No início da década de 1960, Dona Dalva era uma professora ocupada em alfabetizar alunos em dois colégios, além de criar seis filhos. Casada com Kleber, engenheiro da prefeitura de Pelotas, vivia uma rotina aparentemente tão convencional quanto à de qualquer família de classe média da cidade. Não podia imaginar que na década seguinte seus descendentes começariam a mudar os rumos da música popular no Rio Grande do Sul, deixando seu sobrenome marcado de maneira incontornável na cultura local.
Aos 91 anos, ela verá na próxima semana todos os músicos da família reunidos pela primeira vez em um palco para um show coletivo. Casa Ramil celebra as quatro décadas de dedicação do clã à canção popular, com sete membros tocando e cantando ao vivo: Kleiton, Kledir, Vitor, Ian (filho de Vitor), João (filho de Kledir), Gutcha e João (filhos de Katia, irmã que não enveredou pela música). O espetáculo estreia na terça-feira, no Theatro Guarany, em Pelotas, e segue para uma temporada de quinta a domingo no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. E não deve parar por aí, como explica Kledir:
— Queremos levar esse show a outras capitais, mas será preciso conciliar com os projetos que cada um tem. Também vamos gravar a apresentação no Theatro São Pedro. Quem sabe isso pode se tornar um CD ou DVD ou até integrar um filme sobre a família. É algo que está começando. Aos poucos, veremos como será possível continuar.
O envolvimento dos familiares com o espetáculo vai além da música. Para situar o leitor, é preciso citar que Dalva e Kleber tiveram seis filhos: Kleber, Kleiton, Kledir, Branca, Katia e Vitor. Além de Kleiton, Kledir e Vitor, Branca é uma das principais peças do Casa Ramil, sendo idealizadora e coordenadora geral, tendo Kaio Ramil (filho de Kleiton) como braço direito. Também há projeções de vídeo da artista visual Isabel Ramil (filha de Vitor), responsável pela iluminação, em parceria com o tio Marcelo Linhares (marido de Branca). Filha de Kleiton, Karina Ramil, atriz do coletivo carioca Porta dos Fundos, é a responsável pela direção de cena. Já o projeto gráfico é assinado por Chris Ramil (filha de Kleber), Isabel e Mariana Barbieri.
Parece difícil acreditar, mas antes da chegada dos filhos de Dalva e Kleber, os Ramil não tinham qualquer tradição musical. Há notícias de um primo de Dalva, clarinetista e boêmio incorrigível, e também de um parente distante, exímio intérprete de Bach, mas também uma figura de talentos quase ilimitados, o médico e Prêmio Nobel da Paz Albert Schweitzer (1875-1965).
Mais do que em um ambiente de música, crescemos em um ambiente de educação, de valorização do aprendizado
KLEDIR
A história da família começou a mudar com uma atitude simples e despretensiosa do casal. Eles resolveram matricular os filhos em aulas de música, como parte de uma formação educacional a mais ampla possível. Kléber, o primogênito, passou a aprender acordeom, instrumento bastante popular à época, ainda não associado à música regional.
Já Kleiton se dedicou ao violino, Kledir, ao violão, e assim por diante.
Quando os pais perceberam, os filhos já estavam compondo canções, tocando e cantando juntos.
— Ao chegar da minha primeira aula de violão, o Kleiton estava me esperando ansioso. Queria saber como tinha sido. Eu havia aprendido uma música, que ensinei a ele na hora. Até hoje brinco que fui o professor de violão dele — conta Kledir.
A casa foi aos poucos se enchendo de instrumentos.
— Lá em casa, um violão não ficava meia hora parado sem ninguém pegá-lo para tocar — lembra Vitor.
Vitor é cerca de uma década mais jovem do que Kleiton e Kledir, e cresceu vendo os irmãos metidos em projetos que mudariam a história da música popular no Rio Grande do Sul. Os Almôndegas, banda que integraram entre 1971 e 1979, foi uma das pioneiras na integração de ritmos regionais com a MPB e o rock. Já na dupla Kleiton & Kledir, a partir de 1980, foram convertidos em sucesso nacional, com hits como Vira Virou, Deu Pra Ti e Paixão, excursionando por todo o país até hoje.
O pai dos jovens talentos não encarou sem preocupação a guinada dos filhos para uma carreira incerta como a musical. Quando matriculou a turma em aulas de música, não esperava que a atividade se tornasse um ganha-pão. No início da idade adulta, Kleiton e Kledir foram morar em Porto Alegre, na casa de uma tia, para cursar Engenheira – Kleiton na Eletrônica; Kledir na Mecânica. Mas os Almôndegas, banda que nasceu de uma convivência musical entre amigos, foi tomando dimensões cada vez maiores.
— No início, o pai tinha certa resistência com os Almôndegas. Por outro lado, desenvolveu um carinho especial pelo grupo. Quando soube que íamos fazer o último show do grupo, ficou comovido. Veio de Pelotas a Porto Alegre para assistir. Quando chegou à porta do Araújo Vianna, ninguém sabia quem ele era. Ele falou “sou o pai dos guris!” e foi entrando sem cerimônia — recorda Kleiton.
Kleiton não conseguiu pegar o diploma de engenheiro, pois estava tocando em um festival fora da cidade – pediu a uma namorada que fosse buscar o canudo. Já Kledir lembra que, depois de pegar o papel, foi mostrá-lo à família:
— Disse aos meus pais que ali estava o diploma, que então me sentia livre para me dedicar ao que eu queria, que era a música.
Além de Engenharia, os irmãos também cursaram na mesma época Composição e Regência Musical.
— Mais do que em um ambiente de música, crescemos em um ambiente de educação, de valorização do aprendizado — avalia Kledir.
Apesar de não ser músico, o patriarca foi uma referência importante de sensibilidade estética. Além de oportunizar aulas em conservatório para os filhos, tinha uma coleção de discos em casa e dançava tango como poucos na cidade. Não era raro que ele e Dona Dalva recolhessem o tapete da sala e exibissem seus passos para a turma. Nascido em Montevidéu, filho de um espanhol da Galícia, mudou-se com a família aos 12 anos para Pelotas, mas conservou intacto seu amor pela cultura platina. Gostava de viajar com a família para o Uruguai e se comovia até as lágrimas ao ouvir ou cantar algum tango.
— O pai era cara meio fechado, silencioso, mas também muito emotivo. Ele começava a cantar um tango e, lá pelas tantas, chorava. Nunca vi ele terminar um tango, pois se comovia antes do fim. Dançando, ele também ficava com os olhos marejados. A música era um canal de emoção muito forte para ele. A experiência de ver meu pai cantar e chorar sempre me fez pensar que minha música tinha que ter esse poder de comover, de ser profunda — conta Vitor.
Nos ensaios para Casa Ramil, foi possível comprovar que Vitor conseguiu compor obras tão comoventes quanto os tangos que o engenheiro Kleber cantava.
— Em muitos momentos dos ensaios, a emoção é grande. Uma música é capaz de nos fazer chorar. Satolep, por exemplo, é uma canção do meu pai que me toca muito — diz Ian.
Pelotas, que deu origem ao palíndromo Satolep, é ainda o centro afetivo da família. Vitor mantém lá sua morada, na casa em que cresceu. Além disso, o Natal é geralmente celebrado no Laranjal, em uma casa de veraneio dos Ramil.
— Minha referência de praia sempre foi o Laranjal. Há um esforço de todos para ir até lá no Natal, mesmo a parte da família que mora no Rio. Isso gera uma união muito grande. Meus primos são para mim como irmãos — afirma Thiago.
Para os ensaios de Casa Ramil, a família está reunida desde o início do mês em Porto Alegre, onde moram Thiago, Gutcha e Ian — Vitor veio de Pelotas, enquanto Kleiton, Kledir e João saíram do Rio. Um tempo mais longo de convivência e de ensaios se justifica porque, longe de ser um espetáculo em que cada um apresenta suas músicas em separado, o show coloca todos no palco em interação o tempo inteiro. Isso só é possível com a criação coletiva de novos arranjos para cada uma das canções apresentadas.
A experiência dos mais velhos e a energia dos mais jovens ajudam nesse processo, mas há desafios novos em trabalhar com tanta gente próxima.
— É bem diferente de tocar com um músico que não é da família. Às vezes, uma discussão sobre um acorde em uma música pode levar a uma discussão de 20 anos atrás. Além disso, não há hierarquia, tudo é debatido entre todos — conta Ramil.
A linhagem Ramil também é um espelho de como o Rio Grande do Sul conseguiu se adaptar às mudanças da indústria musical. Kleiton & Kledir espelham o apogeu das grandes gravadoras. Lançaram discos com largas tiragens e se mudaram para o Rio, onde as corporações do disco tinham seus escritórios. Já Vitor Ramil conheceu as engrenagens das gravadoras multinacionais, lançando discos pela Som Livre e EMI nos anos 1980, mas passou a lançar seus álbuns por um selo próprio a partir de Ramilonga – A Estética do Frio, disco que também inaugura uma sonoridade própria. De Pelotas, sedimentou uma carreira independente e passou a usar novas ferramentas para empreender seus projetos, como o microfinanciamento pela internet, o chamado crowdfunding.
Já Ian e Thiago começaram a expor sua música a partir de shows coletivos, como o Escuta: o Som do Compositor, em Porto Alegre. Da mesma maneira que Vitor, também usaram ferramentas como o crowdfunding para lançar seus discos e também contaram com pequenos estúdios para captar suas faixas. Ian inclusive gravou seu segundo álbum, Derivacivilização (2015), na casa do pai, em Pelotas. O resultado agradou o público e igualmente a crítica especializada – o álbum ganhou o troféu Grammy Latino na categoria de melhor álbum de rock em português. Aliás, a ala jovem dos Ramil é boa de Grammy: Leve Embora (2015), primeiro e (até agora) único disco de Thiago, também foi indicado ao prêmio.
Renovação e reverência
Um jovem artista é muitas vezes julgado pela capacidade que tem de inovar ou até romper com a tradição, com o que já está estabelecido em seu campo de atuação. No entanto, ser reverente à geração anterior não parece ser um problema para os compositores Ian e Thiago.
— Nossos trabalhos são tão diferentes que não dá para ficar comparando – avalia Ian.
— Sinto mais um ambiente propício para desenvolver meu trabalho do que uma sombra de quem veio antes — diz Thiago.
João, que já compôs algumas canções ao longo da adolescência, mas não incluirá nenhuma no show, também demonstra admiração pela história dos familiares:
– Estou refletindo sobre o que tenho a dizer, de qual é o meu papel onde estou inserido, antes de voltar a compor. Se essa volta acontecer, tenho certeza de que estou no melhor lugar, cercado das pessoas mais certas.
No ensaio, João tem servido como um apoio para Gutcha, a percussionista da família. O jovem aponta que ela é importante fator renovador do espetáculo:
— Tudo está ganhando uma nova identidade, e muito disso se deve ao trabalho de pesquisa da Gutcha, que está trazendo novos ritmos e timbres.
Formada em Ciências Sociais pela UFRGS, com mestrado em antropologia, Gutcha pesquisa a música e suas implicações sociais em diferentes comunidades com o grupo Três Marias. Ela é a primeira mulher da família a sair da plateia ou dos bastidores dos espetáculos para a linha de frente. Não é por falta de conhecimento que as Ramil demoraram a tomar o microfone.
— Sempre via minhas tias cantando, e minha mãe é a cantora mais afinada que conheço. Mas não é por acaso que as mulheres da casa ficaram nessa posição. O machismo nunca impediu nenhuma delas de aprender ou tocar música lá em casa. Mas estamos cercados por um mundo que coloca as mulheres em algumas posições e não em outras – observa Gutcha.
Além dos novos timbres trazidos por Gutcha, o espetáculo traz mais sonoridades incomuns, como um harmônio, tocado por Ian, e até um instrumento recém inventado por Vitor Ramil. A novíssima “raviola” consiste em uma viola de 10 cordas, com braço semelhante ao da caipira, mas corpo inspirado nos violões Martin, que o músico é acostumado a usar no palco.
— Estou muito empolgado com esse projeto, porque estamos desenvolvendo um som muito especial. Está me lembrando muito o início de nossa carreira, com os Almôndegas – compara Kledir.
De volta ao início, os Ramil com mais anos de estrada sentem o novo show como uma experiência renovadora.
— Ao longo das décadas, a gente cria dinâmicas de trabalho que funcionam, mas que também podem acomodar um artista. Conviver com essa gurizada está sendo bom para desacomodar tudo isso. O Casa Ramil está sendo para todos uma experiência profunda e transformadora — avalia Kleiton.
Pelo peso que a família já demonstrou ter na cena do Estado, esta deve ser também uma experiência transformadora para a música popular gaúcha.
Serviço
Na terça-feira, às 21h
Theatro Guarany (Lobo da Costa, 849), em Pelotas
Ingressos a R$ 160
Ponto de venda: Ótica Cristal (Sete de Setembro, 303), de segunda a sexta, das 9h às 12h e das 13h30min às 19h, e sábado, das 9h às 18h
De 22 a 24 da março, às 21h, e 25 de março, às 18h
Theatro São Pedro (Marechal Deodoro, s/ nº), em Porto Alegre
Ingressos a R$ 150 (plateia e cadeira extra), R$ 130 (camarote central), R$ 80 (camarote lateral) e R$ 80 (galerias)
Ponto de venda: Bilheteria do Theatro São Pedro, de segunda a quarta-feira, das 13h às 18h30min; quinta e sexta, das 13h até o horário de início do espetáculo; e sábado e domingo, das 15h até o horário de início do espetáculo