A primeira médica da família. A primeira empresária. A primeira universitária. A primeira Miss Brasil negra. Cada vez mais mulheres negras driblam o destino reservado para tantas outras que vieram antes delas. Têm o desafio de conquistar espaço em um país em que elas ganham 44% da renda dos homens brancos e são vítimas de uma violência de gênero que cresce mais do que entre as brancas.
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Filhas de empregadas domésticas, cozinheiras ou lavadeiras, Isabel dos Santos, 72 anos, Onília Araújo, 45, Deise Nunes, 51, e Karolina Silva de Jesus, 22, abriram portas para que outras mulheres do seu entorno se permitam sonhar e se tornem protagonistas de sua própria narrativa.
Essa também era uma das bandeiras da escritora norte-americana Maya Angelou, ativista e intelectual negra, falecida em 2014, aos 86 anos. No livro Carta a Minha Filha, ela, que deu à luz um menino, se dirige às suas “milhares de filhas”, “negras e brancas, gordas e magras, gays e héteros”, para compartilhar as lições de quem ousou em toda sua trajetória – de vida e de luta. A segunda edição da obra foi lançada no Brasil neste ano pela editora Agir, com prefácio inédito da autora mineira Conceição Evaristo, que define o livro como uma “louvação à vida”.
Na carona de Maya, para marcar o mês da Consciência Negra, Donna convidou quatro mulheres para revisitarem suas memórias e compartilharem com nossas leitoras os caminhos que as levaram a realizar sonhos. A seguir, confira o relato de Deise Nunes, a primeira Miss Brasil negra. O título foi conquistado em 1986, e hoje ela é dona de uma escola de modelos em Porto Alegre.
“Fiz algo inédito”
“Demorou para minha ficha cair. Ganhei o Miss Brasil em 1986 depois de 15 dias de confinamento e, no dia seguinte ao concurso, já tive de cumprir uma série de compromissos. Lá pelo terceiro dia, entendi a importância do título. A primeira Miss Brasil negra. ‘Meu deus, fiz algo inédito’, me dei conta.
Durante o concurso, nunca senti preconceito. Onde eu chegava, era bem tratada. No meu dia a dia, jamais me privei de ir a nenhum lugar. Tem gente que deixa de ir a certos locais ‘porque é lugar de rico’. Quem foi que disse? Quem tem educação e sabe se portar pode ir onde quiser. Essa postura de segurança é uma lição que aprendi com minha mãe. Ela sempre foi guerreira e não aceitava ser mandada por ninguém. Lavava roupa pra fora, mas tu achas que isso a diminuía? Não, pelo contrário. ‘É assim que sustento minha filha, por que vou ter vergonha?’, dizia.
Tem gente que diz ‘Ah, que mimimi’. Pode ser para quem nunca sofreu discriminação. Para quem já passou por isso, não é vitimismo. O negro precisa se ver em posições de destaque.
DEISE NUNES
Primeira Miss Brasil negra
Foi ela quem me incentivou quando eu pensei em desistir da carreira de modelo. Eu tinha 16 anos, fotografava desde os 14 e recém tinha ganhado o título de Rainha das Piscinas em 1984. O desfile tinha sido num sábado e, na segunda-feira, fui à Biblioteca Pública, no centro da cidade, fazer uma pesquisa pro colégio.
Na Rua da Praia, um casal caminhava à minha frente. Eles conversavam sobre o concurso, e a menina comentou: ‘Tu vê, no meio de tanta loira, foi ganhar justo uma negra’. Aquilo ali me deu uma coisa tão ruim... Na hora, eu pensei: ‘Puxa, por que as pessoas me julgam por causa da minha cor?’. Cheguei em casa e disse para minha mãe que não queria mais saber de concurso de beleza. Só que ela não me ouviu e me inscreveu no Miss Rio Grande do Sul. Ela costumava dizer que, se esse era o meu sonho, nós íamos trabalhar para realizá-lo.
Para quem passa por discriminação, eu digo: não dê bola e siga em frente. Sei que não é fácil. Mas o mercado publicitário está mais favorável. Hoje, nós temos muitos comerciais com pessoas negras, muitos mais do que quando comecei. Ainda não é o ideal, mas já demos um passo enorme em vários setores.
Ora, na minha época de menina, só tinha uma pessoa negra na televisão, a Glória Maria. Hoje Taís Araújo apresenta programa de televisão aos domingos, e Maju é âncora do Jornal Hoje. Isso é importante! Tem gente que diz ‘Ah, que mimimi’. Pode ser para quem nunca sofreu discriminação. Para quem já passou por isso, não é vitimismo. O negro precisa se ver em posições de destaque.”