Em uma semana, ela vai pisar no campo mais uma vez para defender a Seleção Brasileira de futebol. A Copa do Mundo, que ocorre na França neste ano, será uma nova competição com a camisa canarinho na longa lista de Andressinha.
Com 24 anos, a gaúcha Andressa Cavalari Machry tem currículo de veterana. São seis convocações para Mundiais – duas pela sub-17, duas pela sub-20 e duas pela principal –, além da Olimpíada de 2016. A meio-campista tem ainda quatro títulos da Sul-americana sub-17 e sub-20 e foi campeã da América com a equipe principal duas vezes.
A história de Andressinha no futebol começou cedo. Ainda criança batia bola todo santo dia com os guris. O pai, Elizeu, ia vender cachorro-quente na Praça Tiradentes, no centro de Roque Gonzales, noroeste do Estado, e ficava de olho na filha. Para garantir um lugar na brincadeira, Andressinha levava a bola. Volta e meia, a dona da bola ia na direção do pai choramingando, com os joelhos ralados e a pelota, murcha, debaixo do braço.
– A quadra é de cimento e pedras. A cada duas semanas, lá ia eu comprar uma bola nova – lembra o Elizeu.
Em outras vezes, o olhar cabisbaixo era por conta das asneiras que ouvia, como a clássica “futebol não é coisa de menina”. Não foi preciso muito tempo para provar que habilidade não tem gênero.
O primeiro a perceber o potencial da menina foi o pai, a quem Andressa acompanhava nos jogos varzeanos dos quais ele participava. A falta de espaço para uma menina se dedicar ao futebol não foi desculpa para desmotivar a filha. Quando ela tinha oito anos, Elizeu sugeriu colocá-la em um time de futsal masculino para disputar um torneio organizado pela prefeitura. Houve resistência dos pais dos atletas, conta.
– Eles diziam ter medo de que ela se machucasse. Mas eu me responsabilizei e aceitaram – lembra ele, que treinava o time na época.
Andressinha não só não se machucou como fez gols, e o time ganhou o torneio. Pai e filha se empolgaram, mas era preciso driblar a falta de oportunidades para que a menina seguisse praticando.
A solução: montar um time de futebol feminino. Treinada por ele, a equipe levava o nome da Pousada do Elizeu, negócio que a família toca ainda hoje. Como pai, Elizeu faz o estilo coruja. Já como treinador...
– Ele era muito chato (risos). E eu, boba, achava que era a melhor do mundo. Quando fazia graça, driblava todo mundo, não passava a bola, ele me colocava no banco. Seu jeito duro me ensinou a ter disciplina e hoje agradeço a ele – diz Andressinha.
A atleta destaca o apoio da família, fundamental para lidar com o machismo, e conta que sua carreira aconteceu “naturalmente e muito rápido”. Rápido demais para a família, que, há 10 anos, lida com a saudade da filha única. A mãe, Adriana, ria das goleadas que o time do Elizeu tomava lá no início e confessa que não acreditava que a paixão pelo futebol se transformaria em coisa séria. Já o pai vislumbrava uma carreira:
– Imaginava que, aos 18 anos, ela sairia de casa para investir no futebol profissional.
Estava quatro anos atrasado. Aos 14, a gauchinha foi morar em Caçador (SC), onde ficou por quatro temporadas no Kindermann. Antes, já havia disputado o Gauchão de 2009 pelo Pelotas. Ainda morando com a família, viajava quase 600 quilômetros para comparecer aos treinos. Tudo começou em uma seletiva que a revelou aos olhos de Marcos Planela Barbosa, coordenador-geral de futebol feminino do Pelotas. Na época auxiliar-técnico da Seleção sub-17 feminina, ele buscava atletas a partir de 16 anos para disputar os mundiais sub-17 e sub-20, mas não pôde ignorar a garota com então 13 anos que deu um baile nas outras candidatas. Assim, Andressinha foi convocada para a Seleção sem ao menos ter um time oficial.
Além da competência técnica, Planela destaca a inteligência de Andressinha, sua capacidade de leitura de jogo e desenvoltura para se expressar, habilidades que lhe renderam a braçadeira de capitã nas equipes sub-17 e sub-20. Mesmo com tantas viagens para jogar desde cedo, ela terminou o Ensino Médio sem repetir de ano. Chegou a ingressar na faculdade de Educação Física, mas teve de trancar. Centrada e muito próxima da família, Andressinha é o tipo de atleta a se admirar, segundo Planela. É comum chegar na sua casa e encontrá-la de chinelos, brincando com os cachorros, conta ele, que virou amigo dos Machry, com quem passa as festas de fim de ano:
– As meninas não têm que se espelhar no futebol masculino, nas estrelas que fazem o perfil baladeiro. Quantos meninos são iludidos na esperança de se tornar o novo Neymar e acabam largando a escola?
Para viver do futebol, a gaúcha trilhou o caminho de tantas outras craques brasileiras, como Marta – estrela do Orlando Pride, nos Estados Unidos –, e hoje joga no Exterior. Andressinha é meia no Portland Thorns, no Estado de Oregon (EUA). Entre 2015 e 2017, passou pelo Houston Dash. Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos a mulherada domina o esporte. Na formação das brasileiras, observa Andressa, nem todas têm a oportunidade de criar uma rotina de treinos desde cedo. Lá, é mais comum as meninas irem para escolinhas de futebol ou treinar no colégio. Além disso, a liga estudantil é muito forte.
As meninas não têm que se espelhar no futebol masculino. Quantos meninos são iludidos na esperança de se tornar o novo Neymar e acabam largando a escola?
MARCOS PLANELA BARBOSA
Coordenador do departamento de futebol feminino do Pelotas
Mas, mesmo nos Estados Unidos, cuja seleção feminina é tricampeã do mundo, os jogadores homens ganham mais. E você sabe quantas vezes a seleção masculina conquistou o torneio mundial? Nenhuma. A desigualdade levou a equipe feminina a processar a Federação Americana de Futebol em busca de equidade salarial. Mas há alguma evolução. A Adidas, por exemplo, anunciou que os bônus pagos às suas atletas que conquistarem o título na França serão os mesmos oferecidos aos homens na Copa de 2018.
No Brasil, a via mais comum para uma melhor remuneração é o duplo emprego. Até Andressinha, com todo seu currículo na Seleção, chegou a conciliar o trabalho no Portland com uma participação no Iranduba, time amazonense, intercalando as temporadas. A decisão também foi motivada pela necessidade de manter o ritmo de jogo. Hoje, ela comemora poder ajudar a família financeiramente.
Para Andressa, 2019 é um ano de virada no futebol feminino. A atleta é uma das estrelas da campanha do Guaraná Antarctica, patrocinadora das seleções brasileiras de futebol. Com a participação ainda de Cristiane e Fabi Simões, que joga no Inter desde março, a marca provoca anunciantes para investirem na modalidade.
Também neste ano, pela primeira vez, a seleção das mulheres terá um uniforme com identidade própria. “Finalmente”, você pode pensar, afinal, estamos no século 21. Mas saiba que, até 1979, as brasileiras eram proibidas por lei de jogar futebol ou qualquer esporte “inadequado para o seu corpo”. Àquela altura, a seleção masculina já era tricampeã mundial.
De todas as ações anunciadas em 2019 para alavancar o futebol feminino, uma é especial para a avó de Andressinha, Palmira Rigodanzo, 69 anos, que tenta acompanhar todas as partidas da neta pelo celular:
– Agora vai ficar mais fácil com os jogos da Copa passando na tevê.
A avó se refere à estreia das transmissões dos jogos da seleção feminina pela TV Globo. Para Andressa, esse é o caminho para o futebol feminino receber o devido reconhecimento. Ela acredita que a visibilidade ajuda o público a conhecer o potencial feminino e a derrubar o preconceito. Para quem ainda acha que futebol não é coisa de mulher, Andressa reafirma que elas sabem jogar futebol – algumas até melhor do que os homens, diz.
Quem duvida pode mudar de ideia com o documentário Minas do Futebol. Sem torneios sub-13 feminino em São Paulo, a equipe do A.D. Centro Olímpico pediu para participar da Copa Moleque Travesso, em 2016. Foram aceitas, mas não sem resistência. Pais de atletas manifestaram medo de que as gurias se machucassem – a mesma justificativa que Elizeu ouviu quando colocou Andressinha no time masculino em 2003. Spoiler: assim como a gaúcha, as paulistas ganharam o torneio.
– Existe, sim, uma diferença fisiológica. Nunca uma mulher vai correr ou ter a força de um homem. Mas o jogo é igual na questão tática, de habilidade. É só assistir a uma partida. Se dê essa oportunidade – recomenda Andressinha, com a segurança e tranquilidade de quem já não precisa mais levar a bola para garantir um lugar no time.
Mônica, a zagueira gaúcha que virou craque da Seleção com a ajuda da mãe
Renata de Medeiros
Inspiradas em Taffarel, Dunga, Bebeto e Romário, duas irmãs despertaram para o futebol nas ruas do bairro Navegantes, na zona norte de Porto Alegre. Enquanto o time de Carlos Alberto Parreira entrava em campo na Copa dos Estados Unidos, em 1994, Mônica e Vanessa aproveitavam o tempo em que a mãe trabalhava fora para reunir os amigos e jogar bola. Quando dona Ana chegava em casa, os vizinhos reclamavam que as filhas estavam “largadas fazendo coisa errada”. O problema para a vizinhança era ver duas gurias praticando o esporte com os meninos.
Dona Ana sempre ignorou o falatório e, mais do que isso, foi a apoiadora número 1 na hora em que as filhas pediram para treinar em uma escolinha de futebol e também na sequência da carreira delas, principalmente a de Mônica. Quando ela tinha 14 anos, a mãe acordava cedo para atravessar a cidade com a filha, que havia passado no teste do sub-17 do Inter. A rotina era dura: a mãe preparava o almoço, pegava dois ônibus com a filha, esperava o fim do treino, e a menina fazia o caminho de volta almoçando, pois já ia direto para o colégio à tarde. Dois meses depois, o bolso ficou apertado:
– Na época, a gente sempre contava o dinheiro para sobreviver. Aí falei que não ia mais conseguir pagar a mensalidade da escolinha – relembra a aposentada Ana Lúcia Hickmann, 65 anos.
Hoje, a zagueira de 32 anos ri quando lembra da história, mas não esquece do aperto que quase a tirou do futebol em 2002. Dias depois de ouvir aquilo da mãe, foi promovida para o time principal e não precisou mais pagar para treinar. A partir daí, as coisas começaram a dar certo. Em 2006, Mônica conquistou o Sul-Americano sub-20 no Chile e foi bronze no Mundial da Rússia na mesma categoria. Na Áustria, conquistou 10 títulos entre 2007 e 2012 – cinco ligas e cinco copas nacionais.
De volta ao Brasil, na Ferroviária, foi campeã estadual em 2013 e da Copa do Brasil e do Brasileirão em 2014. Pela seleção, levantou dois canecos de Copa América – em 2014, no Equador, e em 2018, no Chile –, um de Pan-Americano, em 2015, e um da Liga Espanhola, pelo Atlético de Madrid, na temporada 2017/2018.
Atualmente, Mônica joga pelo Corinthians, vice-líder do Brasileirão feminino A1 e vai para sua segunda Copa do Mundo. Uma das jogadoras mais experientes da equipe de Vadão, ela quer deixar para trás o peso das nove derrotas em nove jogos que a Seleção carrega do período de preparação para o Mundial da França.
– Não adianta mais lamentar pelo que aconteceu. E, sim, entender que é outro momento. Copa é muito especial, é onde toda atleta quer estar – diz a zagueira.