Muitas vezes sem se dar conta, a doceira Marilene Duarte, 61 anos, tropeça no cheque especial. Com um limite de R$ 500 na conta corrente, semana sim, semana não, ela esgota o saldo e começa a gastar o dinheiro liberado na forma de crédito automático. Como, no seu extrato, os valores do saldo e do limite aparecem juntos, Marilene se confunde. O problema, além de criar uma dívida, são os juros: as taxas médias do cheque especial no Brasil são de 12% ao mês – uma das linhas de crédito mais caras do país – e podem chegar a 20% ao mês.
– Quando consigo vender meus doces e entra dinheiro na conta, já fica para pagar a dívida e sobra menos para passar os próximos dias – relata Marilene.
Com as mudanças implementadas pela Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) em 1º de julho, dois dos problemas do uso do cheque especial – juros altíssimos que se acumulam em bola de neve e dificuldade de os clientes diferenciarem o que é saldo do que é limite – têm novas regras. Ao contrário do que ocorria, os extratos não devem mais apresentar, somados, o valor disponível em conta corrente e o limite automático. O objetivo é evitar que o cliente use o limite sem perceber que se trata de um empréstimo.
Outra mudança importante é que o banco terá de entrar em contato com o correntista assim que ele ultrapassar 15% do valor do limite, desde que este percentual corresponda a pelo menos R$ 200, e oferecer uma linha de crédito mais barata. Os maiores bancos do país anunciam que já implementaram as mudanças e, por meio de mensagem de texto SMS ou aviso nos terminais de autoatendimento, oferecem a alternativa de migrar o cheque especial para linhas de crédito com taxa a partir de 1,4% ao mês.
O impacto nas dívidas é significativo: conforme simulação da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), quem entra no limite da conta corrente em R$ 200 e só consegue pagar o banco após seis meses terá um débito total de R$ 394,76 (já com efeito do juro composto). Caso aceite parcelar esta dívida como crédito consignado (uma das linhas que estão sendo oferecidas pelos bancos), com taxa de 1,4% ao mês, o montante pago ao final de seis meses será de R$ 209,94.
É importante reforçar que essas mudanças são uma autorregulamentação dos bancos, ou seja, a iniciativa não foi determinada pelo governo. Mas, conforme a Febraban, isso não significa que as orientações sejam menos importantes: a entidade informa que os bancos que não cumprirem as novas regras estarão sujeitos às penalidades previstas no Sistema de Autorregulação Bancária, que incluem desde advertência (incluindo advertência pública) até o afastamento da instituição financeira do sistema.
Com a regulamentação, a expectativa dos bancos é de que caia a taxa de inadimplência nesta modalidade de empréstimo. Um levantamento feito em maio em todas as capitais pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) revela que mais da metade (54%) dos consumidores inadimplentes no cheque especial não regularizaram suas dívidas mesmo após serem notificados pela empresa credora.
– As mudanças são positivas porque trarão à população a cultura de comparar as taxas de juros e reforçarão o controle financeiro – avalia Paulo Borba, gestor comercial da Câmara de Dirigentes Lojistas da Capital (CDL-Porto Alegre), que gerencia o Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) em Porto Alegre.
Reforço na renda
De acordo com o Banco Central, hoje, o cheque especial é utilizado como extensão da renda e ocupa a terceira posição no ranking de inadimplência, com 13,6%, perdendo apenas para dívidas com cartão de crédito (33,2%) e operações de renegociação de dívidas (17%).
As normas, no entanto, têm certa flexibilidade. As linhas de crédito oferecidas dependerão do perfil de cada cliente (da sua relação com o banco), portanto, nem sempre alguém com aperto financeiro receberá a oferta da linha mais barata. Além disso, dependerá da análise de cada instituição se manterá ou não o cheque especial após o cliente ultrapassar 15% do limite e aceitar tomar um crédito, para evitar que a pessoa fique com duas dívidas. De acordo com a Febraban, os bancos poderão manter os limites "levando em consideração as condições de crédito do consumidor, bem como estabelecer novas condições para a utilização e pagamento do valor correspondente ao limite ainda não utilizado e que não tenha sido objeto do parcelamento".
Essa flexibilidade é vista com cautela por entidades de defesa do consumidor, como o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). De acordo com Ione Amorim, economista do órgão, o cliente pode ser levado a assumir duas linhas de crédito distintas, com prazos e juros diferentes, acionando o sinal de alerta para o endividamento.
– Nosso receio é de que a pessoa assuma um crédito e ainda continue usando o cheque especial, criando um problema ainda maior no seu orçamento – explica Ione.
Entenda as mudanças
- Desde o dia 1º de julho, as regras do cheque especial foram alteradas pelos bancos.
- As instituições financeiras devem oferecer uma opção de crédito mais barata para o correntista que utilizar 15% do limite da conta por 30 dias seguidos.
- A nova regra se aplica somente para dívidas superiores a R$ 200.
- A oferta das opções mais vantajosas para pagamento do cheque especial deve ocorrer em até cinco dias úteis após os bancos constatarem que o cliente se enquadra neste caso.
- O acesso a uma linha mais vantajosa será ofertado mesmo que o cliente tenha algum tipo de restrição de crédito.
- O cliente não é obrigado a contratar uma das alternativas oferecidas. Nesses casos, os bancos terão de fazer as ofertas novamente a cada 30 dias.
- Se o cliente optar por parcelar a dívida do cheque especial, os bancos terão a opção de manter ou não o limite de crédito dessa modalidade ao consumidor.
- O banco deve avisar o cliente quando ele não tiver saldo suficiente na conta e precisar usar o limite do cheque especial.
- Está previsto, ainda, que os bancos promovam ações de orientação financeira relacionadas ao cheque especial, especialmente no que diz respeito à sua utilização em situações emergenciais e de forma temporária.
O que dizem os bancos*
Banco do Brasil: informará ao cliente toda a vez que ele utilizar mais de 15% do limite. O aviso, por SMS ou notificações no aplicativo do banco, visa orientar sobre o caráter emergencial do cheque especial, ofertando linhas de crédito parceladas com menor custo. Em relação à linha para parcelamento do cheque especial, os prazos podem chegar a 36 meses e taxas partem de 3,27% ao mês.
Banrisul: disponibiliza diversas linhas de crédito para o pagamento parcelado do saldo utilizado do limite da conta, de acordo com o enquadramento do cliente nas políticas de crédito e risco vigentes. O banco enviará mensagem por meio de e-mail ou SMS aos clientes que utilizarem mais de 15% do limite.
Bradesco: Os clientes que passarem mais de 30 dias com exposição no cheque especial poderão refinanciar, de forma voluntária, o valor por um crédito com prazo taxas prefixadas. O banco não informou as taxas desta linha.
Caixa Econômica Federal: o crédito ofertado como opção já está disponível, com oportunidades de linhas conforme o perfil e situação do cliente. São oferecidas alternativas com juros a partir de 1,4% ao mês. O banco informa que tem realizado ações de educação financeira aos clientes em seus canais alertando para as peculiaridades do cheque especial, nos extratos, mensagens SMS, alertas no Internet Banking, site www.caixa.gov.br e nos terminais de auto atendimento.
Itaú: o banco comunicará ao cliente toda vez que entrar no cheque especial e a qualquer momento haverá uma linha de crédito disponível para parcelamento do saldo, com juros mais baixos (o banco não especificou quais serão estes juros). As informações do extrato serão apresentadas de forma separada, facilitando o acompanhamento do saldo e do limite disponíveis do cheque especial.
Santander: o banco está oferecendo ao cliente alternativas ao uso do limite vinculado à conta corrente. As taxas desses produtos parcelados variam de 1,4% ao mês (a menor taxa do consignado) a 7,89% (a maior taxa de um crédito pessoal no banco), lembrando que o relacionamento com o banco é relevante para a formação da taxa.
* À exceção do Banrisul, que é do Rio Grande do Sul, estes são os bancos com maior número de clientes no sistema financeiro nacional, conforme o Banco Central.