Celebrado nesta quarta-feira (20), o Dia da Consciência Negra é marcado por festividades e rodas de conversa sobre as conquistas e as condições de vida da população negra em todo o país. E foi no Rio Grande do Sul, a segunda unidade federativa mais branca do Brasil, atrás somente de Santa Catarina, de acordo com o Censo de 2010, que nasceu o movimento que levou à criação da data.
Apesar da ditadura militar, com o cenário nada propício para pequenas aglomerações públicas, quatro universitários negros tinham como ponto de encontro habitual, no ano de 1970, a Esquina Democrática, em Porto Alegre, onde falavam sobre assuntos do cotidiano e negritude. Desses bate-papos casuais, Oliveira Silveira, Ilmo da Silva, Vilmar Nunes e Antônio Cortês sentiram necessidade de criar uma data que resgatasse a identidade negra, já que não enxergavam legitimidade na Lei Áurea, de 13 de maio de 1888.
— Não negamos a história, mas, nas minhas pesquisas, vi que a lei da abolição da escravatura era composta por dois artigos: um que extinguia a escravidão no país e outro que revogava as disposições contrárias. Em nenhum momento, foi apontado o que aconteceria com os negros libertos — destaca Cortês, advogado e um dos fundadores do Grupo Palmares.
O nome do coletivo é uma alusão ao quilombo homônimo - espaço de resistência de escravizados durante mais de um século, no período colonial -, e as reuniões eram dedicadas à leitura e discussão de textos acadêmicos e literários de intelectuais negros, invisibilizados em escolas e universidades.
— Em 20 de novembro de 1971, nos reunimos no Clube Náutico Marcílio Dias, um dos poucos clubes negros de Porto Alegre. Conversamos por horas sobre a trajetória de negros e escravizados no país, lemos poemas e discutimos textos de outros pensadores negros como Adbias Nascimento e Solano Trindade. Assim, com a presença de 20 pessoas, tivemos o que depois se transformaria no Dia da Consciência Negra — conta o advogado.
Em 1973, a proposta do grupo de estudantes gaúchos percorria o país, graças a uma nota publicada no Jornal do Brasil. Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) adotou o dia batizando-o como é conhecido atualmente e, quase nesta mesma época, o Grupo Palmares encerrou suas atividades.
Feriado
Decretado feriado em todos os municípios do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o dia não vingou na sua cidade berço.
O imbróglio começou em 2003, quando o projeto do então vereador Haroldo de Souza - aprovado na Câmara Municipal de Porto Alegre e, posteriormente, sancionado pela prefeitura - foi barrado pelo Tribunal de Justiça do Estado a pedido de ação movida pela Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Federasul).
Em 2015, o delegado Cleiton de Freitas, na época vereador, voltou ao tema. Na primeira tentativa, o projeto foi negado por extrapolar o número de quatro feriados municipais religiosos previstos em lei. Este item, que tornava o projeto inconstitucional, foi corrigido em uma segunda redação, explica Freitas, atual vice-presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul (Asdep):
— No novo projeto, o feriado de Finados não deixaria de existir, já que é nacional. Contudo, seria substituído pelo da Consciência Negra e da Difusão da Religiosidade dentro do calendário da cidade. Assim, ficaríamos dentro do limite de quatro feriados municipais religiosos.
Aprovada e sancionada, a iniciativa foi barrada novamente. Desta vez, o Sindicato dos Lojistas do Comércio de Porto Alegre ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade alegando que "o feriado não é religioso e, ao proibir o trabalho na data, interfere nas relações de trabalho". Em nota, o presidente da entidade, Paulo Kruse, diz que apoia as homenagens e o Dia da Consciência Negra, mas questiona a antiga decisão de tornar o 20 de novembro feriado. "Prejudicaria os pequenos comerciantes", diz o texto.
Em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o caso e extinguiu o feriado do Dia da Consciência Negra na Capital.
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Lúcio Almeida critica a decisão do TJ-RS e do STF e afirma que a última redação do projeto do delegado Cleiton de Freitas se encaixa no quesito homenagem ao dia de guarda. Ou seja, datas de grande importância para determinada religião, quando as pessoas se dedicam a oração, celebração de ritos, comemorações ou reflexão.
Ele ressalta que é uma lástima Porto Alegre não ter um dia para debater o processo escravocrata e suas consequências:
— Isso se torna ainda mais problemático quando lembramos que foi aqui que o movimento nasceu e que esta é a cidade com maior índice de desigualdade no Brasil. São motivos que reforçam que é preciso instituir esta memória — diz Almeida, citando o relatório Desenvolvimento Humano para Além das Médias, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2017.
Desenvolvimento
Segundo o documento, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) da população negra na capital gaúcha é de 0,705, enquanto o da população branca é de 0,833. Ou seja, uma diferença de 18,2%, sendo que a média nacional é de 14,42%.
Almeida aponta como alternativa ao empasse a aprovação da lei federal 296/15, que estabelece o feriado do dia 20 de novembro. Em outubro de 2017, o projeto que institui o Dia da Consciência Negra como um dos feriados nacionais foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, mas não foi levado a plenário na Câmara dos Deputados até hoje.