a linha ganhou maiôs de cores variadas (Maurício explica que muitos negros não usam cor preta em razão da religiosidade, o que diz ser ignorado por algumas das grandes redes do varejo) e cosméticos com cinco tonalidades para pele negra. Em 2019, primeiro ano completo de operação, as vendas passaram de R$ 1 milhão. Porto Alegre é a quinta cidade que mais compra seus produtos.
– A essência do negócio é mostrar que nós, negros, merecemos produtos que respeitem nossas características – resume Delfino.
Esse tipo de negócio, que tem o cliente preto como protagonista, se estende também a produtos premium. Em Porto Alegre, uma cervejaria artesanal fundada e administrada por negros tem trabalhado para popularizar o produto na comunidade.
O afroempreendedor precisa ter uma ‘musculatura emocional’ enorme para seguir adiante.
ADRIANA BARBOSA
CEO da Pretahub
– Geralmente, as feiras de cervejas artesanais têm temática de rock e heavy metal. Via de regra, não são ambientes que atraiam o negro, o que o afasta de boas marcas – explica o designer gráfico Diego Dias, 33, fundador da cervejaria Implicantes.
A opinião é baseada em experiências próprias. Desde 2015, ele e o irmão, Daniel, rodam o Brasil em feiras para servir a própria cerveja. Ao longo do tempo, perceberam que não apenas a identidade dos eventos era pouco convidativa, como os vendedores das bebidas não conseguiam chamar a atenção dos negros.
– Quando buscavam o cliente negro, as cervejarias usavam uma comunicação pejorativa ou caricata – conta Diego. – Colocavam um cartaz de jogador de basquete que ninguém conhecia e nomeavam o produto com termos ofensivos como “Preto Véio”. O cliente passava reto.
Em 2018, a Implicantes saiu do fundo da garagem e foi para uma fábrica na zona Norte de Porto Alegre. Primos e amigos – todos negros – foram chamados para transformar o hobby em negócio e dar uma identidade afro aos produtos.
As bebidas em lata ganharam estampas de ícones da história afrobrasileira, como o jogador de futebol Leônidas da Silva (1913-2004), o Diamante Negro, e a escritora Maria Firmina dos Reis (1822-1917), apontada como a primeira mulher a publicar um romance no país. A Implicantes – o nome é uma ironia ao mercado convencional – passou a organizar feiras com temática de samba e hip-hop e começou a ser chamada para aniversários, formaturas e casamentos. A grande maioria dos clientes são negros, mas também há compradores brancos.
– O curioso é que mesmo com a nossa estrutura profissional, quando atendemos aos clientes brancos, volta e meia nos perguntam se temos cuidados ao fazer a cerveja, se temos algum curso. Há uma desconfiança quando o negro entra em um mundo de predominância branca – lamenta Diego.
Dificuldades extras, serviços específicos
É um tipo de preconceito que pode inibir o empreendedor negro. O racismo é um golpe na confiança dos pretos, reclama Nina Silva, do movimento Black Money, que muitas vezes não se sentem capazes de criar e gerir um negócio formal.
– Se o mundo de negócios já é repleto de desafios, para os negros é pior. Quando olhamos os executivos de grandes empresas, são, na imensa maioria, brancos. As companhias que mais inovam são gerenciadas por brancos. O cara que faz o investimento ou libera crédito é branco. Isso, junto com a história de marginalização do negro, reforça um mindset de que a empresa não vai prosperar – diz Nina.
Uma pesquisa realizada pela PretaHub em 2019 com 1.220 pessoas em todo país verificou que um em cada três empresários negros já tiveram o crédito negado sem explicações, segundo respostas deles próprios, e a grande maioria tem apenas o próprio capital ou de seus familiares para erguer o negócio.
– O afroempreendedor precisa ter uma “musculatura emocional” enorme para seguir adiante. Como resposta ao racismo, muitos aproveitam suas iniciativas empreendedoras para manifestar orgulho com a cultura – explica Adriana Barbosa, da PretaHub.
É uma estratégia colocada em prática por Kenia Aquino Garcia, 34 anos. Formada em Comércio Exterior e comissária de bordo, ela criou na Capital o salão Mixtura das Divas para oferecer a negras serviços que não encontrava com facilidade. Em particular, cuidados com cabelos crespos.
– A primeira coisa que eu ouvia quando chegava a um salão era que precisavam alisar meu cabelo, cortar bem curtinho ou fazer tranças. Ninguém conseguia cortar e tratar o cabelo encaracolado – afirma.
Quando decidiu abrir o salão, em meados do ano passado, chamou cabeleireiras especializadas em cortes afro e buscou fornecedores de cremes, maquiagem e acessórios focados em pretas e pardas. As campanhas de comunicação nas redes sociais mostram personagens negras, e frequentemente o salão abre para workshops e palestras sobre estética afro.
– Somos um salão para todas consumidoras. Mas aproveitamos nosso conhecimento para reforçar o valor da identidade afro – diz a empresária.
Empreendimento por necessidade
- 44,5% dos afrodescendentes empreendem por necessidade, e não por gosto. Entre os brancos, o número é de 28%.
- R$ 1,6 trilhão é o que a comunidade negra movimentou no Brasil em um ano (2017). O valor equivale a 24% do PIB do país.
- R$ 359 bilhões foi a quantia movimentada apenas por empreendedores negros no país no mesmo ano. Há 14 milhões de empreendedores negros no Brasil, embora 80% não tenham CNPJ (entre os brancos, o índice é de 60%).
Fontes: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Consultoria Etnus e Instituto Locomotiva.