Em 1888, logo após a abolição da escravidão, as ruas das grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Salvador, passaram a ser tomadas por mulheres negras que carregavam pesadas cestas sobre as cabeças e vendiam quitutes nas casas de família e no comércio.
Libertadas, mas sem emprego, elas se viravam como podiam para garantir os seu Mil Réis. Com o que ganhavam, sustentavam a si, os filhos e os maridos, estes também desempregados – as vagas nas fábricas, nos portos e nos armazéns eram ocupadas por imigrantes portugueses e italianos.
– O empreendedorismo negro no Brasil começou como forma de contornar adversidades – diz Maria Cristina Santos, presidente da Associação Gaúcha de Afroempreendedores (Reafro), remontando ao final do século 19.
Hoje, 132 anos depois, o número de empresários pretos ou pardos alcança 14 milhões, conforme estudo da aceleradora de negócios PretaHub, mas a realidade árdua permanece.
A necessidade de gerar renda ainda é fator importante para o negro empreender – pesquisa do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) mostra que 44,5% dos afrodescendentes criam negócios para suprir a falta de emprego, e não por gosto, ante 28% dos brancos. A maioria dos empresários pretos ou pardos (54%) tem renda familiar de até dois salários mínimos, diante de 37,5% dos brancos.
– É um empreendedorismo de sobrevivência – define Nina Silva, eleita em 2018 uma das cem afrodescendentes com menos de 40 anos mais influentes do mundo pela Mipad (Most Influential People of African Descent), iniciativa ligada às Nações Unidas.
Nina é fundadora do Movimento Black Money, que defende que consumidores negros prefiram produtos e serviços vendidos por negros para estimular o emprego e a renda entre pretos e pardos. Ela afirma que as barreiras socioeconômicas e raciais que tendem a empurrar os negros para negócios mais simples, de pouca tecnologia e sem capital para fazer crescer.
Isso interfere diretamente no perfil desses empreendedores. Com menor poder de investimento – a renda média do negro no Brasil equivale à 59% do branco, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) relativos ao ano de 2018 –, é comum que negros toquem o negócio sozinho – apenas 13,2% geram pelo menos um emprego, ante 21,7% dos brancos. Com pouca margem para erro, administram negócios conservadores, como alimentação, beleza e serviços domésticos.
– A grande maioria são negócios que nascem pequenos e têm dificuldade para crescer, até porque há dificuldade em conseguir capital para investir – observa Maria Cristina.
Juntos para ganhar força
A presidente da Reafro, com 300 associados, conta que o empreendedorismo negro tem buscado força para romper com estas amarras. Com o aumento de renda da população das periferias, em razão do avanço de programas sociais neste século 21, e a chegada ao mercado dos primeiros beneficiários dos sistemas de cotas nas universidades, um novo tipo de afroempreendedor ascende.
– O negro que está começando a empreender trabalha mais em redes de cooperação e aproveita a força da cultura afro para dar identidade ao seu negócio – complementa Adriana Barbosa, CEO da PretaHub.
É a fórmula que segue a nutricionista Kyzzy Barcelos Barbosa Rodrigues, que gere um negócio de alimentos integrais. Seu ponto de partida foi uma pesquisa acadêmica da qual participou entre 2015 e 2017 para estudar os hábitos alimentares em comunidades quilombolas de Pelotas.
A nutricionista decidiu levar aos porto-alegrenses uma prova dessa realidade e fez uma releitura das receitas, criando brownies funcionais de inhame em vez de farinha de trigo e aperitivos à base de quiabo e cuscuz de milho. O negócio, batizado Kynutryzzy, tem vigorado: vende mais de 50 porções por semana e a empresária precisou chamar a família para dar conta dos pedidos.
– O público é variado, mas vejo como as pessoas negras se emocionam ao provar um alimento com o sabor da África – sorri a empreendedora, que tem 36 anos.
Um dos fatores que fazem o empreendimento avançar é a rede de apoio na qual Kyzzy está inserida. A nutricionista trabalha junto a um coletivo no bairro Cidade Baixa, o Casa de Joana. Lá, empresários pretos e pardos reforçam seu conhecimento de gestão e organização financeira assistindo a palestras gratuitas e dividem os custos com aluguel, limpeza e marketing, por exemplo. Como os participantes costumam atrair consumidores que apreciam a cultura negra, há um valioso compartilhamento de clientes.
– A proposta do coletivo é o fortalecimento de todos. Quando os empreendedores são agrupados e compartilham custos e ganhos, multiplicam as chances de prosperar – afirma Deivison Campos, porta-voz do Casa de Joana.