Música, dança e vida. É assim que Fernanda Abreu resume, ao final desta entrevista, o que fica evidente quando as luzes se acendem e sua voz se deixa fluir. Cantando, dançando e vivendo, aos 60 anos, ela vibra na mesma potência de três décadas atrás, quando estreou a carreira solo — escancarando afrontosa a raiz do pop nacional.
E é com a energia lá em cima que a carioca se apresenta na URB Stage (Rua Beirute, 45, Navegantes), em Porto Alegre, neste sábado (2), em show da tour comemorativa 30 Anos de Baile. O evento integra a programação de cinco anos do coletivo de festas Neue. O reecontro com os fãs, após o hiato de dois anos forçado pela pandemia de coronavírus, vem justamente na batida de um projeto que remonta sucessos absolutos de sua carreira.
— Tenho 40 anos de palco e só lembro de ter ficado parada quando fiquei grávida, as duas vezes, nos primeiros dois meses da amamentação. Realmente, essa volta é muito especial, porque, primeiro, a gente se livra dessa história da pandemia e isso é importante. E, segundo, o contato com o público, que nada substitui — comenta.
A característica inquietude sempre foi combustível para sua criação. Em complemento, uma carga lúdica de referências, que passeia da paixão irremediável pelo balé clássico, nutrida desde os nove anos de idade, ao ímpeto de experimentar, ousar e misturar.
— A minha inspiração sempre vem do que eu estou vivendo, né, do que o mundo está passando. E aí pode ser uma foto, um outdoor, uma pessoa passando na rua, uma história de um amigo. Mas sempre tentando refletir um pouco sobre a alma humana — comenta, acrescentando ainda um pouco da vibe Kátia Flávia, como descreve: — O momento que a gente vive é de enfrentamento. É muito "Alô polícia, eu tô usando um Exocet Calcinha!", sem dúvida nenhuma — dispara.
Na esfera pessoal, Fernanda garante que a fase é de plenitude. Mãe de Sofia, de 30 anos, e Alice, 22 — ambas do relacionamento com o designer Luiz Stein, de quem se separou em 2011 —, mora no Rio de Janeiro, mas passa boa parte do tempo em São Paulo, onde vive o músico Tuto Ferraz, com quem é casada há 10 anos. Para chegar ao equilíbrio, muito trabalho mental, uma boa dose de maturidade e autocrítica.
— Eu sou virginiana, uma pessoa muito exigente comigo mesma. Tento ser menos, mas tem um lado que eu gosto, porque é assim que a gente avança. E também, sendo mãe, escutando o que minhas filhas têm a dizer, tentando aprender com elas, tirando aquela ideia de que só os pais ensinam. E, com meu marido, a gente já faz uma coisa diferente, que é um casamento em duas cidades. E estamos conseguindo de uma maneira muito interessante e cada vez mais orgânica — reflete.
A seguir, Fernanda fala sobre sua rotina, muito ligada à dança, ao amor e à maternidade. E nos brinda com um recorte do que vem fazendo para conquistar uma lista nada enxuta de objetivos para médio e longo prazo.
Você abriu caminhos para muitas mulheres no pop nacional. Como é sua percepção sobre a nova geração de cantoras?
As mulheres estão, cada vez mais, ganhando espaço na indústria musical, que sempre foi muito masculina. A mulherada está aí, chegando junto, especialmente artistas, compositoras, e eu acho sensacional. É um discurso próprio, uma fala sobre elas, desejos delas, como elas veem o mundo. Estou adorando que tem uma mulherada fazendo um trabalho bacana.
Algum recorte específico da sua criação lhe toca de forma especial?
São muitos discos, muitos anos de carreira, mas acho que tem uma coisa interessante na minha linguagem e produção musical, que é essa relação entre o morro e o asfalto, mas que pode ser traduzida também entre a elite e a periferia brasileira. É uma tentativa de reflexão e de dar visibilidade a um possível convívio cultural. Aqui no Rio, é muito interessante a cultura que vem da favela. Sempre tive essa referência muito forte por conta da música negra.
Nos anos 1990, você era referência para muitas meninas. Você tinha essa consciência, na época?
Nos anos 1990, tudo era feito com muito mais espontaneidade. Não tinha o objetivo de influenciar, como a gente tem hoje. Você simplesmente era. Tinha aquele estilo, comportamento, linguagem, carisma. Hoje, acho que existe uma preocupação meio calculada em influenciar as outras pessoas.
E a presença da mulher nos diferentes espaços da sociedade? Qual a sua visão sobre o caminho trilhado desde os anos 1990?
As mulheres estão, cada vez mais, dominando uma série de profissões, atividades, discursos, narrativas. Quanto mais se falar sobre patriarcado, machismo, violência contra a mulher, sobre empoderamento, melhor. A voz tem que ser alta, potente, porque a sociedade precisa ouvir, e os homens, se forem inteligentes, vão estar com a gente, lado a lado, nessa.
São 60 anos de vida, pelo menos, 40 anos de palco e contando... você se sente realizada?
Olhando para trás, são muitas coisas boas. Construí uma carreira sólida no Brasil e lá fora, soube falar os não’s e sim’s importantes. O pop é muito descartável, efêmero. Para se chegar a 40 anos de carreira, é um caminho de muito trabalho. E também na vida pessoal, tive um casamento de 27 anos com uma pessoa que eu adoro, que é meu parceiro de trabalho até hoje, pai das minhas filhas. Foi um casamento de sucesso. E depois me apaixonei, e estou casada há 10 anos com o Tuto, que é um cara incrível.
E tenho minhas filhas, que consegui criar com valores importantes, feministas, éticos e amorosos. Alice terminando a faculdade de Moda, mas já trabalhando há dois anos, com muita responsabilidade, como assistente de estilo. A Sofia, médica neurologista, formada pela UFRJ, brilhante também. Muito inteligentes e amorosas. Mas tenho coisas a realizar ainda. Pretendo até os 90 estar criando e me inspirando.
Como é o casamento a distância?
Tem dado certo. A gente já não tem medo de andar de avião, vai na ponte aérea com tranquilidade e fica muito tempo junto. Uma semana aqui e uma lá. As meninas estão grandes, então não tem mais esse tipo de preocupação. Temos duas bases de trabalho boas, que são Rio e São Paulo. Na pandemia, ele ficou aqui, porque dava para a gente ir à praia, à lagoa, uma coisa mais ao ar livre, saudável. E o Rio é sensacional. Tem cachoeiras, praias, montanhas, trilhas. Passamos um ano e meio juntos e foi ótimo, mas voltar a morar nos dois lugares também foi bacana. Ir para a casa dele e ele vir para cá está sendo ótimo.
Em relação à maternidade, como você define a sua experiência?
Maravilhosa. Tem muitas coisas difíceis, especialmente, porque você tem que continuar fazendo seu trabalho. A gravidez nem foi uma coisa muito especial, porque não tinha aquela coisa de revista que tinha antigamente. Trabalhei até o último dia antes de parir e, quando eu vi aquelas meninas saindo da barriga, era uma emoção descontrolada. Nada se compara a você ver um bebê saindo da sua barriga. Mas aí, como tudo na vida, nada é só bom. Tem sempre a parte difícil, trabalhosa, de não dormir, dar de mamar, peito doer, depois leva na escola, no dentista, pra comer, pra tomar banho. É um trabalho grande, mas sempre vi como uma missão.
A menopausa chegou da forma como você esperava?
Meu lado virginiano é muito prático, então, claro que eu não pensava na menopausa. Não sou uma pessoa ansiosa, em geral. Então, ela veio: o que posso fazer para lidar com isso? Vamos tomar fitoterápicos? Vamos! Vamos fazer reposição? É possível? Aconselhável? Mas, em geral, foi leve, porque cheguei à menopausa com 50 anos e foi na época que me apaixonei pelo Tuto. De uma certa maneira, estes sentimentos foram interessantes, porque quando você se apaixona, seus hormônios ficam diferentes. Sua cabeça, seu corpo. E é um momento em que os hormônios ficam diminuídos, quase terminados e, ao mesmo tempo, veio uma coisa nova, a ver com sexo, com romance. Então, foi uma coisa que nem sei o que te falar. Foi muito louco, porque não senti de uma maneira traumática, por incrível que pareça.
Você acorda todo dia, está sol ou nublado, mas você tem um sonho a ser realizado.
FERNANDA ABREU
Cantora
Você tem uma rotina de autocuidado?
Com a pele, protetor solar de manhã e hidratante de noite. Basicamente só. Exercício físico é dança, ioga, pilates, depende muito do momento. Vou mudando, experimentando coisas novas. E eu como de tudo, só que pouco e de preferência orgânico. Não tenho paranoia, como hambúrguer, batata frita, linguiça, churrasco. Sou uma pessoa regrada. Bebo pouco, tomo uma cerveja, uma taça de vinho. Não sou de ficar enchendo a cara... acho que isso ajuda no dia a dia. Especialmente, trabalhar com o que você gosta. A cabeça é muito importante para a saúde física, para a pessoa não se deprimir.
Em função da pandemia, você acabou não fazendo a festa de 60 anos que gostaria. O que significa esse marco na sua vida?
Ah, 60 anos, né! Festão! Adoro festa! Essas datas, 30, 40, 50, 60, queria fazer uma p*ta festa. Já estava tudo pensado, pelo menos com uns 150 amigos, mas não rolou e tudo bem. Nesse ponto, aprendi a lidar, não totalmente, porque ninguém aprende totalmente, mas o balé me ensinou muito. É importante lidar com frustração. Você vai para uma aula achando que vai fazer duas piruetas e não consegue. E, ao mesmo tempo, é a sua determinação, seu objetivo. E você vai lá e tenta, tenta, tenta. Esse tipo de pensamento, disciplina, correr atrás do que se quer e não conseguir, ok, você tentou, a vida é assim. Você acorda todo dia, está sol ou nublado, mas você tem um sonho a ser realizado. E a vida é a maior dádiva, né.
Você tem muitos objetivos a realizar?
Muitos. Quero fazer um disco de samba e um de feats, com cantoras mais novas. Tenho a ideia de fazer um documentário, uma biografia, alguns discos ainda, e turnês, shows e espetáculos maiores. Tenho muito tempo pela frente.
Seis pontos em poucas palavras
- Etarismo: não penso sobre isso
- Beleza: é saúde
- Machismo: tem que cada vez mais ser desconstruído, não só nos homens, mas nas mulheres também. É uma coisa muito estrutural e fundamental a gente trabalhar isso todos os dias. Especialmente porque tem uma coisa muito grave que é a violência contra a mulher, esses assédios. Essa tomada de consciência é muito importante para todo mundo.
- Rio de Janeiro: purgatório da beleza e do caos
- Amor: cada vez tenho pensado mais no amor coletivo, no respeito. A gente tem visto uma pauta humana muito importante de respeito aos negros, às mulheres, aos gays, aos indígenas. Acho que temos que pensar na sociedade cada vez mais dessa maneira, num sinônimo de amor como respeito
- Música: a trilha sonora da vida de todo mundo. Não existe vida sem música nem dança. Música, dança e vida são palavras, para mim, muito semelhantes