A primeira médica da família. A primeira empresária. A primeira universitária. A primeira Miss Brasil negra. Cada vez mais mulheres negras driblam o destino reservado para tantas outras que vieram antes delas. Têm o desafio de conquistar espaço em um país em que elas ganham 44% da renda dos homens brancos e são vítimas de uma violência de gênero que cresce mais do que entre as brancas.
Leia os outros depoimentos da reportagem
:: “O negro precisa se ver em posições de destaque”, diz Deise Nunes
:: “Minha trincheira é no consultório”, diz pediatra negra formada há 45 anos
:: Estudante negra conta como é ser a primeira universitária da família
Filhas de empregadas domésticas, cozinheiras ou lavadeiras, Isabel dos Santos, 72 anos, Onília Araújo, 45, Deise Nunes, 51, e Karolina Silva de Jesus, 22, abriram portas para que outras mulheres do seu entorno se permitam sonhar e se tornem protagonistas de sua própria narrativa.
Essa também era uma das bandeiras da escritora americana Maya Angelou, ativista e intelectual negra, falecida em 2014, aos 86 anos. No livro Carta a Minha Filha, ela, que deu à luz um menino, se dirige às suas “milhares de filhas”, “negras e brancas, gordas e magras, gays e héteros”, para compartilhar as lições de quem ousou em toda sua trajetória – de vida e de luta. A segunda edição da obra foi lançada no Brasil neste ano pela editora Agir, com prefácio inédito da autora mineira Conceição Evaristo, que define o livro como uma “louvação à vida”.
Na carona de Maya, para marcar o mês da Consciência Negra, Donna convidou quatro mulheres para revisitarem suas memórias e compartilharem com nossas leitoras os caminhos que as levaram a realizar sonhos. A seguir, confira o relato de Onília Araújo, 45 anos, a primeira empresária da família e uma das diretoras da Associação Gaúcha de Afroempreendedores.
“Não há problema em querer mudar de patamar”
“Ao olhar para trás, vejo que me fez falta ter uma autoestima elevada. Nunca me achei bonita na adolescência, e a gente sabe como isso faz diferença quando tu acessas certos espaços e te colocas em rodas de conversas. Eu cresci introjetada. Vocês, meninas negras de hoje, estão mais empoderadas. E acredito que, em parte, seja resultado desse novo mercado voltado para a nossa pele e os nossos cabelos.
Nós, negros, nos acostumamos a sobreviver. Se a gente sobrevive, acha que já está no topo da cadeia. Mas não há problema em querer mudar de patamar. E, para isso, é preciso ter ambição.
Nós, negros, nos acostumamos a sobreviver. Se a gente sobrevive, acha que já está no topo da cadeia.
ONÍLIA ARAÚJO
Empresária
Empreender não foi uma escolha na minha vida inicialmente. Ainda na escola, minhas colegas brancas conseguiam emprego e eu não. Fiz vários cursos para aumentar minhas chances, e um deles foi de garçonete de primeira categoria. Logo, comecei a trabalhar em eventos. Era um trabalho autônomo, e eu peguei gosto pela liberdade de ganhar o meu dinheiro – inclusive ganhava mais do que as amigas que trabalhavam no comércio. Gostei tanto que larguei a escola depois de concluir o primeiro grau (atual Ensino Fundamental).
Mas eu sempre tive uma mãe muito forte, e nunca esqueço do dia em que ela me olhou triste quando eu voltei de um desses eventos noturnos, um ambiente nada acolhedor para uma adolescente. Larguei a noite e voltei a estudar.
Entrei na antiga escola técnica da UFRGS pra fazer o segundo grau (atual Ensino Médio) em secretariado e tive a oportunidade de trabalhar em uma rede de hotelaria familiar. O casal, que até hoje mantém o negócio, vivia me incentivando: ‘Tu és tão inteligente, por que não entra na faculdade?’. Eu respondia que aquilo não era pra mim. Eu já estava no topo da cadeia, teoricamente. Já vivia melhor do que a maioria das pessoas à minha volta. Trabalhava de segunda a sexta, tinha um salário fixo, já tinha até comprado um carrinho usado, estava feliz.
Mas eles insistiram e pagaram o cursinho pré-vestibular. E, em 2003, eu passei em Contabilidade na UFRGS – e pedi demissão! Porque eu já sabia que teria o meu escritório. Até hoje, eles são os meus mentores, e eu tenho a mesma política de ajudar no custeio dos estudos das minhas funcionárias. Abri a sociedade um pouco antes de me formar, em 2007. Hoje, sou a única dona da empresa, temos 150 clientes, e estamos presentes em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo.”