Quando recebeu o script do personagem que viveria em Bom Sucesso, trama que vai ao ar na TV Globo na faixa das 19h, Ingrid Guimarães titubeou. No roteiro, estava a descrição de uma estrela da televisão afetadíssima, que seria rainha de bateria e disputaria o mocinho com a protagonista, Grazi Massafera.
– Lembro que pensei: “Será que vou fazer esse papel?”. Aí, falei: “Esse personagem, para mim, é um ato político”. Ao longo do que foi a televisão a vida toda, a ode à beleza, o padrão de mulher que tinha que ser linda, gostosa. É uma revolução, de certa maneira – afirma ela, em conversa por telefone com Donna.
Gente como a gente: talvez essa seja a melhor definição para a atriz e apresentadora, que arrastou mais de 20 milhões de pessoas aos cinemas para assistir a filmes como a trilogia De Pernas pro Ar. Nos filmes em que atua, produz e roteiriza, Ingrid, 47 anos, dá voz ao que chama de “humor de identificação”. São os pequenos grandes dramas do cotidiano de mulheres como eu e você – relacionamentos, autocobranças, guerra com o espelho, maternidade x trabalho. E é justamente por isso que a goiana se questionou sobre dar vida a Silvana Nolasco, uma diva cheia de vontades que arranca risadas com situações improváveis na novela. Bem diferente da Alice das telonas, que, infeliz com o emprego formal, decide abrir o próprio negócio. E passa a questionar sua própria decisão de focar na carreira e “acabar perdendo” momentos em família.
– Todo mundo sabe que a minha história, tudo o que escrevo, que faço, é identificação. Minha história é em cima da mulher real. A menina da porta ao lado. A pessoa que você conhece, se identifica e que é possível – pondera.
Sua própria trajetória – na TV e fora dela – é de uma mulher que teve de enfrentar perrengues para estar na posição de estrela do humor nacional. Já amamentou a filha, Clara, hoje com 10 anos, em sets de gravação. Precisou dizer “não” quando lhe ofereceram papeis estereotipados – a gostosa, a “feia”. Teve de criar os próprios roteiros para mostrar seu talento ao público. E declara, sem rodeios, que trabalhar com humor nunca foi fácil para as mulheres. Em um dos episódios de Viver do Riso, série que capitaneou no início do ano e que está disponível no serviço de streaming Globoplay, reuniu nomes como (sua eterna dupla) Heloísa Périssé e Mônica Martelli para debater as mudanças da presença feminina na comédia.
– Quis falar do papel da mulher no humor ao longo dos anos. Tanto é que O primeiro episódio foi somente com elas, contando como esse papel nos últimos 10 anos mudou. Ficou tão interessante que produzimos mais oito episódios sobre como envelhecer na nossa profissão – conta.
A seguir, veja trechos do nosso papo com Ingrid Guimarães:
Seu primeiro papel na TV foi a empregada Teresa, de Por Amor (1997), reprisada recentemente no Vale a Pena Ver de Novo. Seu personagem cresceu ao longo da trama e já mostrava sua veia cômica. Como você vê a crescente participação da mulher no humor?
Foi uma coincidência engraçada estar em duas novelas no ar ao mesmo tempo, que mostram exatamente o que era o papel da comediante há 10, 15 anos, e o que é hoje. Na época de Por Amor, tínhamos pouco acesso a bons papéis para comediantes na TV. Nossas chances eram em programas de humor de homens, tanto que todas nós começamos no programa do Chico Anysio. Fazíamos papéis pequenos e, de vez em quando, davam uma piada para a gente. Alguém entrava no lugar da gostosa. Ou entrávamos no estereótipo da feia. Éramos sempre algum estereótipo.
Você já disse, em entrevista, que as comediantes das novelas recebiam papéis de empregadas, de secretárias, e pouco a pouco avançaram para núcleos mais diversos.
Fiz uma reunião com várias comediantes num episódio de Viver do Riso e perguntei: “Quem aqui já fez empregada do Manoel Carlos, levante a mão!”. A Maria Clara Gueiros, a Fabiana Karla, todo mundo levantou a mão. A maioria já passou por esse momento. Eles pegavam os papéis menores, normalmente de empregada e secretária, e colocavam as comediantes. A comediante já nasce com o dom de pegar um limão e fazer uma limonada. É a nossa sina. Meu papel foi ganhando muita força. Ficava ali tentando muito, a Vera Holtz (que vivia a patroa Sirleia) me ajudava, me dava falas dela. A Gabriela e a Regina Duarte (protagonistas da trama) entravam em cena e me incluíam. Esse papel que tenho hoje, da musa, há 10 anos jamais seria de uma comediante. Quando comecei a fazer De Pernas Pro Ar, havia poucas protagonistas mulheres nos filmes. Tinha Gloria Pires, Lilia Cabral… Na minha idade, eram poucas. E olha agora quantas mulheres estão protagonizando filmes! O papel da mulher no humor foi mudando conforme as mulheres foram ganhando voz em seus lugares de fala, de chefia. Os diretores foram se transformando em diretoras também. Uma nova geração de homens foi surgindo, menos machista. Claro que isso também é graças a quem veio antes, como a Dercy Gonçalves, que colocava o pé na porta e somente aceitava ser protagonista.
Como você percebe esse momento em que pessoas como nós estão ganhando destaque na publicidade, na TV?
Quando comecei a ser atriz, queria muito fazer comercial. Lembro que assistia e eram sempre mulheres muito bonitas, protagonistas de novela numa banheira de espuma. Pensava que jamais ia cair ali. Hoje, faço muita publicidade e não sou mais uma garota. O perfil mudou. Cada vez mais, o mundo está caminhando para o real. A beleza real, a mulher real. A mulher pode ser o que ela é, não precisa mais correr atrás de um padrão. Cada vez mais, isso vai estar na moda: a autoaceitação, o body positive. E tudo isso se reflete na publicidade, no humor, nos papéis… Claro, me preparei (para Bom Sucesso), estou malhando pra caramba, emagreci, mas porque o papel é de uma atriz que faria isso tudo. A personagem tem silicone, e eu não tenho (risos), então tive que colocar peito de mentira… Mas todo mundo sabe que a minha história, tudo o que eu escrevo, que faço, é identificação. Fiz um programa no GNT chamado Mulheres Possíveis, e acabei construindo minha carreira em cima dessa mulher possível. E a mulher possível pode ficar gostosa se quiser.
Sua personagem em Bom Sucesso não parece ter problema nenhum de autoestima. E você, já teve?
Todo mundo já passou por uma fase. Difícil ter autoestima alta a vida toda. Tive, como qualquer pessoa. Vim de Goiânia, com 13 anos, de uma cidade pequena… Já tive muita acne, quando era pequena, eu era muito magra. Nunca fui uma criança ou uma adolescente no padrão. Nem do padrão da minha cidade. Todas as crianças tocavam piano, dançavam balé... Eu era ruim no piano, era ruim no balé. Sempre me senti fora do padrão, física e emocionalmente. Hoje, com esse novo olhar que temos para as crianças, percebemos que, às vezes, a criança só é diferente. Não quer dizer que ela é melhor ou pior. Até entender que o seu melhor é o jeito que é, você fica a vida inteira tentando entrar no padrão. Quando comecei minha carreira, a televisão tinha um padrão. E eu não fazia parte dele. Foi todo um processo de criatividade e terapia para a gente se gostar do jeito que a gente é.
Cada vez mais falamos das mulheres ageless, e de como idade é só um número para elas. Você se identifica com esse conceito?
Me identifico total! Como a gente se sente é diferente de como veem a gente. Minha mãe tem 72 anos, é advogada, vai todos os dias trabalhar. Viaja para caramba, é cheia de amigos. Tem um olhar sobre ela que é diferente do que os outros pensam. “Ah, mas é uma senhora”. Claro que é uma pessoa mais velha, mas esse conceito mudou. Os 50 são os novos 40. Engraçado que isso é sempre em cima da mulher. Temos que parar com esse conceito.
Falando de maternidade, no lançamento do filme Fala Sério, Mãe! (2017), você disse que toda vez que nasce uma mãe, nasce uma neurótica. Que neuroses permanecem, quais foram aposentadas?
A gente fica muito à flor da pele. Muda muito o conceito do que é importante ou não. Voltei a trabalhar muito rápido, e tive problemas para amamentar. Tinha na minha cabeça que, se não amamentasse, seria uma fracassada, e, ao mesmo tempo, não queria dar complemento porque achava que não era uma coisa natural. Vamos criando tantas coisas na cabeça, sendo que, às vezes, a simplicidade é o mais fácil. A maternidade é uma coisa complexa, principalmente para a mulher. Essa matemática de trabalho x filho x marido x se cuidar ainda não fechou. Parece que estamos sempre faltando em algum lugar. “Nesta semana, faltei com o marido. Na passada, faltei para cuidar de mim. E na outra, faltei com minha filha”. A real é que não dá para fazer tudo mesmo.
O terceiro De Pernas pro Ar enfrentou um problema por conta das salas que deixaram de exibi-lo, em função dos Vingadores. A discussão da Cota de Tela, regra que fixa percentuais obrigatórios para a exibição de filmes nacionais, aguarda a assinatura do Executivo há quase um ano. Como você vê esse embate?
A maioria dos países de primeiro mundo tem a Cota de Tela. É claro que tem Vingadores, ninguém aqui está dizendo que é contra super-heróis. Só de levar as pessoas ao cinema, é incrível. Mas não dá para ter oito salas de cinema passando o mesmo filme gringo. É uma desvalorização da nossa própria cultura. E, além de tudo, o De Pernas pro Ar estava dando bilheteria. Se falarmos do mundo capitalista, o filme cumpriu a chamada cota da virada (quando o filme segue sendo exibido por mais uma semana), fez R$ 1 milhão em nove dias e foi arrancado das salas. Cresceremos ouvindo sempre cinema em outra língua? Temos batalhado para fazer filmes de qualidade e não tem sala? Isso é um assassinato da própria cultura. É contra a gente mesmo. É uma falta de estima do seu próprio país, de sua própria língua. Se você vai à França, o Vingadores está passando lá, mas o filme francês não vai sair de cartaz.
Você é uma atriz que cria seus próprios projetos, como a série Viver do Riso. Como é trabalhar dessa forma?
Minha carreira sempre foi assim porque a gente não tinha trabalho tão fácil. Não tinha tanto espaço por ser comediante e por ser mulher, então tivemos que criar, desde novas. O humor foi muito masculino e muito machista durante muito tempo. As mulheres aprenderam a sobreviver criando a própria história. Só consegui chegar onde cheguei porque criei minha própria história. Isso virou, de certa maneira, meu maior prazer. Tenho uma ideia, faço e procuro parceiros que possam realizar. E não abro mão. Sou contratada da Globo, faço e adoro fazer novelas. Mas meus filmes vão ser cada vez mais autorais.
Qual o gosto de ter esse poder sobre sua carreira?
Nem sei pensar minha carreira de outra maneira. Me acostumei, desde nova, a ter que inventar minha própria carreira. Nem sei como é não ser assim. Acho maravilhoso ser independente, não ter que esperar alguém chamar você, poder criar sua própria história. Isso é uma coisa que vou ensinar para minha filha.
Sobre o que você jamais faria piada?
Defeito alheio, fraqueza dos outros, doenças. Nada que diminua o outro. Não acho graça. Prefiro primeiro tacar a torta na minha cara do que na do outro. Qualquer coisa que seja depreciativa, não acho graça. Mas tem gente que acha. Acredito no humor de identificação. Essa coisa depreciativa não me interessa. O meu humor é aquele: “Nossa, sou igual!”.