Karina Ramil faz parte de uma nova geração de mulheres que têm talento de sobra para fazer graça e paciência de menos para lidar com quem ainda olha torto para seu trabalho. Nova cara do Zorra, programa humorístico da Globo, ex-integrante do Porta dos Fundos e fundadora da Cia de Quatro Mulheres, a carioca enumera situações da carreira que expõem a tentativa de perpetuar o espaço da comédia como um lugar essencialmente masculino.
– "Não sei escrever para mulher." "Ah, mas mulher não sabe fazer isso no palco." Já ouvi de tudo. A visão universal, por ser masculina, acaba colocando homens para ocupar esses espaços. Agora, o papo que rola é a representatividade e a diferença que isso faz. E faz muita mesmo – diz a "quase gaúcha" Karina, de 30 anos, que é filha de Kleiton Ramil, da dupla com Kledir.
Expoentes dessa nova leva de mulheres no humor, Tatá Werneck e Dani Calabresa se consolidaram como referências na TV nos últimos anos e também endossam o cenário desafiador citado por Karina. Na série Viver do Riso, comandada por Ingrid Guimarães, a apresentadora do Lady Night revelou que foi discriminada:
– A frase que ouvi a vida inteira foi: "Meninas não podem fazer isso". Homens são engraçados, mulheres são malucas.
Já Dani, em entrevista no Conversa com Bial, contou que sofreu para romper barreiras. Ela queria provar que "não era louca, mas apenas uma artista, comediante e que escrevia piadas":
– Demora um tempo grande para as pessoas aceitarem isso e reconhecerem as comediantes maravilhosas que temos por aí.
Espelho da sociedade
Historicamente, sempre houve mulheres que se destacaram na comédia desde os tempos do Teatro de Revista – Dercy Gonçalves é um ícone que inspira gerações. A TV Pirata, outro marco do humor na televisão, a partir dos anos 1980, tinha nomes femininos com destaque no elenco. De lá para cá, Andrea Beltrão, Fernanda Torres, Mônica Martelli e Ingrid Guimarães são algumas das artistas que também conquistaram lugar de prestígio. O que mudou, então? O viés do texto, um maior protagonismo e o reconhecimento de que a pluralidade, inclusive na ficção, é essencial para construir uma sociedade baseada na equidade. E mais: cresce o número de mulheres garantindo espaço nos bastidores, na criação, escrevendo seus textos e não apenas se encaixando em estereótipos.
– Isso melhora a qualidade do humor e traz essas figuras importantes, como a Tatá, que é fundamental no talk show, e a Dani, que improvisa como ninguém. Minha companhia também nasceu disso, nos juntamos para criar espaço, queríamos escrever nossos papéis – opina Karina. – A maior parte das mulheres que ocupa lugares de destaque nos últimos anos traz esse novo olhar. Já tínhamos iniciativas interessantes, a Fernanda Young, o Os Normais, o Tapas e Beijos. É preciso trazer novas vozes para um universo que não é universal.
Um dos principais nomes do Estado quando o assunto é comédia, a atriz, diretora e professora Patsy Cecato defende que essa desconstrução da voz masculina no humor vem na esteira das lutas femininas e que traz um frescor necessário para o jeito de "fazer rir". Cada vez mais, diferentes perspectivas estão em cena, com um olhar ácido e divertido – e, em alguma medida, foi justamente isso que levou sua peça, Se Meu Ponto G Falasse, virar hit no país no fim dos anos 1990:
– Foi pioneiro no Brasil porque demos nomes aos bois, falamos dos nossos órgãos sexuais sem vergonha. E a mulher queria falar disso, falar da sua visão de mundo. Hoje, há uma diversificação ainda maior, do preto, do índio, do trans, de todo mundo. Inclusive nos programas de televisão, que costumavam encaixar a mulher nos papéis da burra ou da louca.
Rir sem humilhar
E quando se analisa o conteúdo das piadas ao longo do tempo, a mulher cansou de ser o alvo do riso e da humilhação, assim como outras minorias. Racismo, gordofobia e homofobia, por exemplo, não eram – e, infelizmente, ainda não são –preconceitos raros. Mas há tentativas de se fazer um humor cada vez mais consciente de seu papel transformador, principalmente por meio do trabalho de mulheres como Hannah Gadsby, australiana e lésbica que tem shows disponíveis na Netflix, como Nanette.
Há uma diversificação ainda maior, do preto, do índio, do trans. Inclusive nos programas de TV, que costumavam encaixar a mulher nos papéis da burra ou da louca.
PATSY CECATO
atriz, diretora e professora
– Ela vira o jogo, diz que não quer mais se humilhar. A Hannah faz uma avaliação disso, dizendo que passou a vida inteira rindo de si para ter uma plateia. É revolucionário. A mulher conhece o lugar da humilhação na piada e, agora, traz suas temáticas para debochar também dos homens, que é a massa que está no poder. É uma mudança de perspectiva e uma oportunidade de reflexão – defende Patsy, que está à frente da Cômica Cultural Complexo Criativo.
O boom no stand-up
Não é só fora do país que elas estão conquistando mais espaço no stand-up – formato em que a comediante aparece no palco acompanhada apenas de um banquinho, de cara limpa. No Brasil, os últimos três anos foram marcados por uma explosão de mulheres que decidiram se aventurar pelo ramo. Em fevereiro, estreou no canal pago Comedy Central o programa A Culpa É da Carlota, atração que reúne cinco mulheres engraçadíssimas no palco: Cris Wersom, Arianna Nutt, Bruna Louise, Carol Zoccoli e Dadá Coelho. A segunda temporada estreia em 27 de outubro.
– É um marco por ser um desencanar absurdo diante das câmeras. Cinco mulheres completamente livres para brincar, falar besteira sobre sexo, filhos, sobre tudo, sem estarmos sendo cerceadas. A diretora é mulher, as roteiristas também, tínhamos uma equipe feminina muito grande – avalia Cris Wersom, atriz e apresentadora da atração.
Uma das integrantes do humorístico, Carol Zoccoli mobilizou outras comediantes para criar um festival nacional de stand-up lançado em 2018, o Mamacitas. A primeira edição contou com cerca de 60 mulheres. No ano seguinte, o número dobrou: foram mais de 120 de diferentes cantos do país. Em março, Porto Alegre recebeu uma versão pocket do evento.
– O stand-up é um lugar onde a mulher não precisa se encaixar no estereótipo de personagem. A mulher gorda não precisa assumir o papel tradicional dos roteiros de novela, por exemplo. Ela pode assumir quem ela é e falar disso como quiser. Não ter que interpretar um personagem se torna uma oportunidade de poder se expressar – avalia a antropóloga Juliana Spagnol Sechinato.
A especialista pesquisa a atuação das mulheres no stand-up, já entrevistou diferentes humoristas pelo país e garante: não é incomum elas pisarem no palco para contar piadas e verem parte da plateia torcendo o nariz. Para ocupar aquele espaço, é preciso encarar um tabu histórico:
– Rola muito o público vindo dar feedback falando "não achava que mulher tinha graça até eu te ver". Esse meio ainda é tratado por muitos como um lugar do homem. Ainda há campos de resistência, assim como em outras áreas na sociedade. Com o microfone, assumindo a narrativa em destaque, no palco, esse é um lugar de prestígio.
Gurias no humor
O relato de Eva Mansk, capixaba radicada no Rio Grande do Sul, vai ao encontro das dificuldades apontadas pela pesquisadora. Eva está entre as mulheres do Estado que se esforçam para circular pelos palcos com suas piadas e que, frequentemente, são as únicas representantes femininas no elenco da noite. A designer ingressou nesse universo há quatro anos e revela que a representatividade feminina cada vez maior serviu como impulso.
– Vi mulheres sendo reconhecidas pelo seu talento, por serem engraçadas. Não é porque é bonita ou qualquer outra coisa. No stand-up, a Bruna Louise é uma mulher que tem se destacado, lotando lugares fazendo show solo. Já teve meninas na plateia que vieram me dizer que se sentiram inspiradas por me ver lá. Isso é algo poderoso – conta Eva. – Ao mesmo tempo, já me apresentei em lugares onde o público me recebeu muito mal, não esperavam que uma mulher fosse fazer uma canja. Antes de abrir a boca já me olharam torto.
Assim como Eva, que compartilha seu trabalho por meio do perfil @evamansk no Instagram, há outras mulheres que estão movimentando a cena de humor no Estado. Clique aqui para conferir uma lista de gurias que fazem barulho no stand-up no RS.