O economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, cunhou no início da década a expressão "nova classe média". Simbolizava a ascensão de milhões de pessoas que, com o crescimento do emprego e da renda, começavam a realizar sonhos de consumo como carro, viagem, faculdade para os filhos. Nesta entrevista, Neri conta como viu a reação da Classe C à crise e suas preocupações com o Brasil, principalmente com os jovens.
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Como vê o empobrecimento das pessoas que estavam na classe C?
Não chega a ser surpresa. Foi uma década com dificuldade grande em termos de PIB. Mas essa classe média surpreendeu pela resiliência. Falamos de "pibinho" desde 2012, pelo menos, e ela se manteve ascendente até 2014 e só virou em 2015. Com o aumento do desemprego, montaram seus próprios negócios, até que a crise foi mais forte. Mas o desemprego parou de aumentar, a carteira de trabalho parou de cair, talvez possa se ver uma pequena inflexão nessas séries. Os salários também, pela queda da inflação, estão se recuperando.
Como foi o recuo em números?
Em 2004, eram 70,8 milhões na classe C. Em 2014, eram 113,55 milhões. Em 2015, era 113,6 milhões. Nestes dois anos, ficou praticamente parada. Houve queda de pessoas A e B para a C, assim como da classe C para D e E. Então, a classe C manteve o tamanho, mas porque recebeu gente das classes A e B. Houve uma queda generalizada, mas ela manteve seu tamanho. A classe A/B, a classe média tradicional, mais padrão europeu, era de 13,7 milhões em 2004. Praticamente dobra. Chega a 27 milhões em 2014, e cai em 2015 para 24,9 milhões. Aí há queda grande da classe A/B em 2015 e a D e E também aumentam bastante, mas o que surpreende é uma certa resiliência, porque você pode considerar a década atual como perdida em termos de PIB.
Não houve tanta variação líquida da classe C.
Talvez fosse melhor falar de classe ABC, juntar a classe média tradicional com a nova classe média. Então você observaria perda de 2 milhões de pessoas de 2014 para 2015. Se eu fizer a conta da classe ABC, em 2004 era era 84,4 milhões. Em 2014, passa para 140,5 milhões, e depois cai para 138 milhões.
Qual é a sequência da crise?
A desigualdade do Brasil vinha caindo desde 2001. É um componente importante desse aumento da nova classe média. A renda vinha crescendo, que é um segundo componente, acima do PIB. Quer dizer, o PIB vinha crescendo de 2003 até a recessão de 2009. O Brasil passou relativamente bem por esse processo. Teve três componentes por trás do crescimento dessa nova classe média, ou da classe ABC: redução de desigualdade, crescimento do PIB e crescimento da renda das pessoas acima do PIB. Isso até o final da década, a crise não afetou tanto, pelo contrário, o Brasil cresceu em 2010, talvez até de uma maneira exagerada. Aí vamos olhar para a década atual. A economia começa a andar de lado a partir de 2012. Veio o "pibinho" de 2012, um termo na época bastante usado. O auge do mercado de trabalho foi o final de 2014, quando teve o menor desemprego da série, maior salário, menor pobreza, menor desigualdade da série, então existia certo descompasso. Depois, as coisas se alinham no sentido da queda. O terceiro componente, que é a desigualdade, passou a cair menos, teve uma freada, e é o que mais me preocupa hoje. Completamos dois anos, o que não acontecia desde 1989, de aumento da desigualdade. Isso começa a jogar, não só contra a pobreza, e a nova classe média, mas na própria economia. Em 2017 tivemos uma retomada do PIB, que está sob júdice, porque os dados posteriores não foram tão bons, mas parar de cair é o primeiro passo. Mas foi uma recuperação puxada, inclusive do emprego formal, por exportações, agronegócio, não exatamente o mercado interno. Então, fazendo um pouco a cronologia, a economia vinha bem até o final da década, tinha desajustes fortes, até o próprio crescimento exagerado em 2010 é um desajuste, no sentido contrário, mas um desajuste, que gera problemas posteriores. A renda das pessoas continuou crescendo a despeito da redução do PIB. Desde o começo da década, a renda das pessoas cresce três vezes mais do que o PIB, a boca de jacaré continua abrindo, até que depois de 2014, depois do ápice, tudo cai, a renda das pessoas cai tão forte quanto o PIB e com esse componente de aumento de desigualdade tende a puxar o freio de mão da economia.
Por que está aumentando tanto a desigualdade?
Primeiro, o desemprego em alta, o próprio efeito da recessão. A princípio, era uma estagflação e o lado de inflação foi vencido. Foi uma boa condução da política monetária, talvez meio dura, mas produziu resultados, isso deve ser reconhecido. Até 2016, a inflação era tão vilã da perda do poder de compra quanto o desemprego, apesar de o desemprego ocupar muito mais espaço do noticiário. Mas, a partir de então, a inflação começa a cair, começa a jogar a favor, o desemprego continuou aumentando até o início de 2017. Então é desemprego, estagflação e a parte fiscal. Ela é fundamental, o governo não pode segurar programas. Acho que em 2015 teve um grande desajuste na política social do que foi a manutenção do Bolsa Família congelado com inflação de dois dígitos, 10% naquele ano. Acho que esse ponto é importante de ser ressaltado porque agora, embora a inflação esteja bem mais baixa, existe dúvida, já foi anunciado que não terá reajuste no Bolsa Família. Isso não afeta tanto a classe C, mas afeta a extrema pobreza. Em 2015, a pobreza subiu 19,3%. Isso não só faz com que a pobreza aumente, mas tira força da própria economia. Hoje em dia, o mercado interno está debilitado, grande parte em função da desigualdade. Temos instrumentos no Brasil como o Bolsa Família, e às vezes a gente toma decisões como liberar o FGTS, por exemplo, quando o impacto do FGTS sobre a demanda agregada – não falo nem sobre pobreza, mas pelos mesmos canais – um quarto do impacto de cada real gasto no Bolsa Família. Temos um desajuste fiscal e isso não permite você fazer política anticíclica. Mas acho que a pouca política que temos feito nos últimos anos tem sido de baixa qualidade, não só no sentido social, como macroeconômica, pelo fato de a gente ter perdido esse olho na desigualdade. O grande problema do Brasil é a desigualdade.
A pouca habilidade de lidar com o crédito farto contribuiu para esse tombo?
Seria um quarto componente alinhado com aqueles. A relação crédito/PIB subiu de 24% para mais de 50%. Mais do que dobrou em 10 anos. A partir de 2009, houve perda de qualidade. O combate à crise de 2009 muito em cima de crédito público gerou não só esse desarranjo nas contas das famílias, como também esse desarranjo fiscal. Parte do nosso desajuste fiscal vem dessa estratégia de usar bancos públicos para combater a recessão, que num primeiro momento pode fazer sentido, na crise de 2009, mas isso foi mantido muito mais tempo do que deveria. Com o agravante de que o juro no Brasil é muito alto. Então não é só o fato de as pessoas terem se endividado mais, e o fizeram, mas há um juro muito alto. E depois subiram mais porque a inadimplência aumentou, os spreads aumentaram, a taxa Selic também teve que aumentar. Todos os componentes jogaram contra. Acho que um valor que a gente não desenvolveu no Brasil é o valor da poupança. Essas famílias que subiram não foram incentivadas a poupar.
Isso pode mudar?
Gostaria que houvesse esse aprendizado, mas, como eu disse, acho que existe uma cultura no Brasil. Criar uma reserva para o futuro, não só em caderneta, mas títulos públicos, tesouro direto, isso é uma coisa rara no caso brasileiro. O brasileiro estava muito otimista em relação ao futuro, então foi exacerbado o consumo em detrimento da poupança.
Como o próximo crescimento da classe média pode ser sustentável?
Prioridade é o aumento da produtividade da economia. Mesmo nas épocas de crescimento forte, embora a produtividade tenha acelerado, estava em um nível insuficiente. A agenda do ajuste fiscal e das reformas é importante, um problema que o Brasil precisa encarar. Também uma agenda de combate à desigualdade. É um elemento dinamizador da economia. E uma última, para o principal grupo afetado, e que gera marcas no futuro, é uma agenda voltada para os jovens. Os jovens são os grandes perdedores dessa crise atual, mais do que a nova classe média, são os novos adultos brasileiros. Vêm perdendo muito desde 2013 a uma taxa muito mais alta, continuam perdendo mais em termos de renda e trabalho e são o futuro do país. Uma grande perda para este grupo não é só preocupante em termos da situação presente, mas das sequelas que deixa para o futuro.
O Brasil está desperdiçando seu bônus demográfico?
Em larga medida, sim. A educação teve melhora quantitativa, mas tivemos dificuldade em transformar essa educação em produtividade. Esse é um dos grandes mistérios brasileiros: por que a educação aumentou tanto e a produtividade tão pouco nas últimas décadas? Há grande avanço na expectativa de vida e isso implica na (necessidade) da reforma da Previdência. Mas essa juventude será sacrificada. Já está pagando preço gigantesco sem incluir a herança da Previdência, que vai recair fundamentalmente sobre este grupo e sobre as próximas gerações. Então, a reforma da Previdência é uma agenda importante dessa juventude. Também não é vista nem falada desta forma.