Ao declarar, em entrevista à Rádio Gaúcha, que o Estado está impedido de aderir ao regime de recuperação fiscal se não privatizar o Banrisul, a secretária-executiva do Ministério da Fazenda, Ana Paula Vescovi, aprofundou as incertezas sobre o futuro das contas do Rio Grande do Sul – e sobre o rol de opções disponíveis ao governador eleito Eduardo Leite (PSDB) para enfrentar a crise, que se agrava a cada dia.
Desde 2017, a economista acompanha de perto as negociações entre a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), órgão que comandou os trâmites por parte da União, e a gestão de José Ivo Sartori (MDB), na tentativa de aderir ao programa federal. A iniciativa foi criada pela União para socorrer Estados em calamidade financeira em troca de uma série de contrapartidas.
Nos últimos dois anos, Sartori e sua equipe sempre disseram que o banco não entraria no negócio – o que de fato se confirmou – e que sua venda não estava entre as exigências do Ministério da Fazenda. Na última campanha eleitoral, a assinatura do acordo foi o principal compromisso assumido por Sartori e, após o pleito, o governador garantiu que um pré-acordo (espécie de carta de intenções, sem validade oficial) estaria pronto para ser firmado, o que ainda não ocorreu.
Até então distante dos holofotes e pouco afeita a entrevistas, Ana Paula falou nesta quarta-feira (28) por mais de 30 minutos e jogou areia nas promessas de Sartori – dando indicativos de que a atual gestão sabia que, sem vender o Banrisul, não haveria chances de levar tratativas adiante.
Didática, deixou claro que "existem dois pontos principais que não permitiram a adesão do Rio Grande do Sul ao regime": a dificuldade de comprovar que compromete no mínimo 70% da receita com pessoal e pagamento da dívida e a não inclusão do banco público na lista de estatais a serem vendidas. Sobre esse último ponto, destacou que, sem o Banrisul, há “impedimento total” à adesão. A venda representaria cerca de R$ 4 bilhões em caixa, o que, na avaliação dela, ajudaria a abater o passivo do Estado.
— Isso (a decisão de Sartori de manter o banco sob controle estadual) foi, sim, uma restrição para a entrada no regime. Em três anos, o Rio Grande do Sul vai poder ficar sem pagar suas dívidas, e isso tem o valor de R$ 9 bilhões. Mas isso não elimina, isso aumenta a dívida pública — sintetizou Ana Paula.
As revelações tiveram repercussão imediata. Da Inglaterra, onde participa de um curso na Universidade de Oxford, Leite disse, por telefone, que cabia a Sartori "responder pelas declarações que fez ao povo gaúcho". Durante a disputa eleitoral, o tucano garantiu que daria continuidade ao acordo, porém com alterações. Como Sartori, comprometeu-se a não privatizar o Banrisul.
Agora, Leite terá o desafio de cumprir duas promessas, em tese, conflitantes: garantir a adesão ao regime, sem ceder o banco. E terá de fazer isso em uma nova conjuntura, com Paulo Guedes, ferrenho adepto das privatizações, à frente do Ministério da Economia.
No fim da tarde, pelo Twitter, Sartori acusou “alguns setores” de criar “falsa polêmica midiática” sobre o assunto e “fomentar tensão entre o atual e o futuro governo”. Conforme o governador, “a privatização do Banrisul nunca fez parte das negociações” e é “compreensível que agentes do Tesouro Nacional tivessem esse desejo”. Apesar disso, garantiu não ter dado margem a essa possibilidade e disse que, “mesmo assim, as negociações prosseguiram”, resultando na “minuta de acordo prévio, a qual já foi entregue formalmente para o futuro governo”.
Ele concluiu afirmando que “governar um Estado em crise exige perseverança, paciência e competência técnica das equipes. Não é por meio de discussões na imprensa ou de falsas polêmicas que vamos resolver os problemas”.
O que disse Ana Paula Vescovi
Existem dois pontos principais que não permitiram a adesão do Rio Grande do Sul ao regime de recuperação fiscal. O primeiro foi não estar com os demonstrativos das contas públicas ajustados às regras da lei de responsabilidade fiscal, e aí, sim, nesses demonstrativos, estariam reveladas as despesas de pessoal da ordem de 70% de todas as receitas correntes líquidas. Esse é o critério de entrada, e o Estado não publicou os demonstrativos segundo as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Análise
Nos documentos oficiais, o Estado seguiu declarando gastos com pessoal conforme os critérios do Tribunal de Contas do Estado (TCE), que são mais brandos — deixam de fora, por exemplo, as despesas com pensões e auxílios, o que acaba reduzindo a fatia da receita comprometida com a folha e seus encargos ( livrando, historicamente, os governadores de punições). Para aderir ao regime, o Estado precisa provar para a Secretaria do Tesouro Nacional que compromete 70% ou mais da receita com pessoal e juros e amortizações da dívida. Embora, na prática, isso já seja realidade, até agora não ficou claro nos relatórios contábeis.
O que disse Ana Paula Vescovi
"A segunda (razão pela qual o Estado não conseguiu aderir ao programa) foi de fato o plano de privatizações, que faz parte desse plano de ajuste das contas públicas com todas as medidas que o Estado teria de adotar. O Estado fez um esforço nos últimos quatro anos, mas não o suficiente.
Então, qual é a questão do Banrisul? O Banrisul é importante entrar no plano de privatização. Isso foi, sim, uma restrição para a entrada no regime. No regime, em três anos, o Rio Grande do Sul vai poder ficar sem pagar suas dívidas, e isso tem o valor de R$ 9 bilhões. Mas isso não elimina, isso aumenta a dívida pública. Agora, quando você fala em privatizar, qual é a lógica do plano?
O Rio Grande do Sul só entra no plano se tiver medidas que demonstrem o equilíbrio fiscal em 2021, em três anos. Ou seja, o Estado tem de sair arrumado, equilibrado, lá na frente. Para que saia equilibrado, suspendendo os R$ 9 bilhões de dívida, seria muito importante abater essa dívida por meio da venda de ativos. Não é para fazer despesa corrente. "
Análise
Os principais benefícios do regime de recuperação fiscal são a suspensão da dívida por pelo menos três anos e a obtenção de financiamento (mesmo sem margem para isso) para sanar pendências financeiras.
Para aderir ao programa, o Estado precisa apresentar um plano detalhado com as medidas que serão adotadas em três anos para reequilibrar as contas. Esse plano tem de ser aprovado pela Secretaria do Tesouro Nacional, o que, até agora, segundo Ana Paula, não ocorreu.
Para a quitação de passivos, o Estado deve listar empresas dos setores financeiro, de energia e de saneamento, entre outros, para privatização. Caso avalie a necessidade de financiamento para regularizar o caixa, tem de oferecer ativos como garantia à União.
O que disse Ana Paula Vescovi
"Impedimento total (sobre a adesão ao regime sem o Banrisul ser privatizado). Por quê? Sendo muito clara: as três companhias que até agora foram colocadas no plano de privatizações têm valor estimado de R$ 1,8 bilhão.
Suspendo R$ 9 bilhões de dívida, estou ofertando R$ 1,8 bilhão em três companhias? Por que o Banrisul é essencial? Porque é a companhia mais valiosa do Estado, (vale) cerca de R$ 4 bilhões. É óbvio que todo esse plano tem de ser voltado para a melhoria dos serviços prestados à população.
Os serviços bancários podem, sim, ser providos pelo setor privado, e com excelência. Então, isso não vem em prejuízo à população gaúcha. É um ativo valioso que pode tornar muito menos doloroso o processo de ajuste das contas para todos os gaúchos."
Análise
Ana Paula afirma que o Rio Grande do Sul é impedido de assinar o acordo de adesão com a União se não incluir o Banrisul na lista de privatizações por um motivo simples: as estatais listadas para privatização (CEEE, CRM e Sulgás), além de até agora não terem sido privatizadas, podem render cerca de R$ 1,8 bilhão, o que é considerado pouco pelo Tesouro para fazer frente aos problemas.
Somando com o Banrisul, seria possível chegar, por baixo, a R$ 5,8 bilhões, valor considerável para abater parte da dívida jogada para frente. Ainda assim, ficariam valores por pagar, incluindo os juros e a correção do passivo no período, estimado em cerca de R$ 1 bilhão.