O porteiro Jairo Delgado, 46 anos, ainda recorda o dia em que saiu aos pulos pela porta da agência da Caixa na Rua José do Patrocínio, em Porto Alegre. Era uma segunda-feira, 4 de janeiro de 2010, e ele recém tivera o financiamento habitacional aprovado pelo banco para a compra de um apartamento de 47 metros quadrados no bairro São João. Impulsionado pelo subsídio do programa Minha Casa Minha Vida, abandonaria o aluguel.
Jairo nem havia ido pessoalmente ao imóvel. Tinha folgas apenas aos sábados, sendo impossível conciliar sua agenda à do corretor. Registradas pela filha Suellen, 28, as imagens dos cômodos bastaram para lhe convencer a ir adiante no negócio. Pagou uma entrada de R$ 32,5 mil, financiou a outra metade e, uma semana depois, mudou-se para a sonhada casa própria.
Embalado pelo bom momento da economia naquele ano, Jairo era um retrato da camada intermediária da pirâmide social que, em escalada no país, recebia a alcunha de nova classe C. Estimulados pelo pacote que reunia crédito abundante, juros reduzidos e programas sociais fartos, mais de 49 milhões de brasileiros ascenderam economicamente entre 2003 e 2014, acessando pela primeira vez bens e serviços como imóveis, carros e passagens aéreas.
Publicada em 2010, reportagem de Zero Hora contou a história de pessoas que, assim como Jairo, haviam transformado antigas aspirações em realidade, impulsionadas pelo fenômeno. Dez anos depois, diante de um cenário financeiro adverso, GaúchaZH reencontrou esses personagens para entender como a crise econômica que empobreceu o país impactou suas vidas.
De lá para cá, a maioria deles migrou da euforia para o pessimismo.
– Era bom. Tudo eu comprava à vista. Tinha um súper aqui perto, era rancho com dois carrinhos até a boca. Vinha um funcionário ajudar e eu ainda dava gorjeta para o cara. Fazia churrasco todo o sábado – comenta Jairo. – Agora, tive de mudar a alimentação. A última vez que comi carne? Nem me lembro. Cerveja só de vez em quando, refrigerante quando dá. Vou de suco de saquinho. Hoje, quatro sacolinhas no súper dá cem pila, né? Está tudo muito caro.
A nova classe C viveu seu auge em 2014, com 116 milhões de brasileiros nos andares do meio da sociedade, dinâmica intimamente ligada à carteira de trabalho assinada – entre 2003 e 2014, a taxa de desemprego caiu de 12,3% para 4,7%, mesmo diante da desaceleração da economia que se transformaria em recessão.
Em 2015, contudo, a curva descendente da desigualdade envergou para cima. A renda média da população recuou 7% em apenas um ano, a crise lançou 2,8 milhões de pessoas na fila do desemprego e a inflação subiu 10,67%, corroendo o poder de compra de parte dos brasileiros. Para os inquilinos da nova classe C, restou empreender um duro ajuste fiscal doméstico que ainda está em andamento.
Revisão obrigatória de hábitos
Reconhecido como o pesquisador que introduziu o termo no país, Marcelo Neri calcula que 9 milhões de pessoas foram incorporadas às classes D e E entre 2014 e 2018. Embora parte da população tenha descido degraus sociais, os patamares não retornaram aos do início dos anos 2000, quando 96,7 milhões de brasileiros estavam na base da pirâmide.
– Pensávamos que havíamos ido ao céu. Na realidade, estávamos no inferno e apenas chegamos à Terra – diz o diretor da FGV Social, departamento da Fundação Getulio Vargas. – Mas não foi uma tragédia, como poderíamos imaginar, dada a gravidade da crise. Nem todos os ganhos foram devolvidos, porque houve certa resiliência dessa classe.
Na vida de Jairo, o primeiro golpe veio em 2017, acompanhado da reforma trabalhista aprovada pelo governo Michel Temer. As mudanças na lei limitaram a jornada semanal em 48 horas, restringindo o porteiro a quatro dias de serviço em turnos de 12 horas. Antes contratado para escalas de domingo a sexta-feira, teve seu salário reduzido a quase metade.
Pensávamos que havíamos ido ao céu. Na realidade, estávamos no inferno e apenas chegamos à Terra.
MARCELO NERI
Diretor da FGV Social
Jairo revisou hábitos e eliminou despesas. Endividado, substituiu a carne vermelha por frango, diminuiu o uso do forno elétrico e da secadora de roupas e adiou o plano de usar um smartphone. Morando no mesmo apartamento, ainda tem pela frente 120 prestações de R$ 237 mensais do financiamento habitacional, que agora tenta negociar com a Caixa para abater do saldo remanescente do FGTS. Também conta com o suporte de amigos – no mês passado, um deles lhe deu um botijão de gás.
– As pessoas da minha classe social estão ganhando menos. E, se quiserem trocar de emprego, não têm opção. Eu não sei o que vai acontecer daqui para a frente, nem sei se vou conseguir pagar o apartamento – afirma Jairo.
Responsável pela Critério Brasil, pesquisa que desde a década de 1960 classifica os estratos sociais do país, Luis Pilli mapeou o encolhimento das classes A e B, empurradas ladeira abaixo pela crise. O levantamento realizado pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep), considerando variáveis como acesso a bens duráveis e nível de escolaridade do chefe de família, aponta que 4,2 milhões de domicílios adentraram nas classes C, D e E até 2018.
– Desde então, a economia vai, mas não vai. Percebemos certa estabilidade na distribuição das classes econômicas após uma piora. O pior passou, mas ainda não melhorou. Hoje, a situação do país está melhor do que na década de 1990, mas pior do que nos anos 2000 – avalia Pilli.
Em análises internas, o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Rafael Osório identificou um deslocamento temporário na dinâmica de classes do país. De acordo com o sociólogo, parte da classe C tem oscilado para as camadas D e E em determinados trimestres, retornando em outros.
– Há pessoas na pobreza de forma crônica, mas a maioria a vive de forma temporária, transitando para dentro e para fora. Essa franja imediatamente acima dos pobres chamada de classe C volta e meia entra nessa. São pessoas com dificuldades para manter seu padrão de vida – diagnostica Osório.
– Parte do nosso mau humor coletivo está nessa perspectiva real de baixar o nível de vida. Para quem subiu à classe C, a perspectiva é de retorno à pobreza.