Mãe e feminista de carteirinha, a jornalista catalã Begoña Gómez Urzaiz não conseguia compreender como uma mulher com filho dava as costas para a criança e seguia o próprio caminho. Transpôs preconceitos e estereótipos que encobrem o assunto e pesquisou sobre a vida de mulheres que deixaram a maternidade de lado ou, ao menos, não a colocaram no centro de suas vidas.
Encontrou razões variadas, de problemas com os parceiros a dificuldades financeiras, passando pela forte ambição profissional e necessidade de realização de seus talentos. Em alguns casos, contrariando o que o senso comum prega há milhares de anos, eram pessoas que simplesmente não tinham o tal do instinto materno, ainda que tivessem parido.
Recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras, As Abandonadoras – Histórias sobre Maternidade, Criação e Culpa (R$ 79,90, 280 páginas) traz exemplos de artistas como a escritora Muriel Spark, autora de The Prime of Miss Jean Brodie, adaptado no cinema com o nome A Primavera de Uma Solteirona), e da cantora e compositora canadense Joni Mitchell, uma das maiores vozes do folk e do jazz no século 20, além de mulheres comuns que a jornalista entrevistou.
O livro não é nem uma defesa nem uma acusação dessas mulheres que não cumpriram com o que se espera de uma mãe – renúncia de si para a dedicação a outro ser humano, horas sem sono, sonhos abdicados – mas um retrato profundo e raramente visto sobre a figura feminina, que a deixa mais distante do céu e mais perto da vida real.
Imagino que a vontade de escrever sobre mulheres que abandonaram seus filhos ou simplesmente não foram mães exemplares surgiu após você conhecer a história de uma delas. Quem foi a primeira?
Acho que a vontade de escrever sobre isso aninhou-se em mim sem que eu tivesse percebido. Um dia, escrevendo a resenha de um livro de Muriel Spark (romancista escocesa), comecei a ler sobre a estranha relação que ela mantinha com o filho e percebi que sentia uma atração quase mórbida por esse tipo de história, a de mães abandonadoras, e que já vinha acumulando essas histórias sem perceber. Como explico no livro, essa obsessão não vem de minha história pessoal, pois não me abandonaram nem me separei dos meus filhos. De alguma forma, queria entender aquelas mulheres que estavam emocionalmente distantes e próximas de mim.
Entre as mães que abandonaram seus filhos, há artistas e pessoas comuns. Que histórias mais comoveram você?
Há muita presença de artistas e escritoras porque a criação, e a dificuldade de criar uma obra cuidando de outro ser humano, é um dos eixos do livro. Muitas precisaram se distanciar da própria família para encontrar o espaço onde cabia sua obra, pois não tinham aquele privilégio historicamente masculino de ter alguém ao seu lado cuidando das coisas do mundo, e também precisavam deixar de ser "a mãe" para se tornar "a artista". Acho que acabei entendendo melhor todas elas, embora algumas histórias me emocionem mais do que outras. Posso compreender a asfixia de Doris Lessing (escritora britânica) na Rodésia, a angústia de Joni Mitchell por se ver sozinha com um bebê e um novo parceiro que não a apoiava. É mais difícil para mim compreender as separações de mulheres como Muriel Spark e Mercè Rodoreda (escritora catalã) dos seus filhos adultos, e ao mesmo tempo sei que as relações familiares são intensamente difíceis e a família pode ser o espaço para tiranias e tensões. No fundo, o que é difícil é o contrário: conseguir sustentar uma relação mais ou menos saudável entre mães e filhos ao longo das décadas. É quase milagroso que isso aconteça.
Em que momento tomou a decisão de entrevistar mulheres comuns que haviam abandonado ou se apartado de seus filhos?
Ao escrever o livro, percebi que estava lidando com o 1% de mães que abandonam os filhos e que, embora não fosse o assunto do livro, também era importante que falasse dos 99%, ou seja, das mulheres que se separam dos filhos sem querer por razões econômicas. Por outro lado, era importante para mim não criar uma dicotomia entre "boas abandonadoras" e "más abandonadoras". Na Europa, tornou-se normal que haja mulheres que trabalham cuidando de crianças e para isso tenham que renunciar aos seus próprios laços familiares. São histórias que dificilmente são dramatizadas porque opera um classismo muito arraigado.
Os motivos para essas mulheres terem deixado a maternidade de lado são parecidos, como necessidade financeira e desejo de realização profissional. Em alguns casos, também existe uma ausência de prazer pela tarefa de cuidar de um ser humano. Por que isso soa tão estranho quando se tratam de mulheres?
A ambivalência materna existe e diria que nos últimos anos estamos fazendo com que ela deixe de ser um tabu. Embora nos sintamos mais confortáveis em entendê-la como uma anomalia, como uma doença temporária como a depressão pós-parto, por exemplo, e portanto algo que pode ser tratado e medicado. É mais difícil pensarmos nesta rejeição materna como algo permanente ou mesmo escolhido, porque a ideia de instinto maternal continua a ter muito peso cultural. Acho que algumas dessas mulheres também viam os filhos como produto de casais desastrosos e não conseguiam separar uma coisa da outra.
Muitas mulheres que abandonaram seus filhos fizeram isso pelas condições inóspitas que viveram, como relacionamentos doentios com os parceiros, falta de apoio, falta de dinheiro, solidão. Agora me dou conta de que, mesmo que elas pudessem retomar o contato com os filhos posteriormente, em condições mais favoráveis, fica uma marca, um trauma difícil de superar.
Sem dúvida. Ao estudar todas essas histórias, percebi que consertar um relacionamento mãe e filho que se rompeu é quase impossível, provavelmente por causa da quantidade de expectativas que existem em torno desse relacionamento. São geradas feridas difíceis de curar.
O namorado de Joni Mitchell a abandonou quando ela decidiu seguir com a gravidez em vez de abortar. Sozinha, ela acabou entregando a filha para adoção e tornou-se uma das maiores cantoras, instrumentistas e compositoras do século 20. Será que teria alcançado esse sucesso se tivesse assumido a maternidade?
É sempre ousado especular, confabular com aqueles "e se?", mas a hipótese que defendo no livro é que não, ela não teria tido aquela carreira musical, porque não teria conseguido estar nos lugares certos, conhecer pessoas adequadas, ter tempo para compor. Quando comecei a contar os filhos que os compositores daquela geração tiveram e os que as mulheres tiveram, a disparidade ficou evidente.
Que cuidados você tomou para contar a história dessas mulheres? Ao mesmo tempo em que o livro é importante para mostrar que as mulheres são imperfeitas e cheias de contradições como todo ser humano, existe um risco de naturalizar o abandono de crianças, algo que pode gerar grandes traumas, não concorda?
Entendo o que você está dizendo e essa dúvida pairou sobre mim e sobre o texto o tempo todo enquanto escrevia. Na verdade, parto do preconceito, do quanto tenho dificuldade em entender essas mulheres, e o caminho que procuro fazer é o da empatia. Não pretendo normalizar o abandono. Quando você tem um filho, de qualquer forma, você assume o compromisso de cuidar, mas às vezes dá errado.
"As Abandonadoras" foi publicado na Espanha, na Alemanha e no Brasil. Como foram as reações nesses países de culturas diferentes em relação aos direitos das mulheres?
O livro também será publicado na França e nos Estados Unidos, e estou muito curiosa para ver qual será a reação. Nas conversas com jornalistas brasileiros, o tema do aborto vem à tona. Estou horrorizada que as mulheres brasileiras tenham que estar sujeitas a esta legislação cruel e misógina e vejo que as mortes resultantes de abortos inseguros são frequentes. Esperamos que isso possa mudar em breve. Infelizmente, nos últimos anos e com o que está acontecendo nos Estados Unidos, vemos muito claramente que os direitos das mulheres nunca podem ser considerados garantidos. Da mesma forma que são conquistados, se perdem.