Os embates no campo, historicamente associados à preservação ambiental e à luta pela terra, ganharam novos contornos no Rio Grande do Sul. Dessa vez, o duelo não é entre ambientalistas e agricultores ou sem-terra e ruralistas. O conflito se dá entre porteiras – com produtores em lados opostos. O resíduo da deriva (produto que não atinge o alvo) de um agrotóxico nas lavouras de soja, principal cultura agrícola do país e do Estado, é apontado como causador de perdas em vinhedos e pomares de oliveiras nas regiões da Campanha, Fronteira e Centro. Nos Campos de Cima da Serra, onde o grão também ganhou espaço, há sinais de prejuízos na maçã e na uva.
Com a desconfiança em safras anteriores, neste ano os atingidos comprovaram, pela primeira vez, a presença do princípio ativo 2,4-D nas plantas afetadas – das 53 amostras analisadas pela Secretaria da Agricultura em 18 municípios, 52 tiveram laudos positivos, atingindo 47 propriedades. Zero Hora visitou sete propriedades que receberam as confirmações da deriva – algumas a quilômetros de distância de lavouras de soja – em Bagé, Candiota, Dom Pedrito, Santana do Livramento, Jaguari e Monte Alegre dos Campos.
Os resultados serão encaminhados ao Ministério Público (MP), que está com inquérito civil aberto desde 2015. A promotora Anelise Grehs, coordenadora do Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais, pretende concluir a apuração em janeiro. As possibilidades cogitadas são suspensão do uso do produto, criação de zonas de exclusão de aplicação ou acordo para substituir o herbicida por alternativos. Desde que o assunto chegou ao MP, a situação só piorou. As perdas são relatadas em quase toda a Campanha – região de origem do inquérito –, onde são cultivados 1,6 mil hectares de uvas viníferas.
– O problema é que a aplicação é bem no período de floração das parreiras. As plantas se enrugam, abortam as flores e interrompem o desenvolvimento – relata Clori Peruzzo, presidente da Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha.
Nas oliveiras, o efeito é parecido. As folhas atrofiam, encolhem e deixam de produzir azeitonas.
– Em todos os talhões onde foram coletadas amostras (em Candiota), os resultados foram positivos, infelizmente – lamenta o empresário paulista Luiz Eduardo Batalha, um dos maiores produtores de oliveiras do país.
Há cinco anos, Jaguari enfrenta o problema
O que atinge vinhedos e oliveiras da Campanha nos últimos dois anos, travando investimentos, é um problema verificado em Jaguari, na Região Central, há pelo menos cinco anos.
– Alguns produtores arrancaram os parreirais. Não somos contra a soja, mas precisamos sobreviver – afirma João Minuzzi, presidente da Cooperativa Agrária São José, fabricante dos Vinhos Jaguari.
O 2,4-D é aplicado antes do plantio de soja para eliminar a erva daninha buva, que é resistente ao glifosato. O problema seria o desrespeito às regras de aplicação, que preveem, entre outras orientações, velocidade do vento inferior a 10 quilômetros por hora. Há alternativas ao produto, mas com custo maior.
– O conflito existe e deve ser resolvido com treinamento. Proibição não é solução – alega Gedeão Pereira, presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), acrescentando que sindicatos rurais podem intensificar programas de deriva zero.
Para Gianfranco Badin Aliti, chefe da Divisão de Agrotóxicos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), ações de conscientização são válidas, mas não resolverão sem medidas complementares, como zoneamento para proteger culturas mais sensíveis.
Suspensão e zoneamento são alternativas cogitadas por Ministério Público
A promotora de Justiça Anelise Grehs, responsável pelo inquérito sobre deriva do 2,4-D, não descarta a apresentação de ação judicial para suspender a aplicação do agrotóxico no Rio Grande do Sul. Seria a medida mais radical. Também é opção delimitar zonas de exclusão, o que significaria criar áreas geográficas em que o produto não poderia ser aplicado. Anelise também considera a hipótese de acordo com produtores para a utilização de outro herbicida que não seja o 2,4-D, opção por hectare em média R$ 20 mais barata do que outros produtos da classe.
A Fepam e a Comissão Estadual de Análise de Cadastro de Agrotóxicos e Afins, órgãos que teriam atribuição de restringir o uso do 2,4-D no Rio Grande do Sul, como já fizeram no passado com o também herbicida Paraquat, são mais cautelosos ao tratar o assunto.
As duas entidades já manifestaram não ter identificado “elementos que justificassem o indeferimento de produtos à base do ingrediente ativo 2,4-D”.
No documento, assinado pelo chefe da Divisão de Agrotóxicos da Fepam, Gianfranco Badin Aliti, é apresentado estudo sobre o número de propriedades rurais na região da Campanha que ficariam impedidas de aplicar o herbicida em razão de zona de exclusão:
– Não vemos a possibilidade de proibir. Tirá-lo causaria impacto muito grande ao agronegócio.
O agrônomo da Fepam é favorável à criação de áreas de exclusão, ponto ainda sem consenso diante de dificuldades de fiscalização.
– Mas até que ponto o zoneamento vai ser efetivo? Como fiscalizar? Não há como deixar de cogitar o pedido judicial de suspensão do uso. Isso iria ao encontro de um projeto de lei que tramita na Assembleia para proibir a aplicação deste produto no Estado – comenta a promotora Anelise, citando proposta do deputado Edegar Pretto (PT), que tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e dificilmente será votada nesta legislatura.
Deriva vinda de longe
- Dos resultados obtidos pela Secretaria da Agricultura, chama a atenção o fato de propriedades rurais sem vizinhos contíguos com cultivo de soja também apresentarem resíduo de 2,4-D nas plantações de uvas e oliveiras.
- Mesmo em áreas onde não há lindeiro, cerca a cerca, com lavoura e viticultura, por exemplo, os sintomas de 2,4-D foram confirmados em laudos, indicando uma deriva vinda de quilômetros de distância, segundo documento da Secretaria da Agricultura encaminhado à reportagem.
- Apesar de produtores relatarem perdas em cultivos localizados a mais de 10 quilômetros das lavouras de soja, não há estudos científicos que comprovem deriva nessa distância, segundo Ulisses Antuniassi, professor da Unesp. O mais comum, segundo ele, em casos de má aplicação, são derivas de até 600 metros.
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Na Guatambu Estância do Vinho, em Dom Pedrito, premiada internacionalmente, o sentimento é de frustração na terceira safra com problemas de contaminação nos parreirais.
Além de investir em áreas próprias de olivais, o empresário Luiz Eduardo Batalha fomentou o cultivo de oliveiras em outras 30 propriedades na região.
Em Candiota, o mesmo sentimento de frustração é visto na Vinícola Galvão Bueno, do apresentador da Rede Globo, onde a estimativa é de redução de 30% da produção em 30 hectares de parreirais. Na safra anterior, as perdas chegaram a 50%.
Antes de os danos aparecerem, a colheita da cooperativa chegava a 1 milhão de quilos. Neste safra, a projeção é de 450 mil quilos. Cerca de 30% dos produtores associados arrancaram os parreirais, partindo para outras atividades.
O uso do 2,4-D nas lavouras de soja não é apenas uma escolha econômica, segundo produtores. A opção é justificada também pela eficiência da molécula química para conter o avanço de ervas daninhas.
Na região que concentra a maior parte do plantio de maçãs do Rio Grande do Sul, a deriva do 2,4-D começa a deixar rastros nos pomares.
Especialistas asseguram que o princípio do 2,4-D não se aloja no produto final.
O invisível é mais grave, pois é a qualidade das águas e a vida microbiana associada às vegetações, sem falar nos polinizadores – abelhas e pássaros –, que são afetados.
A aplicação de qualquer herbicida está sujeita à deriva se não forem seguidas boas práticas agrícolas, segundo Ulisses Antuniassi, professor da Unesp Botucatu e especialista em tecnologia de aplicação.